HUMANIZAÇÃO DO ATENDIMENTO MÉDICO: RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE



Maria Gabriela Izoton[1]

Rafael Coelho Carvalho[2]

João Bosco Pavão[3]

RESUMO

O artigo proposto tem como fundamento discutir, dialogicamente, a relação médico-paciente a partir de algumas reflexões teórico-filosóficas. Com os avanços científicos e tecnológicos na saúde, a medicina tem se fundamentado numa prática que considera apenas os aspectos morfo-fisiológicos das doenças. Isto implica numa assistência fragmentária e "desumanizante", que desconsidera a subjetividade humana. Este cenário possibilita afirmar que a proposta de humanização da medicina pressupõe mudanças na esfera da formação profissional. O presente estudo objetiva analisar o processo de humanização da relação médico-paciente; analisar aspectos que demonstrem o caráter hegemônico sob o qual está centrada a saúde e levantar teorias e métodos de humanização no atendimento médico. Trata-se de uma revisão da literatura com incursões feitas no âmbito das ciências humanas, principalmente, na antropologia e na filosofia.

PALAVRAS-CHAVE: Formação Profissional; Relação Médico-Paciente; Antropologia Médica; Filosofia da Medicina.

1-INTRODUÇÃO

Os avanços tecnológicos em saúde têm distanciado da relação médico-paciente, a análise dos conteúdos subjetivos humanos, enfocando apenas o cuidado na doença. Isto resulta numa assistência fragmentária e "desumanizante".

Ao longo do tempo, com os avanços científicos e tecnológicos na saúde, a medicina tem se fundamentado numa prática que considera apenas os aspectos morfo-fisiológicos da enfermidade, resultando numa prática que desconsidera a subjetividade humana.

Com a finalidade de suprir uma deficiência na formação de profissionais da saúde, as faculdades e universidades de medicina estão cada vez mais preocupadas com uma educação que enfoque uma prática humanizadora.

Para tanto, universidades de medicina norte-americanas estão se inovando em termos de curso. Assim, Trindade et al. (2005) fazem referência ao método humanista desenvolvido pela médica norte-americana Rita Charon, da Universidade Columbia, em Nova York, chamado "medicina narrativa".

Neste sentido, é relevante a fala de Charon apud Buchalla (2004), argumentando que o tornar-se empático, é que tornará o profissional da medicina mais inteirado com seus sentimentos, implicando numa melhor compreensão dos seus pacientes.

Os questionamentos até aqui desenvolvidos possibilitam deflagrar uma postura crítica/reflexiva acerca do modelo biomédico hegemônico, sob o qual está centrada a prática médica. Esta tem levado o exercício profissional em saúde a ter como único escopo a doença, desvinculado de qualquer sentimento e empatia com a pessoa.

Portanto, o presente estudo faz-se necessário frente a uma formação médico-universitária deficitária e a uma prática profissional incapaz de lidar com as diferenças culturais, crenças e valores na esfera da assistência aos usuários dos serviços de saúde.

A partir de uma abordagem argumentativa, o artigo tem como problema o fato de que ao longo do tempo, com os avanços científicos e tecnológicos na saúde, a medicina tem se fundamentado numa prática que considera apenas os aspectos morfo-fisiológicos das doenças. Isso implica, por conseguinte, numa assistência fragmentária e que desconsidera a dimensão subjetiva do paciente. A partir desse pressuposto, a pergunta norteadora de nossa pesquisa é: a educação médico-universitária, levou o profissional de saúde a considerar somente os aspectos morfo-fisiológicos das doenças, como então o médico resgata a dimensão subjetiva do paciente?

O artigo tem por Objetivo Geral analisar o processo de humanização da relação médico-paciente e por Objetivos Específicos analisar aspectos que demonstrem o caráter hegemônico sob o qual está centrada a saúde, bem como levantar teorias e métodos de humanização no atendimento médico.

O artigo proposto trata de uma revisão da literatura no âmbito das ciências humanas e sociais, mormente, da antropologia, da filosofia, da história da medicina e da psicologia médica.

