CASO DE POLICIA Primeiro Capítulo



Caso de polícia – Uma novela policial

 

 

São Paulo, madrugada da quarta feira, 21 de novembro de 2007. 

São três horas. 

A temperatura é amena, depois do forte calor da tarde e do início da noite.

Ana e Benito, jovens estudantes universitários,  acabam de sair da Boate Mistério, local de encontro de jovens da classe média.

Outro parzinho saiu com eles; são Cláudia e Domingos; os quatro estão bem entrosados, são amigos íntimos de longa data.

Todos estão alegres: o ano está acabando na Faculdade e depois, férias!

Umas longas, merecidas e inesquecíveis férias!....

- “Puxa, esta noite foi excepcional!” – comenta Ana  -  “este novo DJ é excelente, tem muitas novidades, sabe animar uma noitada como ninguém! Gostei muito, mesmo!” 

Os outros concordam, enquanto riem, brincam e  se alfinetam.

- “Onde deixamos o carro?”- pergunta Benito.

- “É ali, bem na porta do Banco da Província de Galkamour. ...” 

 

 (Para esclarecer,  Galkamour é uma obscura província da Ásia Sul Oriental; fica numa das 17.000 ilhas que compõem a moderna Indonésia; orgulha-se de sua pujança financeira, que influencia muitas atividades no mundo todo); .   

 

“... onde estão aqueles dois rapazes japoneses....”

 

(Para esclarecer, os japoneses foram os primeiros emigrantes orientais que  chegaram ao Brasil; depois deles, vieram chineses, coreanos, tailandeses, indonésios,  vietnamitas.... mas se tiverem  olhos puxados são sempre  chamados de “japoneses”. Sem apelação).

 

Os dois rapazes “japoneses” apareceram de repente, surgidos de uma sombra, um nicho na parede, e saram correndo, cada um em uma direção, ao longo do edifício.

 

Não dá tempo de Ana acabar de ouvir a resposta  e o mundo desaba.

Um estrondo seco, seguido por uma violenta explosão que faz sacudir tudo; parte do prédio em frente vem abaixo, vidraças dos andares superiores caem numa chuva de estilhaços, cobrindo a rua toda.

Os quatro estudantes são arremessados longe, o carro explode e pega fogo.

A porta monumental, ricamente trabalhada em bronze, do Banco da Província de Galkamour,  arrancada dos gonzos,  está no chão, retorcida, estraçalhada pela explosão.

Em seguida tudo cai num silêncio estranho, criando um contraponto absurdo ao estrondo. 

Desacordados, ensangüentados, caídos desordenadamente na calçada,  os jovens parecem  marionetes sem fios, abandonadas pelo dono,  dormindo  em poses grotescas.

Poeira, pedras, lascas de vidro e madeira atravancam  o passeio e parte da rua. Algumas vidraças ainda se desprendem, caindo na calçada, estilhaçadas.

A poeira tem um cheiro acre, azedo,  que lembra mostarda.

A fumaça sai do carro destruído  em rolos escuros.

Não há vivalma. 

Logo surgem duas ambulâncias da Santa Casa, luzes piscando, sirenes desligadas; recolhem rapidamente os feridos, antes que recobrem a consciência e somem na escuridão.      

.

 Emiliano Vargas é um rapagão alto, magro, de cabelo ruivo, natural de Alegrete.  Não tem mais que 25 anos e mantém nos olhos vivos o interesse pela vida e por tudo que lhe anda em volta.

Jornalista  recém graduado na Universidade Federal do Rio Grande,  veio para São Paulo logo depois da formatura, dois anos atrás e está  “tomando chimarrão frio”, como sempre diz com sua  pronúncia original, indicando um compasso de espera enervante, ainda que necessário.

Fala com frases incisivas, mas redondas, como se estivessem dançando o maçanico; elas lembram  o passo rápido,  a batida do salto, o tilintar das esporas, as rodadas e as paradas, o cumprimento  apenas esboçado. 

Ninguém diria  que são apenas palavras.

Mas já tinham reparado que as palavras sabem se comportar e se adaptar,  como se fossem seres humanos? 

No modo de falar do gaúcho encontra-se toda uma coreografia, que o reflete e o completa, mas  que poucos sabem reconhecer e apreciar.

