Félix e as Maravilhas da Vocação



Uma pessoa que se admirava tanto com o Mundo e que se interessava tanto pela Filosofia acabaria encontrando alguns amigos que também trilhassem o caminho da Sabedoria. Félix encontrou companheiros que se dedicavam de tal maneira aos estudos filosóficos que acabaram se especializando em alguma área digna de atenção.
Um desses amigos era obcecado pelo tema da Vocação, entendida como projeto de vida. Conversar com ele sem falar em Vocação era como encontrar um torcedor fanático do Flamengo sem falar em futebol. É claro que esse amigo não era fanático, era apenas um estudioso que não conhecia um tema mais interessante para prestar atenção do que a Vocação, o qual ele achava mais fascinante do que mulher pelada ou dinheiro ou fama ou poder ou qualquer dessas coisas com as quais a maioria das pessoas acaba gastando o seu tempo. É claro que Félix ficou maravilhado com alguém assim. Além de tudo, poderia ser uma pista na sua busca do ser humano, aquela espécie que estava extinta desde que as pessoas desistiram de ser gente.
Esse amigo, que se chamava Amiel, estava dando algumas explicações para Félix sobre a Vocação, quando interrompeu o discurso para comentar sobre o último problema que enfrentou:
- Félix, meu amigo, ontem não consegui dormir direito... -E Amiel estava com olheiras mesmo! Dava para perceber que andara brigando com Morfeu.
- E qual é o problema que lhe tira o sono? - Félix estava novamente espantado.
- É o seguinte: como é possível que alguém tenha vocação de jogador de futebol?
- Eu nem sabia que isso era vocação...
- Não?
- Achava que as vocações eram maneiras como uma pessoa pode se sentir chamada para viver a vida cristã, isto é, pelo sacerdócio, pelo casamento, como leigo ou como freira...
Amiel interrompeu antes que Félix continuasse a lista:
- Não é nada disso! Estou chamando de vocação qualquer forma de vida humana projetada no tempo, algo no qual a pessoa investe a maior parte da sua vida, de tal maneira que ela acaba se tornando aquilo.
- Então você inclui as profissões nas vocações...
- Até mesmo jogador de futebol! - Amiel concluiu retomando sua idéia original.
- Ah! Mas, se é assim, qual é o problema de ser jogador de futebol? - Félix nunca estranhou que alguém quisesse ser jogador de futebol. Ele mesmo já havia pensado nisso durante a infância.
- Acompanhe o meu raciocínio: se alguém é capaz de escolher a vida de jogador de futebol para realizar a sua vocação, lanço-me a questão: por que eu também não escolheria? E ainda: por que ser jogador de futebol não é melhor do que ser filósofo? E isso fica me inquietando... Algo dentro de mim pede uma solução.
- Não adianta dizer que você não é jogador de futebol simplesmente porque não quer ou não tem aptidão? – Félix tentava simplificar o problema, para que o seu amigo pudesse voltar a dormir na próxima noite.
- Não, não adianta. Preciso saber isso em termos da natureza humana: dada as características essenciais da vida humana, é possível fazer uma hierarquia das vocações humanas possíveis? E se isso for viável, qual vocação será a mais excelente e mais digna para o ser humano?
Os olhos de Félix brilharam, pois Amiel parecia acreditar que o ser humano era, ao menos, uma possibilidade teórica:
- Então você também acredita no ser humano? – Félix perguntou sussurrando para que ninguém mais ouvisse ali no Café.
- Sim, e um dia pretendo me tornar um, quando realizar minha vocação. Esse vai ser o nosso segredo! – Amiel respondeu com um piscar de olhos.
- E você chegou a alguma conclusão sobre a vocação humana? - Félix estava mesmo intrigado.
- Não, exatamente. Tenho apenas uma hipótese.
- Você pode partilhá-la comigo?
- Posso, com todo o prazer, mas tenho reservas em falar coisas das quais não tenho um mínimo de certeza. É apenas uma possibilidade que me passou pela cabeça depois de algumas leituras, conversas e reflexões.
- Mesmo que eu não possa ajudar a dar um grau maior de certeza aos seus pensamentos, gostaria de saber.
- Então vamos lá: acredito que as duas vocações principais para um ser humano são as vocações de Filósofo e de Profeta.
- Nessa ordem?
- Não sei ainda, mas pode ser que haja alguma correspondência entre eles...
- Deixe-me arriscar um exemplo, Amiel: em alguma cultura na qual não haja profetas, pode ser que apareçam filósofos para cumprir um papel correspondente?
- É por aí, mas não vamos deixar que as palavras andem desacompanhadas da Verdade. Lembre-se que a Conjectura e a Opinião não são meios de se atingir a verdade.
