Crônica Reflexiva De Rubem Braga



CRÔNICA REFLEXIVA DE RUBEM BRAGA

Camila Magalhães de Lima

Crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser veiculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e pré-determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem.

A crônica é primordialmente, um texto escrito para ser publicado no jornal. Assim o fato de ser publicada no jornal já lhe determina vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas próximas edições. Há semelhanças entre a crônica e o texto exclusivamente informativo. Assim como o repórter, o cronista se inspira nos acontecimentos diários, que constituem a base da crônica. Entretanto, há elementos que distinguem um texto do outro. Após cercar-se desses acontecimentos diários, o cronista sá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não contém. Com base nisso, pode-se dizer que a crônica situa-se entre o Jornalismo e a Literatura, e o cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia. A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está "dialogando" com leitor. Isso faz com que a crônica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista. Ao desenvolver seu estilo e ao selecionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está transmitindo ao leitor a sua visão de mundo. Ele está, na verdade, expondo a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam. Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e literária. Isso contribui também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba se tornando o porta-voz daquele que lê. Em resumo, podemos determinar cinco pontos: narração histórica pela ordem do tempo em que se deram os fatos; seção ou artigo especial sobre literatura, assuntos científicos, esporte etc., em jornal ou outro periódico; pequeno conto baseado em algo do cotidiano; normalmente possui uma crítica indireta; muitas vezes a crônica vem escrita em tom humorístico.

A palavra crônica tem sua origem na palavra grega chronos, que tem seu significado relacionado ao tempo."Lembrar e escrever: trata-se de um relato permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido." (ARRIGUCCI, 1987,p. 51)

Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição...o fato de ficar tão perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da ênfase...Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma belezaou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.(CANDIDO,1992, 13 e 14)

Tipos de crônicas: CRÔNICA DESCRITIVA - ocorre quando uma crônica explora a caracterização dos seres animados e inanimados num espaço. Viva como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme publicado; CRÔNICA NARRATIVA – tem por eixo uma história, o que a aproxima do conto. Pode ser narrado tanto na 1ª quanto na 3ª pessoa do singular. Texto lírico (poético, mesmo na prosa). Comprometido com fatos cotidianos ("banais", comuns); CRÔNICA DISSERTATIVA – opinião explícita, com argumentos mais "sentimentalistas" do que "racionais". Exposto na 1ª pessoa do singular quanto na do plural; CRÔNICA NARRATIVO-DESCRITIVA – é quando uma crônica explora a caracterização de seres, descrevendo-os. E, ao mesmo tempo mostra fatos cotidianos no qual pode ser narrado em 1ª ou na 3ª pessoa do singular; CRÔNICA HUMORÍSTICA – apresenta uma visão irônica ou cômica os fatos; CRÔNICA LÍRICA – linguagem poética e metafórica. Expressa o estado do espírito, as emoções do cronista diante de um fato; CRÔNICA POÉTICA – apresenta versos poéticos em forma de crônica; CRÔNICA REFLEXIVA – reflexões filosóficas sobre vários assuntos. Apresenta uma reflexão de alcance mais geral a partir de um fato particular. É um texto analítico em que o cronista analisa o tema ligado à condição humana. Escrito em 1ª pessoa, a crônica não tem estrutura fixa, predomínio da linguagem coloquial, dialogismo com o leitor, que conferem ao texto um tom de conversa íntima, predomínio de recursos estilísticos: metáforas, comparações analogias etc. O assunto é abordado a partir da visão subjetiva do autor.

Na crônica "EU E BEBU NA HORA NEUTRA DA MADRUGADA", Rubem Braga desenvolve uma narrativa em 1ª pessoa que relata um dia inteiro e ele passa na companhia do Diabo, o qual ele cria uma certa intimidade e passa a chama-lo de Bebu, por Belzebu: "À tarde, eu já não o chamava de Belzebu, mas apenas de Bebu, e ele me chamava de Rubem." ( BRAGA,1998,p31).