Quando fala com alguém, parece envolvê-lo com interesse e paixão; não olha de lado, de relance, fugindo: procura os olhos e os encara,  de um jeito curioso, inquiridor, como querendo saber sempre mais.

Quando aperta a mão de alguém, não o faz por obrigação, mas com gosto, numa pegada firme, como se fosse um cabo de chicote, ou um espeto de picanha. Tem  os modos calmos, mas um jeito direto e impulsivo de procurar respostas; de aprofundar a pesquisa; de ir além, mais fundo. 

 

Emiliano Vargas estava de plantão, às três, quando o telefone tocou: alguém  informou sobre a explosão, deu o endereço e desligou.

As ambulâncias saíram imediatamente, sem esperar uma confirmação; Emiliano estava numa delas, agarrando o gravador e a velha Nikon.

Enquanto os carros corriam pelas ruas vazias, ele começou a imaginar as causas possíveis: uma explosão de gás,  um curto circuito num transformador, um assalto a um  quiosque de auto atendimento.

Mas eram apenas hipóteses. Não havia detalhe algum.

Ao chegar, viu logo que tinha sido uma bomba; fixou na mente todos os pormenores que podia, tentou imaginar a quantidade de explosivo, para fazer um estrago daqueles. 

O flash pipocou diversas vezes, gravando todos os detalhes, antes que, por descuido, desaparecessem.

- Não havia um patrulha noturna por perto? - perguntou  ao policial que atendia a ocorrência.     

- Ninguém, que eu saiba.

- E o que você acha que aconteceu aqui?

- Meu amigo: um policial que se preze nunca “acha” nada; apenas observa,  escuta e passa adiante seu relatório.

- Já sei, já sei; só sabem o que escrevem; depois que escrevem, esquecem – e o relatório desaparece na mesa do chefe. Mas aqui entre nós - que ninguém nos ouça - foi um atentado?

- Não. Por mim, foi apenas um aviso; e não era para ninguém ficar ferido. Esses quatro entraram de gaiato...

 

De qualquer forma, Emiliano aproveitando-se da distração do policial, conseguiu examinar por alguns minutos os documentos das vítimas. 

Tomou nota de tudo o que pôde e recolocou os papéis onde os encontrara.

 

Agora tinha pano para manga, dava para trabalhar a noite toda.

 

 

 

 

Quem diria, depois de um começo de noite apático e sonolento, um fato tão incomum, tão interessante! Já imaginava a manchete sensacionalista, exclusiva, com seu nome no subtítulo, gritado pelos jornaleiros entusiasmados.  

Mas ainda estava longe de alcançar este nível...

 

Voltou ao Hospital numa das ambulâncias,  ouvindo os lamentos indistintos das moças,  Ana e Claudia, ambas em condições bem graves. 

Talas e torniquetes, morfina e soro manteriam estáveis as precárias condições delas, até que chegassem ao Hospital.

 

Ao longo do caminho,  Emiliano começou a montar algumas peças  do quebra cabeças que, completado ao longo do trabalho do dia, no fim apareceria assim:

  

Primeiro, o casal Benito - Ana:

 

Benito é uma figura interessante: estudante “permanente”, incapaz de fazer um esforço para sair da faculdade, ano após ano.

Está hoje com 28  anos e ainda recebe notas baixas.

É o segundo filho de um general reformado, pertencente a uma dinastia de militares, os Irrutie, conhecidos por suas posições conservadoras.

Recusou-se a seguir a carreira do pai. 

Provavelmente é o pivô de alguma complicação,

O seu estado é o que inspira os maiores cuidados: sofreu um achatamento do tórax, tem um pulmão perfurado e  duas costelas fraturadas.

Respira com dificuldade sob uma tenda de oxigênio  e perdeu muito sangue.  

 

Ana,  é uma namoradinha ocasional, que sai frequentemente com ele, à noite.   É estudante de Medicina, não muito brilhante, um pouco “cabecinha oca”; pertence à classe média alta; o pai é  um médico respeitado.

Ela também apresenta várias fraturas, está sendo mantida sedada, enquanto aguarda que seja programada uma cirurgia.