- Sim, os meios são cinco, segundo Aristóteles: Arte, Ciência, Prudência, Sabedoria, e Intelecto (ou Entendimento) – respondeu Félix prontamente.
- Poderíamos acrescentar mais três: a sensação, a memória e a experiência.
- Mas estes são últimos são os que temos em comum com os outros animais.
- E é claro que nos interessa mais aqueles que são propriamente humanos, pois queremos entender a Vocação humana.
- Amiel, caro amigo, quando você fala em Vocação, com a boca cheia assim, você quer dizer a Felicidade?
- Apenas se você entender como Felicidade algo que somente se obtém com a realização da vida, isto é, com o passar do tempo. A Felicidade seria uma vida virtuosa e sábia, contemplativa e intelectual, tendo bens corporais e exteriores suficientes para o próprio sustento e para partilhar com os amigos. É que alcançar de maneira constante as disposições de alma conforme a reta razão, orientando-se pelos princípios da Sabedoria imortal exige tempo. Isso seria o resultado de uma vida inteira trilhando o caminho do Bem.
- Do jeito que você fala, parece que a Vocação é algo interior, algo que diz respeito essencialmente à alma do indivíduo.
- E como seria diferente se estamos falando da vocação do homem feliz e virtuoso? Mas lembre-se: o sábio buscaria a Sabedoria mesmo que isso não lhe trouxesse a felicidade.
- E isso seria possível? O que você quer dizer com essa distinção entre Sabedoria e Felicidade? Elas não são equivalentes?
- Elas se equivalem quando a consideramos como bens puramente espirituais, caríssimo amigo, mas lembre-se que vivemos no mundo sublunar. È aqui na Terra que temos as condições concretas da nossa vida.
- Você quer dizer que nas condições concretas da vida humana, a Felicidade e a Sabedoria nem sempre estarão juntas?
- Sim, pelas próprias tensões essenciais da existência humana.
- Então, o sábio poderia ser infeliz!
- E não é isso que acontece geralmente, amigo Félix?
- Acabei de lembrar-me de Sócrates condenado a tomar cicuta depois de uma vida dedicada à busca da Sabedoria.
- E até mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo foi condenado a uma morte muito infeliz. E quem diria que ele não cumpriu a Vocação que o Pai celeste lhe deu?
- Seria um ímpio quem dissesse algo assim!
- De fato...
- Amiel, você quer dizer que a realização da Vocação é mais importante do que a obtenção da Felicidade?
- Essas questões ganham mais realidade quando se tem mais compreensão do que venham a ser a Vocação, a Felicidade e o Ser Humano; se não, logo continuaremos tomando decisões irracionais, provavelmente movidos pelas paixões do prazer, da riqueza e do poder...
- Você está querendo dizer que inevitavelmente nossa vida ganhará a forma da nossa Vocação e que precisamos de conhecimento para que essa forma seja boa e virtuosa?
- Sim, pois o conhecimento pode iluminar o caminho da nossa vida...
- E não é qualquer conhecimento que interessa?
- Deve ser um conhecimento que se relacione essencialmente com o desenvolvimento da Vocação: deve-se saber o que é o ser humano e o que é a essência da vida que se vive concretamente.
- Sabendo o lugar do ser humano no Cosmos, pode-se saber qual é o tipo de vida que convém... – continuou Félix empolgado.
- E aí fica mais fácil escolher um estilo de vida que constituirá a Vocação individual. Muito bem, Félix!
- Obrigado, apenas estou tentando acompanhar o seu raciocínio... – respondeu Félix humildemente.
- Mas é preciso conhecer a si mesmo e, conhecendo a si mesmo, não mentir a si mesmo sobre aquilo que sabe...
- Ser honesto para si mesmo: apenas dizer que sabe o que realmente sabe e não dizer que sabe o que não se sabe...
- Você sabe isso de cor, amigo Félix, mas também sabe quão difícil é colocar isso em prática.
- Sei: só minto quando respiro... – mentiu Félix.
- Mas só mente compulsivamente quem quer!
- Porque um hábito já está relacionado com a vontade que decide repetidamente a favor de um certo ato ou de uma certa paixão.
- Félix, eu viraria a noite filosofando, mas tenho que dar aula agora. Você lembra que eu tinha avisado, não é?
- Infelizmente, caríssimo amigo – lamentava-se Félix, enquanto Amiel colocava o volume das obras completas de Aristóteles debaixo do braço e pegava a pasta repleta de livros didáticos de francês.
Félix não gostava de despedidas, mas estava muito satisfeito por ter encontrado alguém que partilhava sua crença no ser humano e também desejava tomar uma posse mais firme da própria inteligência e da própria consciência moral.
Autor: Carlos Vargas


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