2-DESENVOLVIMENTO

Torna-se oportuna, num primeiro momento da nossa discussão, uma passagem pela história da medicina para melhor compreendermos a sua trajetória ao longo do tempo.

A medicina, como ciência, ao longo dos tempos tem passado por um processo de evolução histórica. Assim, constata-se que a arte médica tem suas origens em períodos esquecidos pelo tempo. Práticas mágicas já cogitadas e efetuadas em épocas remotas e desenvolvidas pelo homem da pré-história, bem como por antigas civilizações, a exemplo dos antigos egípcios, chineses, hindus, entre outras. Reflexo, portanto, de uma época anterior ao desenvolvimento e avanços da atual medicina.

Segundo Margotta (1998) o homem da pré-história já tinha o conhecimento da eficácia tanto de produtos de origem vegetal quanto de origem animal. Logo, para Sournia (1992), vê-se que a cura era realizada pelos líderes espirituais, quais sejam, curandeiros, pajés, santos, bruxos, que se utilizavam de drogas para o alívio da dor.

De acordo com Margotta (1998) acreditava-se no período mágico da medicina que a doença, sobretudo a de ordem mental, era devido à influência de espíritos malignos e demônios e a única forma de curar era afastar essas entidades malfazejas. Assim, Sournia (1992) enfatiza que eram realizadas práticas ritualísticas como maneira de pacificar a ira dos deuses. O que resultou, para Margotta (1998), no advento de mágicos que argumentavam ter habilidades e ciência acerca do poder curativo de plantas e domínio no campo astrológico.

Ainda, conforme o autor, neste momento do processo evolutivo, a prática médica começa a sair de um caráter mágico rumo a uma base fundamentada no método científico no decorrer dos tempos (MARGOTTA, 1998).

Sournia (1992) corrobora argumentando que a medicina no seu início tendo um caráter mágico e posteriormente religioso, foi paulatinamente tornando-se científica, ou seja, fundamentada na observação racional utilizando-se do método experimental. Diferentes autores não entram num consenso acerca de uma data relativa quando se deu esta virada. O fato é que muitos autores a situam na metade do século XIX, com Claude Bernard, diversos autores no instante do achado da bacteriologia por Pasteur, e outros estabelecem-na na década de 50, com os admiráveis avanços da bioquímica e da genética.

Entretanto, na Idade Média, Piletti e Piletti (1990), analisam que as ciências não progrediram muito na sociedade do período medieval ocidental. A maioria dos sábios e cientistas deixou para trás a observação da natureza e a experimentação.Restringiram-se aos documentos já escritos. A ciência adquirida pelos antigos era aceita como verdade absoluta.

Ainda como argumentam os autores, na Idade Média importante parte dos trabalhos foi dispensada ao conhecimento teológico e filosófico. Os religiosos, os únicos que se dedicavam aos estudos na época, não davam importância ao saber da natureza. Assim, uma vez que a vida intelectual era centralizada nos mosteiros fez com o estudo da religião tivesse maior significância do que o estudo das ciências naturais (PILETTI e PILETTI, 1990).

Evidentemente que, neste ínterim, foram inúmeros os progressos na medicina e na própria saúde, não apenas no que se relaciona ao aperfeiçoamento das técnicas, mas verificam-se também implicações no campo intelectual.

O pensamento humano se desenvolveu sob tendências teóricas que repercutem na prática de diferentes setores da Sociedade. O Cartesianismo, o Iluminismo e o Positivismo, têm ideias que refletem, por exemplo, na educação, na tecnologia, nas ciências e na própria saúde.

A Idade Moderna é marcada, para Aranha e Martins (1993), pelas ideias do filósofo francês Rénè Descartes, expressão máxima do Racionalismo. Seu pensamento por meio do "Cogito, ergo sum", (Penso, logo existo), desemboca no dualismo psicofísico. O que resulta, portanto, numa fragmentação do ser humano através da separação do corpo e da consciência.

O Iluminismo, para muitos autores tem suas origens na antiga cultura judaico-cristã.