 

Depois, o segundo casal:   Domingos – Cláudia:

Domingos é filho único de um rico proprietário de terras do Pontal, o Dr. Adélio,  figura importante da Sociedade Ruralista.

O Dr. Adélio iniciou justamente esta semana o processo de transferência do seu patrimônio para este único herdeiro.

Domingos é o que apresenta ferimentos de menor gravidade.

Num primeiro exame, viu-se que estava com um enorme galo na cabeça, além de ter  fraturado a clavícula.

Contudo, a concussão que sofreu deixa-o com  a fala e o pensamento embaralhados.

Respira regularmente, sem auxilio externo e recebe no soro pequenas doses de calmante.

Será necessário deixar passas alguns dias, antes que se possa  interrogá-lo. 

E há dúvidas que ele tenha alguma informação importante.

 

Cláudia, que estava acompanhada por Domingos,  é também uma estudante, a mais velha do grupo; tem 29 anos e estuda Psicologia na PUC. É a companhia preferida do Domingos e sai frequentemente com o grupinho todo. Pertence a uma obscura família de ricos comerciantes do Norte de Minas Gerais, envolvidos no duro braço de ferro da política local. Vive sozinha em um pequeno apartamento alugado, perto da Faculdade. É uma irrequieta ativista política e discorda violentamente do pai.

 

 

 

Faltavam dez minutos para as quatro da manhã, quando o telefone tocou insistentemente na cabeceira da cama do Dr. Felipe Antunes, comissário chefe, coordenador das investigações criminais no Estado.

Sessenta e poucos anos, nariz aquilino, olhar penetrante, quase careca; salvo por duas abastadas suíças, que descem até abaixo das orelhas e que o deixam parecido com alguma vaga figura dos livros de história. 

 

- “Antunes” – atendeu ele, com um jeito sonolento, enquanto tentava inutilmente conter um enorme bocejo  – “O que há?”

 

 Todos os subordinados sabiam que não deveriam perturbar-lhe o sono, salvo em caso extremo.  Viu logo que algo de “extremo”  estava acontecendo.

 

Antes que o interlocutor pudesse acabar seu relatório, Antunes estava com todos os sentidos atentos, despertos, em pleno funcionamento.

 

Os plantonistas noturnos, que largariam o serviço em duas horas, não estariam em condições de adiantar muita coisa sobre a investigação;  mas os relatórios iniciais poderiam conter alguma informação de primeira mão, que não convinha deixar de lado.

 

As moças não pareciam pessoas dignas de algum interesse especial; mas os dois rapazes eram seguramente ícones de futuros abacaxis.

 

A violência da explosão, o local, a hora,  tudo indicava encrenca grande.

Quatro feridos graves, indicavam uma encrenca grande.

Meninos de famílias de renome envolvidos, eram pior ainda.

 

Perdido o sono e com a adrenalina estimulada pelos pormenores que tinha recebido,  o Dr. Antunes  foi à cozinha, para fumar um cigarro e tomar uma boa xícara de café.

Era exatamente o contrário do que lhe recomendava inutilmente o seu bom amigo, o cardiologista Dr. Bertinski; e este bem sabia que o Dr. Antunes desrespeitaria, sem hesitar,  qualquer orientação.

- “Sou um velho incorrigível” – repetia sempre, na estrita roda de amigos que freqüentava aos sábados. 

- “Além disso, sou viúvo, sozinho no mundo – meus filhos vivem num mundo diferente, ao qual não tenho acesso – e quero dirigir a minha vida por mim mesmo.”  E acrescentava: “Os conselhos do Dr. Bertinski são bem vindos, e vou arquivá-los  a título estatístico.  Sempre fumei, sempre tomei café; têm sido  minhas atividades preferidas, a vida toda; não vai ser agora que vou desistir...

                                                                                                                                    

Sentou-se à mesa da cozinha, descalço, a xícara de café quente na mão e um cigarro na outra, remoendo seus pensamentos.

 

Os relatos esqueléticos dos investigadores não diziam nada, como tinha previsto; deveria esperar até as sete, para poder pôr em movimento a lenta máquina policial.