Alfredo Bosi tem analisado, com argúcia e fecundidade, o que chama de materialismo animista (porque fundado na junção de corpo e alma), para explicar o modo de ser de toda nossa cultura popular, conforme ela se mostra no cotidiano do pobre. Neste, costumam fundir-se as esferas do trabalho manual, das necessidades básicas, da obrigada e difícil sobrevivência e as das crenças religiosas, superstições, de todo imaginário e produto mental, num mundo misturado e único-mundo esse, ao contrário do da racionalidade burguesa, nem um pouco desencantado, para empregar os mesmos termos de Max Weber utilizados pelo crítico...Ainda no caso de mais modesto de Braga, a crônica toma uma forma realista que se plasma com essa matéria mesclada do cotidiano, aspirando, humildemente, à comunicação humana e fazendo da solidariedade social umvalor básico, a ser buscado sempre, apesar de certo ar de leão-marinho, soturno e solitário, que às vezes mostra o cronista. Sua disposição intrínseca para a percepção do poético no cotidiano popular, além da tendência modernista, via Bandeira, só pode ter sido facilitada e estimulada pela sua formação interiorana, com seus elementos de uma experiência mais socializada, no espaço rústico, à beira-rio ou à beira-mar, pela proximidade das pessoas humildes, que tanto aparecem nas crônicas, no lado de formas do trabalho manual, pelas quais sempre demonstrou o maior interesse e atenção. (ARRIGUCCI,2001, 17,18 E 19)

Nesta crônica referida, Braga desenvolve um processo reflexivo através da apresentação dos fatos. A história é narrada e coloca o leitor diante de diferentes pontos de vista em relação ao Bem e Mal. O diálogo entre Rubem e Bebu, oferece ao leitor a oportunidade de ver o ponto de vista de quem é discriminado, e dessa forma a reflexão surge para o leitor de modo natural. Uma análise profunda de valores sociais e espirituais, vinculados ao modo de vida e cultura popular. A crônica sugere de forma sucinta uma revisão dos conceitos humanos, formado ao longo do tempo. "- Há o Bem e o Mal, mas não é como você pensa. Afinal quem é você? Em que você pensa? Com certeza naquela moça que vende cigarros, de olhos de garapa, de cabelos castanhos..." (BRAGA,1998, P.32)

Na crônica "UM PÉ DE MILHO", o cronista mais uma vez induz o leitor à uma reflexão. A crônica está em 1ª pessoa eapresenta uma narrativa de punho íntimo que revela ao leitor a origem do escritor, seu íntimo e a realidade em que vive. Parece uma meditação lírica de um Eu que narra, mas aparenta estar falando sozinho, recordando e refletindo sobre a própria vida. "Sou um ignorante, um pobre homem de cidade. Mas eu tinha razão..." ( BRAGA,1998,p.42).

Dentro da crônica existe um fluxo narrativo intenso, que oferece ao texto um ritmo que enfatiza o tempo do que é narrado, dando uma importância de destaque à experiência vivida. Além da utilização de metáforas e simbologias que oferecem um lirismo constante no corpus do texto: "... mas na glória do seu crescimento, tal como o vi em uma noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, as crinas ao vento - e em outra madrugada parecia um galo cantando." (BRAGA,1998,p.43)

A crônica se refere à roça e à cidade, causando uma mesclagem entre as duas através do ser humano. Um homem que carrega uma cultura do meio rural, mas vive atualmente na cidade. Resgata sua origem através de um pé de milho, que metaforiza a presença do ser fora do seu habitat natural. Esse resgate da origem confere ao homem um conforto e preenchimento pra alma. " E eu não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador da Rua Júlio Castilhos." ( BRAGA,1998, p.43)

