Deus o Ventríloquo e a Bengala - Inteiro



Pelas frestas da cortina espreita alguns raios do sol avisando a humanidade que o dia amanheceu. Aquecendo tudo que toca e iluminando os vultos que regressam de mais uma noitada.

Passam-se mais algumas poucas horas e a luminosidade toma conta de um quarto num apartamento modesto e simetricamente arrumado.

Ao abrir os olhos, um ser meio gordo com a barba por fazer e cabelos pintados, para esconder o grisalho, boceja e se estica.
- Levante vamos! Diz pra si mesmo.
Mais uma esticadela e uma coçada na saliência abdominal, fazendo escapar um sussurro mal cheiroso de meio tom.

Já na cozinha Dna Benedita, se você a imagina negra e gorda errou profundamente, loira cabelos curtos e olhos lindamente azuis, corpo esbelto digno de quem pratica exercícios físicos e se preocupa com a saúde, preparou o café de acordo com o gosto patrão.

Café preto com duas gotas de leite, pão esquentado na frigideira, levemente amanteigado e uma fruta qualquer.

- Bom dia Benedita!
- Bom dia seu Irineu, o dia está lindo lá fora.
- Pois é vou dar uma caminhada depois do café.

Ao caminhar pela calçada da praia de Copacabana, claro! E vislumbrar a grandiosa quantidade de glúteos desfilando num vai e vem aguçado, dá graças a si por essa criação e se sente o dono do mundo.

Ao passar por uma esquina atravessa a rua e entra em um boteco disfarçado de lanchonete. Senta-se numa mesa, quase na calçada, e logo um serviçal vem cumprimentar-lhe intimamente, pois esse “fregueis” vem todo dia e sempre dá uma gorjetinha, mas o que gosta mesmo é o papo, já que neste horário não tem muita gente pra atender.

- O velho parece maluco, certo dia quis me convencer que era Deus! Imagine só se Deus estaria aqui na terra, ou melhor, morando na praia de Copacabana e tomando vodka com cynar todo dia pela manhã entupindo-se de coxinha de camarão!
- Mas seu Irineu é gente fina no natal ele me deu um panetone!

Alguns goles lhe proporcionam assunto a dar com o pau em seu devaneio lúcido de um Deus desgarrado. Logo começa observar as outras mesas, e imagina uma melhor posição para distribuir no espaço, percebe que uma das cadeiras não está em sintonia com o ambiente, foi encostada na perna direita da mesa e não se encaixa no jogo. Pior tem uma meio amarelada. Por que entre um monte de cadeiras plásticas brancas tem uma amarelada? Seria do sol ou sujeira mesmo?

Fabiano, o garçom que se apresenta como auxiliar de caixa e é pai de santo nos fins de semana, se achega sorrindo e diz:

- Então tem assistido aos jogos da copa?
- Claro! Eu iria perder?
- O que achou do Brasil?
- Acho que o Ronaldo está gordo! Parece uma orca na banheira do gol esperando a bola chegar aos seus pés pra ele tentar chutar pro gol!
- Acho inclusive que vocês deveriam era torcer em Outubro e não agora!
- Como assim em Outubro e não agora?
- Pois é em Outubro tem eleição e se vocês tivessem a mesma crítica pra política quanto tem pro futebol não seriam enganados com tanta freqüência. Gentinha tosca!

Seus pensamentos estavam fervilhando, motivados pelos goles, mas as cadeiras não lhe saiam da memória. Neste instante começava a ouvir vozes em várias línguas inclusive em português. Chamava-lhe de cada nome que era impossível prestar atenção nas palavras de justificativas de Fabiano quanto à copa do mundo.

- Traga-me outro!
- É pra já patrão.

As vozes eram orações e às vezes simplesmente indagações da humanidade, era um incômodo, quase um surto. Por vezes controlado más quando a vodka com cynar fazia efeito, tudo era mais difícil, inclusive controlar os sentidos.