O Iluminismo influencia o século XVIII com sua ideologia pautada na razão como única forma de desenvolvimento humano. A Ilustração enfatiza, sobretudo, um caráter cientificista no desenvolvimento das ciências, implicando, assim, em emersão de mitos, a exemplo do mito do cientista. O filósofo alemão Kant, expoente do ideário Iluminista em seu país, utiliza a expressão latina "Sapere Aude" que significa 'ter coragem de usar seu próprio entendimento', este dístico é o princípio básico da Ilustração (ARANHA e MARTINS, 1993).

No entanto, (ibidem), como ponderam os filósofos frankfurtianos, o Iluminismo tem como conseqüência o mito do especialista. A ciência e a tecnologia, mesmo que sejam, expressões da racionalidade, causam paradoxalmente resultados irracionais, cruéis, sendo que a razão é colocada a serviço da destruição da natureza, da alienação humana e da dominação (ARANHA e MARTINS, 1993).

A Razão Instrumental, segundo Silva (1997), nasce com os frankfurtianos, na chamada escola de Frankfurt, tendo como figura exponencial o filósofo Horkheimer, fundamentada num método que procura manipular e dominar a natureza através da razão, desenvolvendo complexos processos técnico-científicos.

O Positivismo, segundo Aranha e Martins (1993), é a corrente do pensamento humano desenvolvido no século XIX pelo filósofo francês Augusto Comte, que tem como tema central abandonar o pensamento metafísico e evidenciar somente a objetividade dos fatos.

Assim, segundo Aranha e Martins (1993), ainda no século XIX, o método positivista exalta o saber científico, excluindo outras formas de conhecimento como o mito, a religião e até a filosofia, tidas como manifestações inferiores e desvinculadas da experiência humana.

Neste sentido, tendo por base as correntes do pensamento humano que têm influenciado ao longo do tempo, diferentes segmentos sociais e a própria saúde, como o Cartesianismo, o Iluminismo e o Positivismo, vê-se que estas tendências desembocam respectivamente numa prática fragmentária da assistência em saúde que dualiza corpo e mente, isto gera o mito do cientista, que põe o profissional numa posição de superioridade em relação ao indivíduo, desconsiderando o diálogo e que resulta em lidar apenas com os aspectos fisiológicos e biológicos do adoecer e, consequentemente, em não levar em consideração a subjetividade humana.

Embora tenha se avançado muito científica e tecnologicamente na medicina e na saúde, há uma preocupação constante na formação do profissional da saúde atualmente. O que tem resultado, segundo Buchalla (2004), numa introdução, nos cursos de graduação, de disciplinas das ciências humanas e sociais.

Nogueira-Martins (2003) assinala que determinados aspectos são necessários não somente durante a formação do profissional, mas também na educação continuada, sempre num aperfeiçoamento contínuo da formação do profissional, sobretudo na função de quem presta cuidados.

No entanto, a formação profissional seria um caminho percorrido incessantemente e não somente um instante inserido na vivência acadêmica. O profissional não estaria em tempo algum num estado de completude, uma vez que o conhecimento é continuamente aumentado com o decorrer do tempo (BRASIL, 2002).

Nogueira-Martins (2003) corrobora enfatizando que, na função de "cuidador", é relevante que seja dada uma atenção adequada à ambiência onde ocorre o ensino-aprendizagem do estudante, com o propósito de minimizar ou mesmo eliminar situações estressantes, sobretudo no começo dos atendimentos, para que ele tenha condições de entender, organizar e integrar a situação problema. Em oposição, um ambiente educacional de intimidação, tende a aumentar o estresse dos estudantes.

Nogueira-Martins apud NOGUEIRA-MARTINS (2003) aduz que outro empreendimento pertinente, trata da inclusão do aspecto psicológico durante a formação do aluno da área da Saúde. A prática de sensibilizar o estudante no que se refere à dimensão psicológica - estímulos para o exercício profissional, projeção da função profissional – e a maneira como o acadêmico reage no decorrer do curso é um ponto fundamental.