Dentro dessa experiência narrada, o autor oferece ao leitor a oportunidade de fazer uma auto-análise, conferindo a si mesmo seus valores. "No centro da obra narrativa de Rubem Braga estará talvez o desconcerto do narrador tradicional, cujo saber, fundado numa experiência comunitária de outros tempos, perde a eficácia no mundo moderno. É muito perceptível a dificuldade desse narrador para generalizar a experiência pessoal, transformando-a em conselho prático para os outros, ao mesmo tempo que essa experiência em si mesma se vai tornando cada vez mais rala, num mundo que adotou o ritmo desnorteante das mudanças contínuas e imprevisíveis." (ARRIGUCCI, 2001, p.25)

Na crônica "SOBRE O AMOR, ETC.", Rubem Braga trás de forma filosófica uma análise do ser humano e seus sentimentos. O texto parece um monólogo interior, mas oferece diretamente uma mensagem ao leitor, diferentemente das outras duas crônicas, que induziam à reflexão de forma indireta, esta aplica uma análise filosófica do que é o amor e configura a mesma sugerindo-a ao leitor como conselho. O autor busca o leitor para a analise e chama a atenção dele para a mesma conclusão: "De onde concluireis comigo que o melhor é não amar..." (BRAGA,1998,p.89)

A temática do amor é universal, por isso pode ser voltada a todos os tipos de leitores. Rubem Braga, na ausência de assunto ou acontecimentos, busca no próprio âmago a essência do que vai falar. Dentro da falta de assunto, ele retira algo pra ser falado. No caso dessa crônica, Rubem buscou a Razão e o Amor para mostrar dois pólos como opostos e impossível de conciliar. "Têm razão; mas não têm paixão...Assim somos na paixão do amor, absurdos e tristes. Por isso nos sentimos tão felizes e livres quando deixamos de amar...Até que começamos a desconfiar de que estamos sozinhos e ao abandono trancados do lado de fora da vida." (BRAGA,1998, p. 88)

Desde o princípio, deve ter sido difícil dizer, com precisão crítica, o que eram aquelas crônicas. Pareciam esconder a complexidade pressentida sob límpida naturalidade. Disfarçavam a arte da escrita numa prosa divagadora de quem conversa sem rumo certo, distraído com o balanço da rede, passando o tempo, mais para se livrar do ócio e do tédio, sem se preocupar com o jeito de falar. E, no entanto, uma prosa cheia de achados de linguagem, conseguida a custo, pelejando-se com as palavras: um vocabulário escolhido a dedo para o lugar exato; uma frase em geral curta, com preferência pela coordenação, sem temer, porém, curvas e enlaces dos períodos mais longos e complicados; uma sintaxe, enfim, leve e flexível, que tomava liberdades e cadências da língua coloquial, propiciando um ritmo de uma soltura sem par na literatura brasileira contemporânea.

(ARRIGUCCI, 2001, p.6)

Nas crônicas analisadas neste artigo, temos a reflexão presente em todas, as duas primeiras de forma indireta e a terceira como conselho a refletir. Os temas tratados são universais: Bem e Mal, Identidade e Amor (respectivamente). Dentro dessa temática percebemos a polaridade e a tentativa de quebra das mesma, pelo autor – através de análise. Exemplo: com a reflexão passamos a ver a possibilidade do Bem e Mal num mesmo ambiente, da junção da cidade e zona rural, da identidade formada com aspectosculturais diferentes e a convivência da paixão do amornum aspecto racional.

Todas essas análises configuram a visão de mundo do autor, que coloca suas crenças de forma clara excitando o leitor a pensar por um ângulo diferente e descobrir o seu próprio ponto de vista. Mesmo usando crônica narrativa, poética ou filosófica, Rubem Braga dá esse tom reflexivo, que causa impacto no cotidiano do leitor, que passa a pensar em coisas do dia-a-dia, mas que muitas vezes não são analisadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas: as melhores de Rubem Braga.11ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 1998.

CANDIDO, Antonio. A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. In – A Vida ao Rés-do-Chão. Campinas, SP. Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

ARRIGUCCI Jr., Davi. Braga de novo por aqui. 11ª edição. São Paulo:Global Editora, 2001.

ARRIGUCCI Jr., Davi. Enigma e Comentário, ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Editora Schwarcz, 1987.


Autor: Camila Magalhães de Lima


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