Fabiano lhe trouxera o segundo copo, mas foi devolvido e solicitado para trazer em um copo igual ao anterior. Este tinha a boca larga era liso com uma fina faixa preta na borda. O segundo era do mesmo modelo, mas sem a faixa.

- Ah, por favor, troca esse copo e me traga num outro igual a este, senão minha mesa fica bagunçada.

Parecia de propósito, Fabiano sabia desse “probleminha” de Irineu. Certa vez quase morreu quando uma coxinha estava maior que as outras.

Retomando os pensamentos e as vozes a encher-lhe o saco, recomeça sua epopéia mental:

“Você acredita que o homem se tornou tão dependente que é incapaz arcar com suas próprias decisões? Dei-lhe tudo que ele precisa e mesmo assim eu não tenho sossego, me pedem emprego; dinheiro; sexo; que o vizinho morra; que sare disso e daquilo; que passe nos exames; que alguém acredite nisso ou naquilo; que alguém não acredite nisso; que engravide que não engravide; que deixe de ser gay; que ache um gay lindo e rico pra casar; morte aos gays; que perdoe isso; que ajude naquilo; que fulano seja bom; que beltrano deixe de ser bobo; que ajude no roubo; que vire gente de bem; que guie fulano que morreu; que mande esse pro inferno; e que se foi assim foi porque eu quis; enfim, se fosse pra eu fazer tudo de que adiantaria o livre arbítrio?”

Novamente a cadeira aparece em sua mente, num impulso levanta-se e arruma a cadeira torta e esconde a amarela dentro do bar.

Bem longe dali, em Belford Roxo...

Um ventriloquista conhecido como Tonho, tentava ensinar algumas lições aos meninos e meninas que em sua volta se acumulavam. Tonho era enigmático, semblante simples e alma calcada por uma vida cheia de magia, sonhos e histórias mirabolantes. Tonho não é de Antônio, mas um apelido simpático pois, chamá-lo de Clarisbadeu era difícil, principalmente para crianças. Clarisbadeu Americano do Brasil Mineiro tinha nascido há 42 anos e desde moleque se interessara por circo, mágica e finalmente por ventríloquo. Profissão essa que julgava ser a mais pura representação da inocência e da infância.

Morava no mundo, Mato-grossense de nascimento, mineiro de nome e Carioca por falta de opção, Tonho era a imagem de um zé-ninguém a quem todos conhecem ou já ouviram falar.

Defendia a infância por achar que era nessa idade que surgiria a base moral e a dignidade do adulto que viria ser.
Com palavras simples e olhos brilhantes o ventriloquista falava:

- Gente, esse é o Finólio, ele gosta de ‘cantá”, “brincá”, “contá história” e até alguns “causo”.
- Que é isso?
- Causo? Causo é uma história de assombração, “lobisomi”, mula-sem-cabeça, saci-pererê, alma penada e outros mais.
- O que é assombração?
- É um fantasma.
- E mula-sem-cabeça?
- Quando o Finólio contar esse causo vocês vão saber o que é.

Tonho posiciona o boneco finólio e com o canto da boca solta uma voz aguda que lembra de uma criança. Todos a sua volta se aconchegam para ouvir melhor. Aos poucos a história se desenrola e toma vida. Tonho tinha um grande talento para contar esses “causos”.

Um garoto de uns 11 anos interrompe o ventríloquo e diz que o Resident Evil 3 é muito mais assustador.

Sem saber do que se trata, mas já desanimando, Tonho continua.

Ao final o ventríloquo se despede, e a criançada com cara de paisagem balbucia algumas palavras de descrédito questionando a veracidade do conto.

Totalmente desanimado Tonho pergunta se o tal de residente três é um lobisomem. O garoto começa a explicar que Resident evil é um jogo do playstation e que tem zumbi e outros monstros que são assustadores, e que ele joga sempre mas já fechou o jogo.

Com cara de quem ouviu alguém falar braile, achando que é uma língua falada, Tonho simplesmente se levanta e sai. Sem nenhuma palavra.