A inserção do saber acerca da natureza humana e o acréscimo de ações de valorização do indivíduo contribuem para uma prática humanizadora da atividade profissional. A relevância das dimensões psicológica e antropológica no âmbito da Saúde torna a introdução destes teores uma medida prioritária nas grades curriculares. Assim, as disciplinas humanísticas colaboram para um novo horizonte de prática assistencial no âmbito da Saúde, inquietada não somente com práticas curadoras e profiláticas, mas também com a melhoria da qualidade vida dos indivíduos (NOGUEIRA-MARTINS, 2003).

Para Trindade et al. (2005) a criação de uma consciência humanística e social, resgatando a proposta de entender a conduta diagnóstica como algo que se sobrepõe aos aspectos orgânicos e que leve em consideração as dimensões psicológicas e sociais, contribuem de forma significativa para que o profissional em formação entenda melhor os casos que são estudados.

Deste modo, na argumentação de Trindade et al. apud AUGUSTO (2008) a formação dos profissionais tendo por base uma prática que integre não somente aspectos fisiológicos, mas também psíquicos e sociais tem sugerido uma forma mais apropriada na consecução de ações humanizadoras, que permitam abranger a dimensão psicológica do indivíduo.

Contudo, Aguiar apud Augusto (2008) lembra que os saberes científicos de caráter biopsicossocial inerentes às ações da medicina são imprescindíveis a uma prática profissional não impositora, apta para negociar procedimentos com base nas expectativas dos indivíduos, familiares e sociedade. O Ensino na Medicina inquieta-se a partir de então em instruir profissionais com qualificação para desenvolverem ações que vão além da dimensão técnica acerca das enfermidades, portanto, uma assistência humanizada, propensos para compreender a si próprios e os outros indivíduos, uma vez que na sua atividade é relevante enfocar uma dimensão histórico-sócio-cultural.

Faz-se necessário até o momento da discussão ressaltar a fala de Casate e Corrêa (2005) quando atentam para o fato de que é importante investir no profissional de saúde objetivando qualidade do atendimento, levando em conta algumas circunstâncias desfavoráveis no exercício da profissão identificadas como "desumanizantes", por exemplo, má remuneração, escassez de profissionais e excesso de trabalho.

Neste sentido, é oportuna uma abordagem no que concerne a uma perspectiva de formação médica humanística consolidada por pressupostos pautados na Antropologia da Medicina, na Filosofia Médica e também na Psicologia Médica.

Para Brasil (2002) o conceito a ser posto em evidência é a de que o ser humano não é um conjunto de partes mecânicas e que a melhor maneira de entendê-lo é, numa proposta Fenomenológica, e acompanhar o aparecimento e a totalidade de uma particularidade.

É oportuno, neste momento dos questionamentos, um levantamento de correntes do pensamento humano com um enfoque humanista, como por exemplo, as Fenomenologias Husserliana e Marxista. Desta forma, vê-se que estas são tendências que vão ao encontro ou, ainda, resgatam a integralidade dos aspectos envolvidos no processo saúde-doença, distanciando-se, portanto, de uma visão compartimentada, característica do atual modelo biomédico dominante em saúde.

No que se refere ao pensamento Fenomenológico Husserliano, parafraseando Triviños (1987) analisa-se o fato de que Husserl põe em destaque o termo grego "epoché" (pôr em suspensão), como forma de chegar à essência humana (eidética).

Através da redução psicológica e da redução Fenomenológica ou transcendental, ou seja, por meio do ato de desnudar-se de pré-conceitos é que se pode enxergar o fenômeno manifestando-se.

Para Husserl apud Junior (2006), trata-se a Redução Psicológica, em não aceitar o aspecto empírico do que se apresenta ao espírito como modo de chegar ao verdadeiro saber. No momento em que tudo (até mesmo as outras pessoas) estiver posto em suspensão, se dará então a primeira parte da Epoché.

