Desfazer Para Recriar: morte e transformação em ''Os Doze Trabalhos de Hércules'' e ''A Ave de Ouro''



Desfazer Para Recriar: morte e transformação em "Os Doze Trabalhos de Hércules" e "A Ave de Ouro" 

   "Não deve ser difícil a você parar algumas vezes para olhar as manchas de uma parede, ou as cinzas de uma fogueira, ou as nuvens, a lama e outras coisas no gênero nos quais... vai encontras idéias verdadeiramente maravilhosas."

   Leonardo DaVince  

  Introdução

   Em "A Poética", Aristóteles (1973) afirma que imitar é inerente ao ser humano. Através da imitação (mimeses), nós aprenderíamos e nos reconheceríamos nela (catarse). Segundo o filosofo grego, criar representações do comportamento humano é, exatamente, o que faz a literatura.

   Para Roland Barthes (2004), a literatura busca imitar o real. No entanto, mesmo esforçando-se avidamente para cumprir esse objetivo, ela nunca o atinge de todo. Sendo ela, linguagem e esta, unidimensional, já que depende da forma como o autor percebe o mundo e, sendo impossível que duas pessoas enxerguem e sintam de maneira idêntica, torna-se impossível, também, que a literatura abarque toda a realidade, pois esta terá tantas versões quanto o numero de pessoas que a podem analisar. Dessa forma, o que a literatura faz é demonstrar o real.

   Apesar disso, a literatura, sendo criada por seres humanos, não poderia tratar de algo que não o próprio homem e os aspectos da realidade que o rodeia. Portanto, mesmo uma historia inteiramente ficcional, terá suas raízes enterradas no real, pois se o mundo pode ser percebido de muitas maneiras diferentes, os sentimentos humanos são universais. É assim que nascem os contos, as peças, as poesias, os romances e etc. é isso que nos permite ter contato com uma obra de séculos atrás, situada em uma cultura distinta a nossa e, ainda assim, ocorrer o processo: mimese Þ catarse, descrito por Aristóteles.

   Assim, antes da literatura como a conhecemos hoje, havia os mitos, ainda dentro da tradição oral. Estes também provocavam o processo descrito no parágrafo anterior. Segundo Carl G. Jung (1964), mitos são historias simbólicas e universais que, mesmo aparentemente fantasiosas e irreais, buscavam representar ou, como afirmou Barthes, demonstrar os múltiplos ângulos da realidade humana.

   Exatamente por seu caráter simbólico e universal, os mitos encontram-se, mesmo após tantos séculos, profundamente inseridos na cultura moderna e, por conseguinte, na literatura, incluindo ou. Talvez seja possível afirmar, principalmente na literatura infanto-juvenil. 

    1.  O mito

   Para o psicólogo e filosofo suíço Carl G. Jung, mitos são retratos metafóricos da realidade humana, compostos de símbolos, os quais o autor define como: "um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais, além de seu significado evidente e convencional" (1964. p. 20) Mitos seriam, então, junções de arquétipos que, por sua vez, são imagens primordiais e universais, como o herói, os irmãos rivais, a bruxa malvada e etc.

   Ainda segundo Jung, a consciência humana (alma ou psique) desenvolveu-se "lenta e vagarosamente" (1964. p.23), em um processo continuo que permeia toda a historia da humanidade, prosseguindo até os dias de hoje. Os arquétipos também foram constituídos durante esse processo, sendo possível defini-los, e também aos mitos, como produtos de uma mente coletiva, construídos não por um único individuo, mas por toda uma sociedade, mantendo-se sempre coerente a ela.

   Os arquétipos são como traços biológicos que servem como base para a formação de cada ser humano, como características anatômicas que nos permite enxergar no homem atual, um vislumbre do homem primitivo. Contudo, os arquétipos não são meramente herdados ou mesmo definidos, pois, se tais representações fossem adquiridas de forma consciente por nossa psique, nós as compreenderíamos totalmente. Portanto, os arquétipos são, como define Jung, "uma tendência para formar estas mesmas representações de um motivo representações que podem ter inúmeras variações de detalhes sem perder sua configuração original" (1964.p.67).

   Em outras palavras, os arquétipos estão fixados no chamado inconsciente coletivo, uma espécie de mente geral da sociedade, que armazena toda a cultura intrínseca, passando-a, geração após geração, não como algo aprendido, mas como um impulso instintivo, como as aves para construir seus ninhos e as formigas para se organizarem em colônias (JUNG, 1964). 

1.1. O mito, o conto de fadas e o sonho.

   Jung utiliza os arquétipos para analisar os sonhos e, de fato, eles também cabem perfeitamente nas análises literárias. No entanto, é necessário ressaltar as singularidades dos sonhos, mitos e contos de fadas, sendo este ultimo, o foco principal deste artigo.

    Os sonhos, os contos de fadas e os mitos são todos frutos do inconsciente coletivo. Segundo Bruno Bettelheim:

     "Os sonhos são resultado das pressões internas, que não encontram alivio, de problemas que bloqueiam uma pessoa, para os quais ela não consegue solução e para os quais os sonhos não conseguem. O conto de fadas faz o oposto: ele projeta o alivio de todas as pressões internas e não só oferece formas de resolver os problemas, mas promete uma solução 'feliz' para eles. "(1980, p. 40).

   Nessa passagem, podemos perceber uma diferença clara entre sonho e conto de fadas. Enquanto os sonhos são uma projeção dos medos e desejos ocultos no subconsciente, o conto de fadas é fruto de uma mente consciente, que busca representar estes sentimentos obcuros por meio de imagens e motivos universais e até apaziguá-los, apresentando soluções.

   A partir dessa passagem podemos, também, perceber uma diferença entre o conto de fadas e o mito. Embora os mitos também sejam frutos de uma mente consciente e que, assim como os contos de fadas, busquem representar conteúdos inconscientes, narrando, ambos, acontecimentos fantasiosos, há uma distinção na maneira de comunicá-los.

   Para Bettelheim, os mitos carregam um viés trágico, enquanto os contos de fadas costumam ser otimistas. Outra diferença, é que os mitos narram acontecimentos grandiosos, que não poderiam ocorrer com qualquer pessoa, inspirando admiração. Apesar de abordar acontecimentos igualmente singulares e improváveis, estes são narrados como fatos cotidianos, ocorridos com pessoas comuns.

   Assim, o sonho seria como um espelho embaçado, onde as emoções ais profundas apareceriam refletidas em símbolos e imagens dispersas. Já o conto e o mito seriam convenções culturais, que apontariam problemas universais, com a distinção de que os contos apresentariam, também as soluções mais desejáveis. Contudo, estas imagens e símbolos, que aparecem tanto em sonhos quanto nos contos e mitos, encontram-se tão subjacente a sociedade, que mesmo nos dois últimos, fica impossível dizer se todas as metáforas ou todos os arquétipos, enfim, todas as escolhas dos autores foram conscientes ou culturalmente motivadas. 

2. A Grécia antiga e um sábio confuso

     Em "Os Doze trabalhos de Hércules", assim como em "O Minotauro", Monteiro Lobato leva até a Grécia antiga alguns de seus "picapauzinhos" (nesse caso: Emília, Pedrinho e o Visconde) que auxiliam o herói grego na realização de suas façanhas. Contudo, este artigo focará sua abordagem nos acontecimentos que envolvem o Visconde de Sabugosa.

   Conhecedor de todas as ciências, o Visconde é a enciclopédia do Sitio do Pica Pau Amarelo. Nessa aventura, ele é posto em contato direto com a misteriosa Grécia e, no passado, antes conhecido somente através de livros, o sabugo não só assiste, como participa do que era apenas lenda. Dessa forma ele passa por diversos perigos e aventuras, algo incomum no cotidiano de um sábio. E, de fato, ele começa a ter atitudes incomuns a um sábio.

   Um bom exemplo deste comportamento pouco usual do sabugo, é quando Hércules o manda buscar a pele invulnerável do Leão da Nemeia, espolio do primeiro trabalho,que serviria de escudo para o herói. Acidentalmente, Emília esbarra no Visconde, fazendo-o errar a quantidade de Pó de Pirimpimpim, aspirando mais que o necessário. Assim, ao invés de acordar no Olival, casa do pequeno pastor que se tornara amigo dos protagonistas logo no inicio da história e local onde a pele era curtida, o Visconde desperta no palácio do rei Polidectes, no momento em que Perseu prometia matar a terrível Medusa.