Naquela tarde, depois de anos sem adentrar em um bar, Tonho se entrega a um copo da branquinha. Com olhos arregalados e semblante de lunático ele se sente a própria mosca do cocô do cavalo do bandido. Sentindo-se mais diminuído que o assistente do ajudante do aprendiz de coroinha, ele se pergunta do significado de sua existência e porque as crianças não são as mesmas de alguns anos atrás.

- Deus! Que mundo é esse? Que fizeram com as crianças? Elas não acreditam em mais nada, só querem saber de computador, vídeo game, residente sei lá o que três, internet... O que eu vou fazer?

Terceira Parte
Enquanto isso...

Próximo de uma banca de revistas, um velho grisalho capenga e com cara de quem comeu e não gostou, passa os olhos em algumas revistas, e diz pro jornaleiro:

- Você é tão burro que num sabe escolher umas revistas novas pra trazer pra cá?
- Essas eu já tenho todas, será que tenho de ir a outra banca de novo?
- Ô seu Rômulo, o representante não mandou nada ainda!
- Puta que o pariu, vocês são um bando de veado incompetente.

Depois de salientar sua indignação, por não encontrar revistas pornográficas de acordo com o seu desejo, o velho de bengalas resolve dar uma bisbilhotada em uma coroa que acabara de passar. Aquela sacada autenticamente brasileira no traseiro alheio e a lembrança de quanto era bom uma sacanagenzinha.

De volta pro seu apartamento, próximo à lagoa Rodrigo de Freitas, o velhote tem uma idéia brilhante, contratar uma faxineira boazuda e dar um trato nela.

O velho Rômulo 69 anos era advogado aposentado, sujeitinho grosseiro de raciocínio rápido, humor sombrio e moral mais baixa que a faixa de Gaza. Viúvo declarado e ateu graças a Deus, tinha um filho e um neto. Seu neto pré-adolescente era meigo demais pra andar com o avô machão, advogado depois do doutor Rômulo, como exigia ser chamado. Exceto quando se ocupava em praguejar e ofender quaisquer que sejam as pessoas ou motivos.

Pensou também em tentar usar o computador do filho pra acessar a internet e descobrir alguns sites de garotas de programa.

Na sua bagagem trazia três processos de ex-secretárias por assédio sexual sendo um com uso de violência e nenhum com fato consumado. Não conseguiu comer ninguém. A falecida esposa morreu pesando 120 quilos, e chegou a dizer para a moça da Avon que foi o único jeito de conseguir ser deixada em paz pelo marido que a procurava demais. Alguns anos depois partiu em forma cilíndrica para o mundo do pé junto, engasgada com pizza amanhecida de escarola com frango.

Sua bengala jamais era deixada de lado, mesmo que dela ele jamais precisou exceto para ameaçar alguém. Toda talhada a mão e com o cabo de marfim, dizia ele. Era sua marca pessoal. Importada da Índia, por encomenda havia sido fabricada como peça única de uma árvore qualquer e com marfim furtado de uma alça de caixão por ladrões de túmulos. Peculiaridade essa omitida pelo importador, por motivos éticos profissionais.


Em Copacabana...

Deus retornava pra casa, satisfeito com a conversa de boteco, fedendo a vodka barata e com a bermuda respingada de urina, típico de velhos beberrões.

Já em sua sala Irineu percebe um perfume de lustra móveis no ar. Automaticamente ele se volta para um rack cheio de bugiganga, garrafinhas de uísque, galinho de Portugal, cristais energéticos e seus bibelôs de vidro.

Já debruçado numa ânsia de ansiedade, verifica o estrago causado por Benedita. Mais uma vez ela tirava suas bugigangas do rack para limpar e deixava numa posição diferente da original. A simetria não existia naquela nova arrumação. Ordem de tamanho da composição fôra descartado por completo e isso só simbolizava uma única coisa. A maldita cadeira encostada na perna direita da mesa era um sinal. E a cadeira amarela fora de contexto era uma denúncia anônima de que sua intimidade havia sido invadida tão brutalmente quanto o engate de um vagão com a locomotiva. Horas de dedicação haviam sido jogadas pelo ralo. Imediatamente ajoelhou-se junto ao rack e passou a reorganizar sua célebre coleção de inutilidades.

Quarenta minutos passados, alguns palavrões desatinados e uma angústia sanada, finalizava a arrumação.

Logo que pôde ligou para Benedita e sem mais delongas despediu-a. Prometendo a si mesmo jamais permitir que um absurdo daqueles ocorresse novamente.

Parece brincadeira, mas naquele instante, bem como em outros, Deus estava mais preocupado com suas manias, do que com as fatalidades do mundo.

Que se dane os terremotos, tornados, guerras, papa, dengue e etc.

Cada um com seus problemas, martelava constantemente como um tambor.
A vida é dura pra quem é mole, respondia também frequentemente.

De férias do céu desde o término da segunda guerra mundial, Deus justificava esse período como sendo mais seguro, jamais viria em terra com aquela doideira toda em que o mundo se encontrava, porém começava a se arrepender. Seus afazeres somente se acumulavam:
“Santos pra receber, milagres pra realizar, treinamentos com os anjos, e capacitação com espíritos de luz, eram somente algumas das atribuições deixadas de lado por conta das férias.”

Duas horas e meia depois, muitos palavrões; uma empregada dispensada; um rack organizado; a calma alcançada; um repúdio declarado; que se foda o mundo, de bermuda trocada e arrependido da atitude, Deus liga novamente para Benedita pede desculpas e ela o interrompe dizendo:

- Já sei seu Irineu, uma vez por mês o senhor faz isso, tem um chilique me dispensa e horas depois me recontrata.
- Acho também que o senhor deveria procurar um tratamento, isso não é normal, tenho dito isso sempre e o senhor diz que vai pensar, mas nada acontece. Agora é o seguinte eu só volto a trabalhar em sua casa se o senhor for procurar um psicólogo.
- Tá bom eu vou.
- Então amanhã nos veremos.

No dia seguinte, ao abrir os olhos, dá uma espreguiçada e depois um grande bocejo. Mais uma esticada e uma coçada na velha protuberância abdominal, fazendo escapar um ruído que mais parecia um grito desesperado de um gato sendo atropelado. Incomodando-se com o cheiro forte que tomava conta de seu quarto, Deus se lava no banheiro, faz um xixi básico e segue para a copa.

Já na cozinha Dna Benedita, preparou o café de acordo com o gosto patrão.

Café preto com duas gotas de leite, pão esquentado na frigideira, levemente amanteigado e uma fruta qualquer.

- Bom dia Benedita!
- Bom dia seu Irineu, o dia está lindo lá fora.
- Pois é vou dar uma caminhada depois do café.
- Vai nada o senhor vai procurar a ajuda que lhe falei.
- Certo, eu vou, afinal eu prometi.
- O senhor vem pra almoçar hoje ou vai se entupir de coxinha de novo?
- Eu não sei, acho que vou comer na rua mesmo.
- Certo então, deixe dinheiro para que eu compre mais frutas.

Cabisbaixo e apreensivo Deus, ou Irineu, pega a lista telefônica e passa a folhear algumas páginas até encontrar alguns endereços e telefones de algumas clínicas com psicólogos.

Amilton Martins – Psicólogo, achou no site da internet, consultou o telefone, mas ninguém atendia! Deve estar de férias.

Ana Lúcia Pereira – Psicóloga, achou num catálogo de convênios, também ligou, mas a agenda estava cheia para aquela semana.

Maier Augusto dos Santos – Psicólogo, entrou no site e deixou uma mensagem, mas possivelmente retornaria somente no dia seguinte, não podia esperar.

Yone Felipe Fonseca – Psicóloga, achou um celular que estava caído próximo a um banco no ponto de ônibus. Havia etiqueta colada na parte de trás do aparelho com esse nome e telefone residencial. Ligou e tinha uma mensagem na secretária eletrônica, dizendo que estava em lua de mel, e que retornaria dentro de 20 dias. Deixou recado que estava em posse de seu celular e que o procurasse assim que retornar da viagem para a devolução.

Desanimado tentou mais alguns contatos agora na lista telefônica.

Fez algumas ligações, consultou o valor, pois afinal de contas, Deus não era totalmente provido financeiramente e precisava se conter.

Conseguiu finalmente marcar com um tal de Daniel – Psicólogo.

Marcou para aquela tarde, num consultório em Ipanema próximo de sua residência.

Às quatro horas daquela tarde Irineu adentrava em um consultório simples, mas aconchegante, de decoração leve e quadros de paisagem permeando as paredes de vários tons de verde e detalhes em branco. Os móveis de madeira davam um ar de seriedade requinte e uma pitada de museu.

A secretária solicitou que aguardasse alguns instantes. Passado poucos minutos, um senhor de meia idade sai de uma sala com uma moça parecendo Bete a feia, ela se despede sem levantar o rosto e permanece assim enquanto caminha em direção a saída.

Tão logo a feia sai, o psicólogo dá um aperto de mão em Irineu e se apresenta devidamente e o convida para entrar em uma outra sala.

Dentro da sala de atendimento, o psicólogo Daniel fala um pouco de sua experiência e abordagem, como é sua linha teórica e em casos de atrasos, faltas e férias.

Deus presta muita atenção na sala, e como se estivesse ouvido tudo que o profissional falara, concorda com um gesto.

Logo o Psicólogo pergunta por que Irineu resolveu fazer terapia. O que o estava incomodando.

Irineu se ajeita na poltrona macia, e começa a contar-lhe sobre seus devaneios lúdicos e acrescenta que por ser Deus e estar de férias no Rio acabara adquirindo alguns hábitos e relata todo o incômodo de suas manias. As coxinhas, os bibelôs, cadeiras, livros, talheres e etc.

Com cara de quem tinha ouvido falar o título de um livro qualquer, o terapeuta pede pra ele explicar melhor o fato de ser Deus.

Com voz firme e de tom suave Irineu salienta que o que o incomoda é justamente as manias e é disso que ele quer falar. Que não iria falar de princípio de mundo, porque disso ou daquilo nem de sua existência. Tampouco de quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha, infância, fase anal, oral ou fosse lá o que for.

O terapeuta concorda com semblante natural, e começa a levar o assunto para a questão que o paciente resolveu que seria prioridade.

Ao término da sessão ambos se despedem e combinam o mesmo horário para a próxima sessão, enquanto Irineu efetua o pagamento para a secretária.

Em Belford Roxo...

O ventriloquista finalmente dorme, em um banco da praça em frente ao boteco.

Com um fino cobertor e estômago vazio. Começa a sonhar com um monte de coisas que não faz sentido e derrepente, sente que está levitando, abre os olhos certo de estar acordado e para seu desespero observa seu corpo deitado e coberto no banco da praça. Sem compreender nada imagina estar sonhando, mas percebe que não. Morri! Fala pra si mesmo.

Dá um rasante no meio da praça e circula os postes brincando como uma criança. Derrepente ele percebe que não está sozinho, um vulto quase sólido contrastando com sua aparência esfumaçada sobrevoa a copa das árvores em sua direção num ritmo mórbido e assustador. Olhando direto em seus olhos, um calafrio sacode o corpo abandonado no banco.
Aproxima-se do ventriloquista e pergunta em um tom simpático quase gay:

- Clarisbadeu?

Trêmulo e preocupado o ventriloquista responde:

- s-sim?
- Não se preocupe colega, estou aqui pra te ajudar!
- Então eu morri mesmo?

Sorrindo e com uma leve desmunhecada, na verdade uma desmunhecada quase que interminável a exemplo Clodovil, a coisa responde:

- Claro que não bobinho!

Passa a mão pelo antebraço do ventriloquista como que guiando, e segue circulando pela praça a meia altura e começa a dizer:

- Vim para te dar uma ajudazinha, me chamo Adolf mas pode me chamar de Dodô.
- Ouvi a merda toda que você disse num momento de raiva e resolvi aproveitar o ensejo pra dar uma mãozinha. Na verdade aquele magricela me obriga a vagar procurando a escória inútil e repetir as palavras dele como se eu as estivesse dito, mas deixa isso pra lá.

- Nossa você é um anjo da guarda?

- Ta boa? Já num basta me chamarem de ET, Gost, e etc? Você ainda acha que sou uma coisinha obesa pra não dizer roliça, nua e infantil que toca harpa no céu?
- Ai bofe pelo amor né!
- Digamos que sou um ajudante do destino e tenho uma dívida pra pagar.
- É um preço alto só porque quis definir algumas raças, pois tava tudo tão bagunçado que não resisti.

- Legal sempre me perguntei sobre meus antepassados, se foram artistas como eu, ou alguém famoso ou importante...

- “Energumenozinho” querido você é o que podemos chamar de INDEFINIDO.

- Bem, indefinido já é um nome né?

- Vamos ao que interessa.
- Quer dizer que você gostaria de saber que mundo é esse?
- Bem pra começar se você faz parte dele quer dizer que compartilha de tudo que existe aqui e quem cala consente. Portanto meu amorrrrr! Quem deve prestar contas dessa merda toda aqui é você somado ao restante da humanidade claro!
- Segundo, o que fizeram com as crianças? Meu filho! A coisa anda e nada permanece igual tudo muda tudo se transforma e se você não se transformou junto! - Problema seu querido!
- Quanto a acreditar? As crianças acreditam sim. É só você observar que vai perceber que elas acreditam que quando crescerem serão adultos melhores que seus pais foram, pois estão aprendendo o tempo todo e deixam salientes as mudanças que percebem ser necessárias pra isso.
- Infelizmente a maioria cresce e acaba trocando essas idéias por idéias que envolvem sexo, dinheiro, sucesso e felicidade. Felicidade essa que buscam justamente no objeto errado, lugar errado com a intenção errada e por isso não a alcançam. Porém fazem isso exatamente como seus pais fizeram. Isso torna a humanidade toda um ciclo inevitável de erros e acertos.
- Altos e baixos farão parte da sua vida e da vida de todo mundo. O tempo todo alguém vai achar que antigamente isso ou aquilo era melhor e que agora piorou...
- Um dia alguém vai dizer:
- Ai que criançada mais anti-social, ninguém mais quer saber de bater papo na internet, só usam o computador para compras e shows, etc.
- A eterna mudança meu anjo!
- Tudo muda e até você deveria mudar. Ou você acha que é especial? Acha que vai salvar o mundo e devolver a inocência perdida?
- Aliás você realmente acredita que a inocência é um predicado fantástico não é?
- Mas ela não passa de uma venda nos olhos de quem tem medo de viver ou de pisar no chão.
- Para as crianças funciona, mas para pessoas que como você se nega a crescer, é pura perda de tempo.
- E por falar nisso você só reclama, mas fazer algo de bom nada né? Meu filho deixa de perder tempo e faça algo que te acrescente no mínimo contentamento. Depois procure conforto e virá com aquisição de alguns bens, que de um modo ou de outro existe pra isso mesmo.
- Deixe essa vida de nômade e dê um significado a sua existência.

Já com um bico do tamanho do mundo e cara de choro, o ventriloquista resolve acatar os conselhos de Adolf, e decide mudar.

Questiona o ser alado e pergunta o que deveria fazer da sua vida. Pede isso mais como uma dica, e Adolf sugere entre um monte de coisas a política, o teatro profissional, etc. Todas tendo como característica sua persuasão e criatividade em contar histórias. Poderia usar isso para se colocar profissionalmente. Sugeriu também a Clarisbadeu que achasse alguém para viver um amor. Coisa que nunca tinha feito. E que experimentasse um sexo animal pois valia a pena. E Assim se deu.

Enquanto isso...

O velho Rômulo estava animado com sua idéia de conseguir uma serviçal, que logo passou a buscar uma desconhecida para saciar sua gana física.

Escolha feita com muito tato resultara em uma diarista chamada Alice e digamos de passagem, tinha todos os indícios de quem curtia umas apalpadas se lhe rendesse algo.

Na terceira quinzena de seus serviços prestados e muita secada do patrão, Alice sinaliza um sinal verde pro velho que sem perder tempo dá-lhe uma sapecada enquanto esta se debruçava sem a menor necessidade sobre uma tábua de passar.

Certa de que em algumas horas, o filho de seu Rômulo iria aparecer para lhe falar, persiste na traquinada percebendo as reais intenções do ancião.

Quase sem roupa e rangendo mais que a cama velha do quarto do casal, gasta pelo peso da falecida, Alice se rasga toda e sai gritando pelo apartamento.

Num súbito impacto, Alice dá de frente com Agnaldo, filho do velho, abrindo a porta de entrada do ambiente doméstico.
Mais assustado que a pobre moça, pergunta o que está havendo! O homem idoso logo atrás e também quase nú recorre à mesma pergunta.

Toda ofendida, Alice perpetua sua inocência com a cena e desnuda de arrependimentos se joga aos braços de Agnaldo implorando socorro.
Com cara de madalena arrependida e de moça ingênua, Alice explica que o velho tarado tentara a todo custo, usurpar de suas entranhas labiais inferiores mas que graças a Deus, estava salva.

Agnaldo não precisa de mais nada para compreender o que estava acontecendo.

Fecha a porta e leva a coitada da moça para a cozinha, enrolada em uma toalha de mesa, ela bebe água com açúcar. No seu íntimo Alice sabia muito bem o que estava fazendo e como proceder daquele momento em diante, sabia que tinha conquistado a sorte grande. Quase cantava a música da Ivete...

...A minha sorte grande foi você cair do céu...

Sem palavras o velho tenta explicar o ocorrido, mas seu passado o condena. Desorientado, e sem razão aparente, resolve sair no mesmo instante da sua casa.

A moça vem da cozinha, toda formosa e diz pra Agnaldo que iria até a delegacia mais próxima e faria questão de punir aquele safado.

Inutilmente ele tenta acalmá-la e pede para relevar salientando que seu Rômulo é idoso e tem problemas de solidão.

A moça já mudando de tom e com a face rija como uma rocha, usa sua astúcia para dar-se por entender. Imediatamente Agnaldo tira um talão de cheques da carteira e oferece uma quantia a Alice, para que a mesma se calasse. Ironicamente ela pede o dobro e usando de esperteza ludibria o pobre rapaz rico.

Com um sorriso na alma Alice sinaliza para um taxista e parte para um asilo chique onde visitaria um outro velhinho. Desta vez com os predicados de uma enfermeira particular. Tratava-se de um sogro de um famoso Deputado.

Semanas se passaram, e o velho desiludido e de saco cheio de tanta bobagem dita pelo filho, desiste de tentar explicar que ambos foram enganados e vai a um bingo próximo tentar achar alguém próximo de sua idade e quem sabe finalizar o que havia começado com Alice.

Conhece Dna Fátima, coroa enxuta e disponível mascando chicletes e de bem com a vida. Tão perua que mais parecia uma árvore de natal fora de época, repleta de penduricalhos.
Vários encontros anteciparam o que chamavam agora de uma amizade. Ambos cheios de segundas intenções foram pra casa de Fátima após um jantar que relembraram os tempos antigos.
Cheio de galanteios e elogios em forma de cantada, finalmente o velho Rômulo leva sua melhor e carrega Fátima para cama.

Sussurros, tremores, latidos do cachorro da vizinha, e suor, iniciavam o passar de mãos enrugada examinando a circunferência alheia até que Rômulo pede um tempinho. Vai até o banheiro da suíte, tira um comprimido azul do bolso e toma com água da pia mesmo.

Voltando pro quarto, