CÂNDIDA, A VILA DO SANTO E O PECADO DA CARNE



CÂNDIDA, A VILA DO SANTO E O PECADO DA CARNE

Por Francisco Deliane e Silva[1]

[email protected]

O lugar era pequeno. Podia possuir qualquer denominação. "Vila do Santo", por exemplo, mas não direi o nome do santo, para que não se tenha certeza se a historia é verdadeira ou não.

Bem, a possibilidade de tal lugar se emancipar era coisa muito pouco provável. A vida na roça era fazer meninos, para depois, quando crescidos irem embora atrás de sonhos distintos do sonho de viver ali, porque permanecer ali seria ser eternamente igual, não ter acesso a luz elétrica e nem a educação. Nada parecia mudar. Parecia que nada mudaria, nem as pessoas e nem o lugar.

Portanto, o eleitorado era o mesmo. Os casais eram os mesmos. Os políticos eram os mesmos e rotineiramente só apareciam na beirada das eleições. Traziam promessas, plantavam ilusões que se esvaiam até serem replantadas no próximo pleito, para depois se irem de novo, continuadamente, rotineiramente, indefinidamente.

As mocinhas viam suas primeiras regras em algum canto da roça, ouvindo o tinir das cigarras. E, em algum destes cantos tornavam-se mulheres, ouvindo o mesmo 'sino'. A vida era boa, os crimes eram poucos, e assim permaneciam contados e recontados na memória natural do povo, sem manchetes, sem exortações, sem nada, eram apenas crimes.

No embolorado nevoeiro da memória de antigos moradores resistia à história de um crime poucas vezes contada, e guardada com o que parecia ser certo respeito, certa cortesia, por puro medo de parecer difamação.

Porém, nas noites de lua, algum antigo morador mais afoito, após algumas doses de cachaça, recordava a história de Cândida. Cândida era moça formosa que nem parecia dali, galega de lábios carnudos, apetitosos mesmo, dona de um busto primoroso, de um rosa pálido fazendo até parecer que o sol tinha prazer em tocá-lo, por isso o fazia suavemente para não desmanchar aquele 'rosa - mulher' dos peitos de Cândida.

Ninguém, mas ninguém mesmo há de dizer que Cândida, apesar do que sucedeu, não era moça recatada. Pura. Também ninguém, mas ninguém mesmo há de negar que a carne atrai a carne, e quando a mesma é boa eleva o desejo.

Foi assim que aconteceu. Ninguém sabe como, a única coisa que se pode garantir é que efetivamente aconteceu.

Mais ou menos cinco anos antes do fato chegou por ali um homem atarracado, de modos grosseiros, dizendo que houvera comprado as quatro tarefas de terra diretamente dos filhos de Genebaldo que falecera há pouco mais de mês, embora tais filhos, há mais de quinze anos não o visitassem, como também não visitaram a mãe que morrera seis ou sete anos antes, deixando viúvo o velho Genebaldo que afinal se foi, sozinho e sem ninguém.

O homem chegou e ficou.

Pôs-se a trabalhar, plantou milho e feijão. Plantou jerimum e melancia, mas nunca se integrou com o povo da vila que mesmo sem instrução era gente muito educada e de boa índole. Hospitaleira.

Falaram depois do fato, que souberam ninguém sabe como, que o homem era criminoso, e fora para a Vila do Santo, só para se esconder dos parentes de sua vítima que queriam por fina força vingar-se do mesmo.

Mas só falaram isto depois do fato, antes ninguém comentava nada.

Ali mesmo na Vila, junto com Cândida crescera Antonia, uma moreninha mirrada, que quando desabrochou, tomou formas de mulher fogosa, ancas largas, parideira, seios fartos, e que logo em seguida foi morar na cidade.

Ninguém nunca comentou o que aconteceu. Antonia voltou sozinha como partiu, pouca coisa mudara, os seios penderam um pouco, mas a bunda parece que não mudara nada, só crescera mais.

Ao voltar, Antonia passou a cuidar das crianças da vila, num arremedo de alfabetização. Por este trabalho não se pode dizer que Antonia fosse má pessoa. Mas.. O destino é assim. Ninguém sabe por quê?

Conta o povo da Vila, que numa noite de lua o homem que comprou a terra diretamente dos filhos de Genebaldo parece que enlouqueceu. Invadiu a casa de Cândida e abusou daquele busto de pérola, daquele ser divinal, que se debateu... Debateu-se e debaixo de tanta violência... Morreu.

O pudor e a vergonha fazem calar o que realmente ocorreu. Somente se fala isso para provar que Cândida era moça honrada que sofreu, sofreu e morreu, morreu porque não cedeu a loucura do desejo do homem que comprou a terra dos filhos de Genebaldo, do homem que enlouqueceu ceifando a vida de Cândida.

Dor e revolta, choro e lastimação foi o tom intermitente do velório de Cândida.

Cândida foi sepultada.

Parece que tudo acabou.

Não. Não acabou. O homem que comprou a terra diretamente dos filhos de Genebaldo em noite posterior ao sepultamento. Voltou!

Voltou e com as próprias mãos arrancou o corpo branco de Cândida da terra onde foi plantado, e sobre a lápide congelada, mais uma vez abusou do mesmo.

Acontece que os parentes do homem assassinado pelo homem que comprou a terra diretamente dos filhos de Genebaldo, o descobriram na Vila do Santo, exatamente naqueles dias seguintes a morte de Cândida, e o encontraram entrando no Cemitério, e lá executaram a vingança, matando o homem que comprou a terra diretamente dos filhos de Genebaldo quando este se encontrava simplesmente nu, absolutamente desarmado, por estar bem abraçado ao frio corpo de Cândida. O mataram e sumiram. Assim o dizem e ao que parece assim o foi.

Acontece, que certo tempo depois, nas noites silenciosas o povo passou a ouvir uns gemidos, uns risos, uns sussurros provavelmente advindos das bandas do túmulo de Cândida.

Comentou-se. É alma penada. A morte foi violenta.

Todos passaram a evitar andar para aquelas bandas.

O tempo foi tornando verdade o que parecia crendice, o que parecia fruto do medo. O povo foi se acostumando com a existência dos gemidos. Todos ouviam os cochichos, os sussurros, os gemidos nas noites silenciosas daquele povo aturdido.

Pronto. Ficou definido.

É alma penada pedindo oração.

Missas foram rezadas.

Mas vez por outra o vento trazia os sussurros e os risos do tumulo da perdição.O caminho foi abandonado.

Caindo a noite ali ninguém passava até o raiar do dia.

Acontece que um dia, Tião, um mulato forte, destemido é verdade, mas ficava mais corajoso com as cachaças que tomava, errou o caminho de casa, e dormiu no mato que existia próximo do tumulo de Cândida.

Que mistério! Que horror!

Tião acordou assustado com os sorrisos e sussurros de Antonia, aquela morena outrora mirrada, agora fogosa delirava de prazer. Desvairada e inteiramente nua, chamava o nome de um homem que depois se soubera ser o homem que comprou a terra diretamente dos filhos de Genebaldo, e casara-se com Antonia quando esta morava na cidade, assim por haver matado seu próprio cunhado, ali viera esconder-se com o consenso de Antonia.

Antonia foi pro hospício. A alma penada parece foi para seu lugar, porque ali nunca mais foram ouvidos sussurros, risos, murmúrios, cochichos.

Ainda assim....

Tem gente que quando anoitece não anda para aquelas bandas. Assim mesmo.

Novembro/2009




Autor: Francisco Deliane e Silva


Artigos Relacionados


O Medo De Amar

A Explicação Para Os Sonhos

Tu és...

Os Nós Do Eu

Nos Palcos Da Vida

Hoje

Hoje Eu Vou Mudar