 

Acabando de tomar seu café, passou um e-mail em código – mensagem que os chefes de distrito encontrariam na mesa, no início do expediente - proibindo todos, sem exceção, de se manifestarem sobre o assunto. 

 

Era o conselho sábio do seu faro profissional, desenvolvido em trinta anos de carreira; aguçaria assim em todos a vontade de investigarem por conta própria e em sigilo. Com isto, facilitava e aproximava uma solução do caso ...

 

Voltou para a cama às cinco e levantou antes das sete, quando redigiu três documentos:

 

Primeiro,,um comunicado à imprensa; simples, linear, tratando o fato como corriqueiro, sem qualquer gravidade ou implicação.

“As investigações iniciais “ – dizia –  “deixam supor que pessoas despreparadas e imprudentes estavam manuseando indevidamente  algum tipo de  explosivo. O caso receberá a devida atenção. O Departamento iniciará hoje mesmo uma investigação.”

Nenhuma menção aos feridos. Se alguém ficasse sabendo e  perguntasse; paciência;  não seria ele quem ficaria soprando na fogueira.

 

Segundo: uma convocação de toda a sua equipe, fora das dependências da Policia, para logo depois do almoço, num salão de bailes próximo; era o local que usavam, quando o caso exigia privacidade.

 

Terceiro: Um convite para o almoço, ao dr Calequim, amigo fraternal, perito policial e diretor da Interpol, que com certeza a essa altura já estaria com sua própria teoria formulada.  

 

Ao chegar à Chefatura, seus olhos encontraram-se com os da Doutora Ágata,  uma eficiente perita em investigações criminais, recentemente transferida do IML para o Gabinete da Chefatura.

O próprio Dr. Antunes havia solicitado esta transferência, impressionado pela capacidade da moça.

 

Ele não era com certeza o tipo de pessoa capaz de se interessar por uma funcionária; mas o jeitinho dela, sua segurança, seu conhecimento dos meandros da justiça e da policia,  tornavam-na um elemento extremamente valioso na Chefatura.  

 

Apesar do seu esforço para manter uma atitude de policial seca e durona, ela não conseguia disfarçar  o sorriso simpático, o porte elegante, os modos apurados e  desembaraçados que a tornavam quase uma estrela no setor.

 

- “ Trabalhamos muito, esta noite, Doutor!” - disse ela sorrindo, e já oferecendo a xícara de café quentinho – “ Já preparou todos os passos de hoje; não deixou nada para a  sua equipe resolver, puxa!...”

 

O Dr. Antunes pigarreou, colhido de surpresa, mas retomou logo as rédeas:

- Já fez a convocação ao pessoal? O comunicado à imprensa? O convite ao Doutor... você sabe quem...?”.

- “ Sim, doutor. Tudo pronto. Quando quiser, o pessoal o aguarda.”

- “ Não, não; antes temos que receber algum detalhe. Quem está na Santa Casa?”

- “ O Jamil, doutor “

- “ Substitua-o. Quero um controle rigoroso, 24 x 7.  Requisite o Victor. E o Anselmo também.  Os dois juntos são bons. Mande o Jamil voltar para a sede logo depois da chegada dos outros dois. Quero falar com ele.  E por sinal: aquele chato do Emiliano está por lá? ”

 

- ” Sim, doutor; por sorte, ele estava de plantão na hora em que o fato aconteceu....”

- “ Sorte, só dele, você quer dizer. Agora ele vai grudar nas minhas costas até o juízo final...”

– “É; o Senhor vai ter que engolir este sapo, desta vez...” concluiu ela, sorrindo.

 

 

O gabinete estava numa desordem completa.

 

O Dr. Antunes surpreendeu-se a pensar como, em trinta anos de carreira, jamais tinha conseguido manter qualquer tipo de ordem na papelada.

 

Era uma coisa com a qual  não conseguia lidar. E não ia ser desta vez que se daria o milagre... Precisaria aguardar realmente um ato de Deus:

 

“.... e do Caos  criou-se  o Cosmo, e do Cosmo surgiu a luz...”

 

Só assim a mesa do Dr. Antunes adquiriria características comuns.

 

Mas então, com certeza, a partir daquele momento, ele não  conseguiria mais encontrar papel algum...