Ainda, a Redução Fenomenológica ou Transcendental diz respeito a uma atitude natural que não se restrinja à maneira como nos interagimos com o que é exterior a nós; até mesmo com o que se pensa e o "eu", podem ser vistos como algo externo. É sugerido que coloquemos em suspensão a consciência, o "eu" e os seus atos. É necessário pensar o que já foi pensado (reflexão transcendental) (JUNIOR, 2006).

Para Junior (2006), tendo por base os pontos abordados por Husserl, é provável idealizar uma qualidade de escuta que leve em consideração aquilo o que foi falado e o que foi silenciado. O que implica numa prática que transcenda o ego cogito do Cartesianismo rumo ao ego cogito cogitatum do método Fenomenológico Husserliano.

Segundo Triviños (1987), observa-se a problemática de que a Fenomenologia tem sofrido críticas de um caráter de a-historicidade, cogitadas, principalmente, por países em desenvolvimento. Críticas estas, advindas em razão de esta vertente do pensamento humano não considerar todo o desenvolvimento histórico, político, econômico e cultural que veio fazer com que determinada realidade se configurasse, a exemplo do modelo biomédico hegemônico em saúde influenciado por pressupostos ideologizantes ao longo do tempo.

Porém, o método Fenomenológico através das reduções, tão pouco preocupado com o caráter de historicidade, procura resgatar o senso de humanidade perdido nas práticas médicas, isto é, o cerne é a subjetividade com suas especificidades.

Nesta mesma linha do pensamento Fenomenológico, é oportuna a fala de Nunes (1991), quando diz que o que de fato é relevante e pertinente acerca da Fenomenologia fundamenta-se no que estaria influenciando o ambiente do indivíduo, conturbado por fatores extrínsecos que estariam a todo o momento afetando o seu mundo ou universo particular. O que implica, assim, numa atenção aos pormenores da vida psíquica.

Segundo Alves (2006), nesta contemporaneidade, percebe-se uma visão que tem como primazia, em trabalhos sócio-antropológicos, em saúde, aprender a vivência da dor, em razão de algum processo mórbido.

Ainda, genericamente são pesquisas de cunho Fenomenológico-hermenêutico pautadas num entendimento de como o doente vivencia a passagem pelo sofrimento ocasionado pela doença e qual a sua repercussão na vida. Como enfoca o autor acerca da temática, são pesquisas que tiveram seu início nos anos 80 e que primeiramente estavam voltadas para a interpretação de doenças crônicas, e que tais estudos passaram a ocupar, nos últimos tempos, a maior parte das áreas de interesse das ciências sociais em saúde (ALVES, 2006).

Para Alves (2006) os pressupostos e correntes das análises sócio-antropológicas tradicionais são chamadas de "teorias sistêmicas". A primeira importante orientação de base sistêmica foi formulada por Parsons (1951). A abordagem parsoniana parte do ideário de que a prática médica consiste num sistema, um campo de interação social, e não apenas na aplicação tecnológica de saberes científicos.

Ao longo do tempo, a prática dos cuidados no âmbito da Saúde vem avantajando e exaltando a aplicação da tecnologia em prejuízo da relação profissional-cliente. O significado humanizador do direito a uma assistência, quase que não é vivenciado como categoria de princípio das políticas de amparo à saúde dos indivíduos (BRASIL, 2002).

Alves (2006) corrobora dizendo que o fato de o modelo biomédico atual em saúde preocupar-se com a doença, evidenciando apenas os aspectos fisiológicos manifestados, se dá em detrimento do sistema de crenças e valores dos indivíduos leigos.

Cassorla apud Trindade et al. (2005) põe em destaque o fato de que o médico transforma-se num técnico onde sua prática profissional vincula-se a identificar a parte doente e restaurá-la. Com embaraço para lidar com a dimensão emocional dos indivíduos e de si próprios, muitos médicos, procuram se desvencilhar dessa dimensão, restringindo sua prática aos aspectos biológicos.

Para Aranha e Martins (1993) a psicanálise está inteiramente relacionada com o método Fenomenológico. Assim, citando o filósofo francês Merleau-Ponty, a terapêutica freudiana efetua um processo de cura por meio da interação e de uma relação de confiança e segurança entre médico-paciente. Portanto, numa análise do que está por trás do óbvio e do dado, ou seja, o que já adentra na subjetividade e intersubjetividade humana.

Numa apreciação crítica do desenvolvimento histórico do conhecimento científico, Caprara e Franco (1999), aduzem que a ciência, em uma época não tão distante, tem sido exaltada ao extremo, implicando no advento de uma realidade pautada em mitos, como por exemplo, o mito do cientificismo, bem como o mito do cientista. Desta forma a classe médica tem adquirido status de caráter hegemônico ao longo de todo um contexto histórico.

Acerca do "mito do especialista", Alves (2000) considera que, a prática comunicativa pautada em mitos seria de certa forma um empecilho no desenvolvimento de uma habilidade comunicacional, tanto do profissional, quanto de quem vai em seu auxílio.

O médico, na sua prática ou na sua relação com o doente, estaria desconsiderando o diálogo, uma vez que esta é a melhor forma de adquirir uma inteira compreensão do estado de saúde do paciente. O que o coloca, portanto, numa posição de superioridade ou de distância do contato com o paciente.

Para Freire (1987) a dialogicidade se impõe no encontro dos indivíduos, intermediados pelo mundo, para transformá-lo, não se exaurindo, por conseguinte, na convivência eu-tu. Se a palavra surge então como prática modificadora da realidade, os indivíduos a transformam, a atitude dialógica se mostra como via através da qual o ser humano ganha sentido enquanto ser humano.

Portanto, Freire (1979) aduz que o indivíduo não pode refletir só; não pode raciocinar sem a co-participação de outros indivíduos na atitude de refletir acerca do objeto. Não existe um "penso", mas um "pensamos". Por conseguinte, o ato comunicacional resulta numa interação que não pode ser dissolvida.

Numa referência à fala de Lacan (1998), Caprara e Franco (1999) argumentam a respeito do mito grego fundamentado nas figuras do centauro Chiron, mestre da arte de curar, e do Deus da medicina, Esculápio, ou seja, do médico-doente. Tal médico, por ter vivenciado a dor como paciente, tinha a ciência de efetuar a cura. Logo, o emblema da serpente seria utilizado como simbologia em ciências da saúde por representar o livrar-se do sofrimento por meio da substituição da pele ou rejuvenescimento.

Neste ponto, "acreditamos que a prática médica deveria ser vista à luz do mito de Quiron, considerando que a empatia é fundamental na relação médico-paciente" (TRINDADE et al., 2005, p. 50).

Gallian apud Ferreira (2001) corrobora que a medicina tem principalmente um enfoque humanizador, embora sua prática seja embasada em metodologias que se dão no âmbito das ciências biológicas.

Segundo ainda o autor, a medicina precisa buscar subsídios nas ciências humanas e sociais numa perspectiva filosófica e antropológica (GALLIAN apud FERREIRA, 2001).

Não obstante, Mello Filho (2002) pondera que no surgimento das doenças torna-se fundamental considerar o fator psicossomático. Assim, enfermidades como os cânceres, têm sua origem creditada, principalmente, a ressentimentos e sentimentos introjetados no psiquismo, em razão de processos depressivos, experiências traumáticas vivenciadas na infância e na adolescência, entre outros eventos desagradáveis no percurso da vida.

Embasados em estudos e pesquisas comprobatórios da relação entre mente e corpo no advento de enfermidades em saúde, R e Lewis (1993), inferem que as emoções podem predispor o surgimento de doenças, como as cardiopatias, hipertensão e disfunções circulatórias do sangue.

Os autores apontam ainda, que quando o ser humano encontra-se em determinado estado de espírito, seja depressivo ou felicidade, o organismo ou o cérebro, por meio de glândulas internas, liberam substâncias em menor ou maior grau que irão provocar e gerar doença ou efetuar a cura (R e LEWIS, 1993).

Para tanto, segundo Capra (1982, p. 320) associar as formas de tratamento, tanto as físicas quanto as psicológicas denotará uma importante revolução na prática da saúde, o que implicará no total reconhecimento da interação entre o psíquico e o físico na saúde e na enfermidade.

3-CONCLUSÃO

A proposta da medicina humanizada foi aqui discutida, dialogicamente, numa perspectiva filosófica/epistemológica, procurando fazer uma reflexão acerca do modelo biomédico, portanto, cartesiano, de atenção à saúde. Ela se caracteriza por uma assistência fragmentária e que desconsidera a subjetividade humana.

Historicamente, a medicina inicialmente caracterizada como mágica e gradativamente tornando-se religiosa, evoluiu a passos largos rumo a um caráter científico, não se sabendo precisar o exato momento em que ocorreu tal acontecimento. O fato é que, a arte médica desenvolvida outrora, mantinha de certa forma um vínculo com o doente, o que se perdeu nos dias atuais em razão do acelerado avanço tecnológico que a saúde tem experimentado ultimamente.

Com base na literatura estudada, averiguamos que ao longo do tempo, diferentes correntes do pensamento humano, como o Cartesianismo, têm influenciado várias esferas da Sociedade, inclusive o âmbito da saúde. Assim, a prestação de serviços na Saúde tem exaltado a tecnologia, o que termina por repercutir na assistência ao paciente.

Pode-se dizer que a humanização é um processo multidimensional, complexo e demorado e que requer, consequentemente, um rompimento com o paradigma biomédico hegemônico. O que não irá se dar sem resistências, uma vez que envolve mudança de comportamento, de atitude e nas formas de pensar. Portanto, nessa transição, que se dará gradualmente, é importante conscientizar e sensibilizar profissionais, entidades, sindicatos, associações, entre outros domínios da saúde.

Assim, uma prática humanizada resultará numa nova abordagem da assistência em saúde. Portanto, faz-se necessário, uma atividade que não resulte somente numa abordagem biologicista, mas que leve em conta principalmente a história, a espiritualidade, os aspectos psicológicos e emocionais, as crenças e os valores dos indivíduos, a questão econômica, bem como as representações sócio-culturais.

Portanto, foi feito um breve levantamento do método Fenomenológico, que é uma tendência humanista, que procura resgatar a subjetividade humana, contrária ao ideário Cartesiano e Positivista de dicotomização do corpo e do espírito e exaltação da objetividade dos fatos que desemboca na coisificação do ser humano.

O presente estudo teve como objetivos analisar o processo de humanização da relação médico-paciente, assim como analisar aspectos que demonstrem o caráter hegemônico sob o qual está centrada a saúde, identificando os "princípios mecanicistas" nas práticas médicas e levantando teorias e métodos de humanização do atendimento médico ao paciente.

Embora faculdades e universidades de medicina mostrem-se preocupadas com uma formação de cunho humanístico, não apenas no Brasil, mas também no mundo, alguns avanços podem ser notados como o método humanista "medicina narrativa" desenvolvido pela médica norte-americana Rita Charon nos Estados Unidos. Trata-se de uma prática que os alunos desenvolvem ainda na sua formação acadêmica onde o estudante é estimulado a ler uma literatura sobre a morte, por exemplo, tendo como propósito sensibilizar o futuro médico no seu atendimento ao paciente.

Portanto, desenvolver nos profissionais em formação uma consciência voltada para uma prática que considere os aspectos biopsicossociais na assistência da saúde é fundamental não somente para o médico, mas também para os profissionais da saúde de forma geral. Neste sentido, interessa a todo aquele que atua na área da saúde, uma vez que oferece um meio através do qual seja repensada a sua prática, tendo em vista um aperfeiçoamento contínuo na prestação dos serviços de saúde.

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[1] Acadêmica do Curso de Enfermagem pela Faculdade São Francisco de Barreiras (FASB), cursando o 8º Semestre.

[2] Acadêmico do Curso de Enfermagem pela Faculdade São Francisco de Barreiras (FASB), cursando o 8º Semestre.

[3] Doutor em Antropologia pela Universidade de Paris (Sorbonne), Professor da Faculdade São Francisco de Barreiras (FASB).


Autor: Rafael Coelho


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