   Era esperado do sabugo que ele aspirasse a quantidade correta de e cumprisse seu desígnio inicial. Entretanto, o que ele faz em seguida não condiz em nada com seu comportamento usualmente racional. Agindo impulsivamente, o Visconde segue Perseu e o assiste cumprir sua promessa.

   A soma de tantas novas e inesperadas emoções tem seu resultado. A mente do sabugo não consegue sustentar seu equilíbrio e acomodar estas emoções e ele acaba enlouquecendo. Pronunciando palavras soltas e sem sentido, entre gargalhadas histéricas, o Visconde até "deu uma serie de cambalhotas e ficou a fazer a experiência de andar com as mãos no chão e os pés no ar"(LOBATO, M. 1969.p.236). Dessa maneira estando os "picapauzinhos" nessa Grécia mítica, muito longe da medicina moderna e dos tratamentos psiquiátricos, a cura do sabugo só poderia vir através do caldeirão da feiticeira Medeia.

   No Caldeirão, o sabugo louco deve ser fervido. Contudo apenas a fervura não é suficiente para curá-lo; antes, é preciso que Medeia arranque-lhe as penas, os braços e a cabeça. Essas são as partes que fazem o Visconde especial, um sabugo-homem; sem elas, ele seria um sabugo comum, igual a qualquer outro em um milharal. Por fim, Medeia deve cortar-lhe em pedacinhos, desfazendo-o totalmente, para só então fervê-lo. 

3. A raposa em pedaços e outros símbolos.

   O conto "A Ave Dourada", dos irmãos Grimm está repleto de símbolos, a maioria vinculada ao conhecimento. A história inicia-se com um rei (poder e autoridade [CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996]. Isso ficará claro no decorrer da história, pois serão as ordens dos reis que nela aparecem, que nortearam os rumos do protagonista.) que dá aos seus três filhos, um após outro, a incumbência de vigiar a árvore (evolução. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996) das maçãs (fruto do conhecimento. GRIMASSI, R. 2004) de ouro (luz→iluminação→conhecimento. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996), que estavam sendo constantemente furtadas. Porem, um após outro, os filhos fracassaram em sua vigília.

   Exatamente o Príncipe Caçula, (o mais novo, que é imaturo, inexperiente e socialmente desvalorizado. BETTELHEIM, B.1980), em quem o rei não confiava, não adormece a meia-noite, como seus irmãos. Assim, mesmo não evitando o furto, ele testemunha que o "ladrão" é, na verdade, a lendária Ave (liberdade. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996) Dourada.

   Apenas nesse inicio temos, além dos símbolos já citados, dois que são cruciais, pois resumem, de certa forma, a história: o numero três e a hora meia-noite.

   O número três representa a totalidade. Por exemplo, são três as faces do deus cristão, o Pai, o Filho e o Espírito santos, assim como são três os principais deuses gregos, Zeus, Hades, Poseidon, e também os hindus, Vishmu, Xiva e Brahma (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996). Também serão três os objetivos do Príncipe Caçula, todos eles dourados, como veremos no decorrer do artigo.

   Já  a meia noite é uma hora de transição, quando a noite termina, mas ainda não é dia. Da mesma forma, o Príncipe não é mais uma criança, mas ainda não é um homem, e o conto vai narrar esse processo de transição.

   Assim, a história continua com o Rei mandando que seus três filhos tragam-lhe a Ave. Mais uma vez, um após outro, eles buscam este objetivo. Nesse momento, surge no conto a Raposa (sabedoria. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996) que, na floresta, oferece seu primeiro conselho:

"Você esta na trilha da Ave de Ouro e hoje à noite chegaras a uma aldeia onde ficam duas estalagens, uma em fronte da outra. Uma delas é muito bem iluminada e dentro dela reina grande animação. Não a procures, porem, prefira a outra, embora pareça ainda pior."(GRIMM, J &GRIMM, W-1994. p.103)

   Os dois primeiros viajantes ignoram-na e acabam entregando-se aos prazeres nas festas da estalagem iluminada, esquecendo-se da Ave. O Príncipe Caçula, no entanto, a obedece. E, dessa forma, fica clara uma metáfora que demonstra que o caminho mais fácil, ou a estalagem mais bela, nem sempre é o melhor a se seguir.

   Na manhã seguinte, a Raposa pede ao príncipe que suba em sua calda e, assim que ele o faz, dispara a toda a velocidade até o castelo onde se encontra a Ave de Ouro. Essa passagem do conto pode representar que, através da mediação da raposa, isto é, da sabedoria, o Príncipe percorreria um longo caminho até a liberdade (a Ave) que precisa alcançar para atingir a maturidade.

   Chegando ao castelo, a Raposa avisa-o que ele não deve trocar o pássaro da gaiola de madeira (o que é essencial, matéria-prima. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996) para a de ouro (luxo, riqueza. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996). Contudo, é preciso ressaltar que o arquétipo do príncipe simboliza a promessa de poder, a eles pertencem os grandes feitos, não a manutenção da ordem (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996). Assim, por imaturidade, o Príncipe faz o oposto do que disse a raposa, revelando que ele ainda confere mais valor ao que é luxuoso e esquece-se da simplicidade.

   Feita a troca, no mesmo instante, a Ave começa a gritar, acordando os guardas do castelo. Condenado à morte, o Príncipe ganha uma chance de ficar vivo, caso trouxesse ao rei deste castelo, o Cavalo Dourado.

   A Raposa o leva a esse destino também e o aconselha a não trocar a velha sela de couro pela dourada e, mais uma vez, o Príncipe, imaginando que uma criatura tão incrível não poderia ser ornada com um material tão ordinário, Faz a troca. Imediatamente, como fizera a Ave, o Cavalo começa a gritar e acabas despertando os guardas. Condenado a morte pela segunda vez, o Príncipe recebe uma nova chance de ficar vivi, caso trouxesse ao rei desse castelo, a Princesa Que Vive no Castelo Dourado.

   Como podemos perceber até agora, A Ave de Ouro narra a historia de aprendizagem pessoal e crescimento do Príncipe Caçula. Sua primeira tarefa foi vigiar as maçãs de ouro, o conhecimento; a segunda, encontrar a Ave de Ouro, a liberdade; a terceira, buscar o cavalo dourado, que é um símbolo de força, rapidez, vitalidade e virilidade (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996). Por fim, ele deve encontrar a Princesa, arquétipo da beleza e do amor (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996).

   Dessa forma, a Raposa leva o príncipe até o Castelo Dourado e o Aconselha a beijar a princesa, pois assim ela o seguiria. Contudo, ele não devia deixar-la despedir-se do pai. O prensei faz o que diz a Raposa, no entanto, ao ver a tristeza da princesa, descumpre a segunda parte do conselho.

   O pai da princesa, então, afirma que só permitiria a partida de sua filha se o príncipe conseguisse, ao termino de oito dias, remover a montanha que obstruía sua janela. Todavia, não importava o quanto o Príncipe cavasse, a montanha continuava a mesma.

   A montanha é um símbolo de imutabilidade (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996) e imutável permaneceria a percepção do Rei, caso a montanha não fosse removida, para que ele pudesse olhar para alem do interior de seu castelo e do excesso de zelo com sua filha. Mais uma vez, o Príncipe só poderia atingir seu intento através da mediação da Raposa que, com seus poderes mágicos, remove a montanha.

   Segundo o plano da Raposa, o Príncipe e a Princesa prosseguiriam até  o castelo onde o rei a desejava. Ao receber o Cavalo Dourado, o Príncipe, rapidamente, puxa a Princesa para si e, montados no cavalo, fogem. Chegando ao castelo onde o rei desejava o Cavalo, a Princesa desmonta e o Príncipe segue sozinho. Quando já esta com a gaiola da Ave de Ouro nas mãos, foge cavalgando.

   Em seguida descobrimos que a Raposa não ajudou o Príncipe de forma desinteressada, ela deseja algo em troca: "quando chegares àquela floresta adiante, mata-me e corta minha cabeça e minhas pernas "(GRIMM, J& GRIMM, W-1994. p. 107). O Príncipe não compreende esse estranho pedido, recusando-se a cumpri-lo.

   Percebendo que o Príncipe estava irredutível, a Raposa deixa-o, mas antes lhe dá um ultimo conselho: "não compres carne da forca e não sentes à beira de um poço" (GRIMM, J& GRIMM, W-1994. p. 107). Entretanto, como já era rotina, o conselho é ignorado. Chegando a aldeia do inicio da historia, o Príncipe Caçula descobre que seus irmãos se tornaram tratantes e seriam enforcados. Assim, ele paga para libertá-los.

   Os três irmãos, a Princesa e os animais continuam a viagem até  o castelo do pai deles. Na floresta, fazia muito calor e eles decidem descansar perto de um poço, onde poderiam comer e beber. Nesse momento, surge outro arquétipo, o dos irmãos rivais. Invejosos, os irmãos do Príncipe desejam seus prêmios e ele, que havia se esquecido do conselho da Raposa e se sentado na beira do poço, é empurrado. Porem, o poço estava seco e a terra fofa, de modo que o Príncipe não morreu, mas não conseguia sair.

   Até  esses acontecimentos, o Príncipe fora impulsivo, irresponsável e desatento, vencendo seus obstáculos somente por conta da ajuda da Raposa. O poço é um símbolo de conhecimento onde, segundo CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. (1996), "a borda é o segredo e a profundidade, o silencio. Trata-se, bem entendido, do silencio da sabedoria contemplativa, estagio superior da evolução espiritual e do domínio de si" (p. 726). O poço representa, assim, um mergulho para dentro de si mesmo, onde o Príncipe vai encontrar o fim de sua jornada de auto-conhecimento.

   Para sair do poço, o Príncipe conta, novamente, com a ajuda da Raposa, que o censura por não seguir seus conselhos, mas não o abandona. Segurando-se na calda dela, o Príncipe è puxado para fora do poço pela sabedoria.

   Todavia seus irmãos não estavam tão certos de sua morte e haviam cercado toda a floresta para impedir sua volta. Então, para conseguir chegar ao palácio, o Príncipe tem que trocar de roupas com um velho pobre que encontrou no caminho.

   Durante toda a historia, o maior obstáculo do Príncipe foi perceber o valor das coisas simples e que ele não as deveria trocar pelo luxo. Essa passagem da troca de roupas, porem, significa que ele já consegue compreender isso.

   Logo que o Príncipe, trajado como um mendigo, chega ao castelo de seu pai, a Ave que parara de cantar, o Cavalo que não comia e a Princesa que só chorava, recobraram a alegria. Esta ultima atira-se em seus braços, apesar do disfarce. Descoberta a farsa, os irmãos são condenados, o Príncipe herda o trono do Rei e casa-se com a Princesa.

   Tempos depois, o Príncipe reencontra a Raposa e ela refaz seu pedido, outrora negado: "agora estas de posse de tudo que poderias desejar, enquanto eu continuo entregue a meu sofrimento, e, no entanto, tens o poder de me libertar" (GRIMM, J& GRIMM, W-1994. p.110). Dessa maneira, o Príncipe mata a Raposa e arranca-lhe as patas e a cabeça. Simbolicamente, o que ele arranca são dois aspectos primordiais da raposa: astúcia (cabeça) e agilidade (patas). Na verdade, a Raposa era o irmão da Princesa, que havia sido enfeitiçado, sendo a morte a única forma de libertá-lo, transformando o animal em homem novamente.

   Dessa forma, o Príncipe passa por uma grande aventura, que pode ser entendida por como uma metáfora para a transição da adolescência para ávida adulta, em uma jornada que começa com o deslocamento de um local de segurança (o palácio, seu lar) para o desconhecido (a própria vida). Entre erros, acertos, transgressões, passando pela morte simbólica no poço, o auto-conhecimento até a morte da Raposa para a ressurreição de um homem, o Príncipe finalmente completa sua transformação de menino em homem. 

4. O Visconde, a Raposa e a Fênix.

   Tanto no caso do Visconde de Sabugosa quanto no da Raposa, foi necessário matar o ser, destroçá-lo, descaracterizando-o, para só então, recriá-lo.

   Estas duas histórias remetem a um dos mitos gregos mais conhecidos: a Fênix. Arquétipo de transcendência, sua historia representa a esperança da continuidade da vida. A Fênix era um pássaro de penas vermelhas e douradas, que, ao sentir a aproximação da morte, construía uma pira e, com o calor de seu corpo, incendiava-a, queimando a si própria (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996).

   No entanto das cinzas da Fênix morta, erguia-se uma nova, simbolizando a imortalidade, a ressurreição e a regeneração (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996). Da mesma forma ocorre com a Raposa, que através da morte, transmuta-se em homem. Afinal, apesar de este ter sido homem antes de ser raposa, é impossível afirmar que, depois de viver a experiência de ser animal na floresta, ele tenha ressurgido igual à antes da transformação. Talvez, por isso ele tenha ajudado o Príncipe Caçula; talvez ele tenha sido tão imaturo e irresponsável quanto o Príncipe e isso tenha sido a causa de sua transformação em raposa.

   Assim, o que ocorre é um a recriação, não uma reconstituição. Eles voltam a ser eles mesmos, mas diferentes. É o que, também, ocorre com o Visconde. 

5. O Visconde, a caldeira e outras histórias.

   Na descrição do feitiço que cura o Visconde, percebemos (nas passagens sublinhadas) diversos símbolos ligados à transformação:

"Pegando o Visconde, arrancou-lhe os braços, as pernas e a cabeça; depois picou o tronco inteiro com uma faca. Lançou tudo em uma caldeira e ascendeu o fogo. Com alguns minutos de fervura, o picadinho ficou pronto. Um vapor grosso ergueu-se da caldeira Medeia rezou as suas palavras mágicase com o maior assombro todos viram surgir um Visconde de Sabugosa novinho em folha, jovem e corado, sem a menor sombra de loucura nos miolos" (LOBATO, M. 1969. p. 246/248)

   A ação de arrancar os membros e a cabeça e de picar o tronco esta, como já foi dito anteriormente, ligado à transformação através da destruição. A faca utilizada por Medeia para picar o Sabugo, é um símbolo, de modificação (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996). Já a caldeira, representa o útero e, por conta disso, costuma simboliza a transformação (GRIMASSI, R.2004). Alem disso, na mitologia celta havia o caldeirão da ressurreição, onde os mortos eram atirados para que ressuscitassem no dia seguinte (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996).

   Através do vapor da caldeira temos, também, a presença da água, símbolo de purificação (CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996). Assim, purificado da loucura o Visconde ressurge curado. Porem, ele não é o mesmo de antes, parece até mais jovem, tanto que consegue em sua ocupada cabeça de sábio, espaço para o amor. Após sua cura ele conhece e se apaixona pela pastorinha Climene. O Visconde também participa das comemorações dionisíacas, dançando e bebendo, como comenta Pedrinho: "o nosso Visconde que era tão grave e sisudo, esta agora um perfeito malandro" (LOBATO, M. 1969. p. 298).

   Dessa forma, o Sabugo não foi apenas refeito, algo novo, de certa forma, foi criado na caldeira. Encontramos, assim, paralelos, não somente com "A Ave de Ouro" e a Fênix, mas também com o mito da criação do mundo, segundo os babilônicos.

   A historia tem inicio com um caos aquático. Apsu (água doce) e Tiamat (o mar) unem se e criam o universo e os deuses. Os primeiros foram Lachmu e Lashamu, que se reproduziram. Mas, esses deuses irritavam Apsu, que foi até Tiamat, afirmado que a descendência de ambos deveria ser extinta para que ambos retornassem a tranqüilidade. Entretanto, Tiamat não compartilhava desta opinião, pois, embora perturbada pelo ruído dos deuses, os perdoava e por isso logo rechaçou a idéia de matá-los. Os deuses, contudo, ficaram sabendo dos planos de Apsu, e mandaram o deus Ea para eliminá-lo.

   Apesar de Tiamat não apoiar Apsu, matá-lo foi uma afronta, fazendo-a se voltar contra os deuses. Ela então encontra um novo companheiro, Kingu, e com ele gera diversos monstros: serpentes de garras venenosas, homens escorpiões, leões demônios, monstros tempestades, centauros e dragões voadores.

   Os deuses temiam Tiamat e seus monstros, mas Marduk, o filho de Ea, decide enfrentá-la, sob a promessa dos deuses de que, em caso de vitória, seria coroado o rei deles.

   Com uma rede tecida por ele mesmo, Marduk captura Kingu e os monstros e os atira no submundo. Com seu disco mágico (uma representação do Sol), cega Tiamat. Depois de feri-la mortalmente com sua lança (símbolo fálico, de procriação), Marduk parte-a ao meio, criando com uma parte o céu e com a outra, a terra. Com a saliva de Tiamat, ele cria as nuvens e dos olhos faz correr os rios Tigre e Eufrates. Por fim, com seus seios forma as montanhas. Sendo assim, da destruição de Tiamat, nasce o mundo.

   Tudo isso remete um outro mito, dessa vez egípcio: Osíris. Na versão mais conhecida da historia, o sábio soberano do Egito é vitima da inveja de seu irmão (irmãos→rivalidade. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.1996) Set, que desejava o trono e a rainha, Isis. Trancado em um sarcófago, Osíris foi atirado no Rio Nilo. Ao descobrir isso, Isis realiza uma peregrinação, até encontrá-lo, morto.

   O assassino, no entanto, ao descobrir que o corpo havia sido recuperado, foi até o esconderijo onde este se encontrava e o esquartejou em quatorze pedaços, espalhando-os por todo o reino. Incansável, a fiel Isis, em mais uma peregrinação, reúne cada um dos pedaços de seu marido.

   Recitando-lhe palavras de amor, Isis reanima o espírito de Osíris para que este a fecunde, gerando Horus, o futuro soberano do Egito, e aniquilando as ambições de Set. Podendo, assim, Osiris finalmente se tornar o juiz no mundo dos mortos.

   Dessa maneira, o soberano foi desfeito pela inveja de seu irmão e reconstituído pelo o amor de sua esposa. Contudo ele não retorna como era antes; na forma de espírito, juntamente com Isis ele gera uma nova vida, Horus.

   Da mesma forma, a fogueira destrói a Fênix para que uma outra nasça. Da mesma forma, o Príncipe tem de matar a Raposa para libertá-la. Da mesma forma, Marduk destrói Tiamat para criar o mundo. E, também Medeia precisa desfazer o Visconde em seu caldeirão, para purificá-lo, não apenas da loucura, mas também livrando-o da casmurrice que o acometia, renovando o velho e previsível Visconde e transfigurando-o em jovem e ousado. 

Considerações Finais

   Leonardo DaVince afirmou que encontraríamos idéias maravilhosas em manchas na parede, nas cinzas de uma fogueira, nas nuvens ou na lama. Os símbolos, metáforas, os arquétipos e a literatura, em geral, são como essas marcas. Nelas podemos encontrar muitos mistérios incríveis e muitas formas de decifrá-los, dependendo da percepção de cada um de nós. Podemos, então, enxergar significados, contornos ou desenhos diversos nos mitos, contos, paredes, cinzas, nuvens, lama ou onde quer que procuremos. 

Referencias:

ARISTOTELES. Poética. São Paulo, Abril-1973.

BARTHES, Roland. A aula. São Paulo, Cultrix-2004.

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra-1980.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio-1996.

GRIMASSI, Raven. Enciclopédia de Wicca e Bruxaria. São Paulo, Gaia-2004.

GRIMM, Jacob & GRIMM, Wilhelm. A Ave de Ouro. In: Contos de Fadas. Belo Horizonte, Villa rica-1994.

JUNG, Carl Gustave. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira-1964.

LOBATO, Monteiro. Os Doze Trabalhos de Hercules. São Paulo, Brasiliense-1969.


Autor: Adriana Tinoco de vasconcelos


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