 

Às nove, o primeiro relatório da polícia técnica foi depositado na mesa da Dra. Ágata, que se apressou a comenta-lo com o Dr. Antunes:

- “Totalmente previsível; a técnica alega que. pelo poder da explosão, devia tratar-se de  4 a 5 quilos de C4 .

O explosivo é usado em demolições, é produzido em pelo menos dez paises e é vendido a quase todos os exércitos do mundo; o que torna impossível  descobrir sua procedência.”

- “ Todas coisas conhecidas. Parece que as tiraram de um  manual; com quem pensam que estão lidando? Com amadores iniciantes?”

- “Contudo” – continuou Ágata – “ estão sendo recolhidos todos os fragmentos, mesmo os menores, para uma análise mais detalhada”.

- “Relatórios são enfadonhos; mas este é particularmente chato!” - estourou o Dr. Antunes. – “Não tem nada de interessante?”

- “Sim: Um pormenor estranho; a explosão foi provocada por controle remoto, usando modelo convencional, montado em um carrinho elétrico.  Obviamente, o carrinho ficou destruído na explosão. Suas peças foram encontradas,  mas não serão de muita valia”.

- “É tudo?”

- ‘Não. A técnica sugere veladamente  que nenhum dos feridos parece estar envolvido no fato. Mas acrescenta, prudentemente: “Pelo que nos foi dado verificar até agora...” Não há mesmo nada que se salve, doutor!” – concluiu a moça voltando para a sua mesa, para atender o telefone.

- “ Sim, Jamil, sou eu , pode falar!” Ficou escutando um pouco, agradeceu e desligou.

- “ Uma pequena novidade, doutor” disse entrando novamente na sala - Domingos, o quarto ferido, está alvoroçado, sob o efeito da pancada e dos remédios. Ele acabou de revelar que viu dois rapazes fugirem apressados, segundos antes da explosão. “

- “Dra. Ágata” – disse ele calmamente - “Vamos estabelecer a pauta para as próximas horas e”...

 Neste momento, entrou no Gabinete o seu velho amigo Dr. Calequim, 

“... e avise o Dr. Calequim que está cancelado o convite para o almoço de hoje.... “

 

“ Convidam e desconvidam a vontade, nesta Chefatura maluca – comentou rindo o dr Calequim – “Deus dá, Deus tira...assim como o Dr. Antunes... “

 

- “E ambos escrevem por linhas tortas...” – comentou a Dra. Ágata.

 

 

 

O Dr Calequim era  diretor assistente interino da Interpol.

Como não existe o cargo de diretor presidente, o diretor assistente é um diretor presidente. Estranhos e misteriosos caminhos da burocracia.

Nem bem terminaram de se cumprimentar efusivamente -  como toda vez que se viam -  o telefone tocou.

Era um telefonema importante do dr Veronik, o experiente e ativo diretor superintendente da policia criminal. 

Toda a conversação se resumiu, de parte do Dr.. Antunes, em uma série de monossílabos, sussurrados entre os dentes :

-  “ Sim.... sim senhor diretor.... sim..... sem dúvida..... sim.... correto....eu entendo; perfeitamente; pode contar comigo, senhor; até logo, senhor diretor. “

Ao fim do monólogo, o Dr.  Calequim caiu numa gargalhada.

–“ Meu amigo, você está sentado numa grande frigideira, com  óleo, pimenta malagueta e quem sabe quantos outros condimentos; e acabam de aumentar o fogo.... Quer que espere aqui, para pegar seus restos mortais, ou passo na próxima segunda feira?”

Riram os dois gostosamente.

Mas o assunto não era para rir. Era uma tremenda encrenca, autoridades políticas e organizações financeiras exigiam respostas. Imediatamente; mas ninguém oferecia um mínimo de pistas, de onde partir.

E a coisa ainda ia piorar.

O Dr. Calequim,  na verdade,  tinha vindo trazer pessoalmente  mais dois elementos complicadores.

Passado o momento de bom humor,   ele reassumiu seu ar profissional e disse:

- Sente-se aqui, meu bom amigo, e respire fundo:

  Nossa testemunha numero um, o Benito,  não resistiu aos ferimentos e não

  chegou a recobrar a consciência; infelizmente, ele acaba de falecer.

 

O Dr. Antunes não mexeu um músculo. Mas estava visivelmente tenso.

 

- Agora temos apenas as duas moças que, caso sobrevivam, só estarão em condições de falar  daqui a dois dias, no mínimo; e o Domingos, que continua fora da realidade. No hospital tiveram a impressão que estivesse sob a ação de alguma droga leve, sabe, aquelas que nossos moços vêm tomando como imbecis, nas baladas. Mas no fim verificou-se que não havia sinais de droga. 

 

- “Sinceramente, duvido que qualquer um dos três tenha algo de valioso a nos contar.” – atalhou o Dr. Antunes

 

- “Por outro lado” – continuou o Dr.Calequim, acabei de receber uma notificação, emitida por nosso departamento de Bruxelas, solicitando a imediata prisão do senhor Karl Brunnensip , cidadão holandês,  residente aqui em São Paulo.”

- “Isto tem algo a ver com a nossa investigação?”

-“Sim: o Karl faz parte do “grupinho” ; ele é um rapaz de trinta e poucos anos, alto, loiro, bem falante, amigo íntimo do Benito e do Domingos; tem saído com eles quase todas as noites e pasme.... trabalha no Consulado da Indonésia, como tradutor.

- “ No Consulado da Indonésia?” perguntou incrédulo o dr Antunes.

-“ Sim; como você sabe, os holandeses colonizaram a Indonésia e muitos deles estabeleceram raízes lá. Quando foi declarada a independência, em 1945, muitos voltaram à Holanda, mas uma minoria preferiu ficar, desenvolvendo suas atividades e criando suas famílias lá mesmo. “

“Como não sabe – e nem poderia saber – a representação diplomática Indonésia delega todo o seu trabalho burocrático e seus trâmites financeiros ao banco da Província de Galkamour.  Preciso dizer mais?”

O Dr. Antunes estava aturdido. A combinação dessas duas notícias era outra bomba.

- “Qual é o motivo do mandado de captura do Karl?  De que é acusado? “

- “ Francamente, não sei. Pode ser um crime comum - um furto, uma apropriação indébita ou contrabando.  Quem tem os pés em dois países, sofre a tentação de se aproveitar das oportunidades...”  

- “ Pensando bem,é um leque imenso:  tráfico de divisas, de armas, de drogas, de mulheres, de órgãos, de selos, de ações, de DVD...”

- “Hoje se trafica de tudo” - concluiu o Dr. Calequim. – “E quase tudo é proibido,  no lugar de onde sai, ou no lugar onde tenta entrar.”

 

Antunes precisava pensar, refletir um pouco sobre o novo panorama que se lhe apresentava.

Não comentou mais nada; agradeceu efusivamente o Dr. Calequim pelas informações, sugeriu que mantivesse o contato e mandou carinhosas lembranças à Raquel, esposa do amigo, que jogava cartas com eles nas noites de inverno. O almoço previsto foi adiado para a semana seguinte.

 

-“ Tome nota, Dra. Ágata, por favor” – sublinhou ironicamente, enquanto o outro alcançava a porta – “algumas pessoas não suportam brincadeiras e ficam possessas, quando lhes tiram da frente o almoço prometido! ”

 

Mas o Dr. Antunes já estava em outra órbita, bem longe da brincadeira do Dr. Calequim. Mais uma vez – a terceira no dia – a falta de informação detalhada colocava-o em cheque, sem lhe dar chance de entender, de equacionar as coisas. 

Era o aspecto pior de sua profissão, o  que mais odiava.

 

Depois que o Diretor da Interpol se foi, chamou novamente a Dra. Ágata.

Ela sentou, com seu porte  elegante na poltrona à sua frente e, encorajada por ele, permitiu-se desabafar:

- “ Bela encrenca, Diretor! Nada mau, para uma quarta feira cinzenta, não acha?”

- “Não brinque com isso, Ágata. Temos que descobrir os motivos, os mandantes, os interessados, as possíveis vítimas, o relacionamento entre tudo isso. Tem uma idéia de  onde começar?”

-  “Se quiser ouvir minha opinião, doutor, sinceramente, ainda não temos nem o crime! Podem ter sido alguns moleques travessos, com vontade de emoções fortes, que prepararam os explosivos plásticos na porta do Banco de Galkamour, só para se divertir.  Vítimas são contingências. Aconteceu. Não fosse por isso, trataríamos este assunto como um caso de mero vandalismo. Até o fim da semana seria arquivado.”

- “ Não, Ágata; tenho um mau pressentimento. Quero ir entrevistar as vítimas...”

- “Mas doutor Antunes, ninguém está em condições de falar. Não adianta!”

- “ Mesmo assim, quero vê-los. Chame meu carro e venha comigo.”

  O tom era peremptório e não admitia discussões.

Seguiram os dois para o Hospital. 

A pé teriam chegado em quinze minutos.

 De carro, demoraram uma hora exata.   

Mas uma outra grande surpresa os esperava:  dois enfermeiros com credenciais falsas, tinham levado Claudia, com todo o seu equipamento, numa ambulância com chapa do interior, que estava estacionada no pátio.

Naturalmente, Emiliano, atento e eficiente, estava com a notícia pronta, com todos os pormenores.

Calmamente, o Dr. Antunes tentou  convencê-lo a  não falar com o jornal. 

 

 

 

Não houve jeito; tentou a via da negociação: nada; tentou a chantagem:  nenhum resultado; o diretor resolveu então  jogar pesado.

- Eu vou processa-lo! -  esbravejou.

- E sob  qual alegação, que mal lhe pergunte?

- Por obstrução à justiça, por ocultação de provas, por entraves à ação policial, por difamação, por atentado ao pudor, por....

- Vá em frente. E o que mais? Posso sugerir mais algum crime?- retrucava o Emiliano divertido, vendo que a barreira do  razoável  tinha sido quebrada.

- Sei lá, alguma coisa encontro, eu juro! Estou cansado de você, Emiliano! Volte para os Pampas, vá cuidar das suas vacas, não fique por aqui me aborrecendo! Toda a vez que o vejo, tenho dor de barriga!

- Segunda porta a esquerda, Doutor! Permitiu-se brincar o Emiliano.

Foi tudo em vão. Emiliano não cedeu um milímetro.

Pior: com esta prova de decisão, de seriedade profissional, conquistou totalmente Ágata, que em dez minutos estava caidinha por ele.

O Dr. Antunes logo viu, mas limitou-se a comentar:

- Ah! Mulheres! Não se pode contar com elas! ”

-“ Porque? com os homens se pode? “ - atalhou ela.

Os ânimos serenaram, quando o Dr, Antunes reconheceu a derrota e aceitou o inevitável: a publicação de tudo o que Emiliano tinha anotado.

 Nesse momento, os dois encontraram-se sentados frente a frente no refeitório do Hospital, trocando dados e teorias; tudo sob os olhares enlevados da Dra. Ágata.

Esses olhares estenderem-se tanto, que por fim o Dr. Antunes explodiu:

- “Pare com esse olhar de peixe morto, que diabos! Ajude-me a resolver o meu problema agora; e depois vamos resolver o seu, mulher! O dever, primeiro!”

Mas, apesar do tom, era apenas uma brincadeira, uma forma de dar vazão à  tensão acumulada.

Eu tenho uma boa teoria – continuou Emiliano, focalizado no problema principal e deixando de lado qualquer outra consideração;    O explosivo se encontrava no próprio carro das vítimas; alguém  abriu o capô, com todo o tempo disponível, enquanto as vítimas estavam na boate; usou a bateria do carro para acionar um timer, não ligado a um controle remoto. mas ao próprio alarme do carro.

Voltou atrás quando o Dr. Antunes explicou a teoria do carrinho de brinquedo.

- Contudo -  continuou Emiliano sem se deixar abater - deve  existir  uma conexão sólida entre alguém  do Banco e alguém do Consulado.

Antunes  pela primeira vez, começava a achar que  as conclusões do Emiliano eram corretas e que o “menino” sabia o que dizia.

-  Só precisa descobrir o movente: quem teria interesse em provocar uma explosão, num evidente ato de ameaça? Não com certeza o Banco; seria um suicídio, não levaria a nada. Só poderia ser o Consulado.

- Venha tomar um café na Chefatura, hoje a tarde, Emiliano – convidou, enfim, o Antunes. – Garanto que será o melhor café de São Paulo – concluiu, apontando com um sorriso para a Dra. Ágata.

Os depoimentos das vítimas, que Antunes imaginara realizar, não puderam ser feitos.  Ana ainda estava sob sedação, Domingos vagueava entre o consciente e os sonhos, Cláudia tinha sido raptada.  Havia que correr muito, para alcançar todos esses fatos.    

 

Logo saíram de lá, para a reunião com o pessoal da Delegacia.

Pequeno detalhes começaram a surgir:

Os dois rapazes entrevistos pelas vítimas, eram coreanos; mas eram apenas dois pichadores, que queriam se manifestar contra a política de empregos do Banco.

Por sorte  deles, ouviram  o ruído do timer e saíram correndo, apenas em tempo, antes da explosão..

Estavam tão apavorados, que se apresentaram  a uma delegacia de bairro e pediram para serem detidos.

O delegado os encaminhara ao Gabinete do Dr. Antunes, que os liberou em seguida. .

A pessoa que tinha telefonado ao hospital era uma faxineira que limpava o terceiro andar do prédio em frente ao do Banco. Viu a explosão, e telefonou apavorada à emergência.

A Dra. Ágata  pediu uma entrevista com o cônsul da Província de Galkamour e outra com o diretor do Banco. Nada mais correto, tendo em vista os danos, o transtorno e o desejo das autoridades,  de esclarecer tão desagradável  acidente e encerrar logo o assunto.

 

Foi atendida de uma forma impecável, destacada, impessoal, como se convém a uma representação diplomática. Anunciou as razões do pedido e a sua disposição de indenizar de forma apropriada os danos, após uma investigação que correria  rapidamente.

 

As entrevistas foram marcadas para a manhã seguinte, sexta feira, às nove.

 

Emiliano, acostumado a manter a sua própria velocidade, matutava diante de uma cuia de chimarrão, tentando juntar os cacos que tinha arrecadado.

 

Claudia tinha sido raptada – era esta a palavra correta, sem dúvida – por uma razão específica. Ou fazia parte da trama, ou sabia da trama....pensou mais um pouco e acabou acrescentando uma terceira alternativa: ela não sabia de nada, era apenas uma vítima inocente, que tinha visto algo que não devia.

 

Mas Karl devia saber. E Karl estava sumido.

 

A reunião do Dr. Antunes e da Dra. Ágata com o diretor do Banco de Galkamour Dr. Chussin, foi longa e desalentadora, porque o oriental não estava disposto a fazer concessões; pelo contrário: só apresentou exigências.

- “Este Consulado foi ultrajado e ofendido; sofreu um ataque infame, traiçoeiro.

É um crime contra o povo da Província como um todo, dentro de um santuário, um território que consideramos protegido pelas salvaguardas diplomáticas” – parou um pouco, estudando a  reação dos visitantes.

Diante do aparente, polido desinteresse,  ele partiu para a “fase dois”:

- “O atentado foi  certamente organizado por algum grupo criminoso local, sob a cobertura de quem sabe quais setores do governo”.

“Consideramos mais que justo exigir não só um pedido formal de desculpas, mas também a prisão e a  condenação dos autores.”

Por fim, protegendo-se de antemão contra uma eventual polêmica, declarou:

- “Nada sabemos sobre qualquer complô, associação, plano, com finalidades desonestas ou ilegais; a motivação do atentado só pode ser política, uma tentativa de desestabilizar a Republica Popular da Província de Galkamour.”

 

Mas a defesa de seus pontos de vista foi tão intransigente, tão agressiva,  que  acabou produzindo um efeito contrário. 

 

Antes de se despedir o Dr. Antunes perguntou, de forma totalmente acidental,  se conheciam, no Banco,  certo Karl Brunnensip.

O diretor fez cara de desentendido, caindo literalmente das nuvens.

-“ Quem? Como se escreve? Porque deveríamos conhecê-lo? Seria um cliente do Banco?”  Não se atreveu a perguntar as razões do interesse do Dr. Antunes.

 (Leia a segunda parte)


Autor: Romano Dazzi


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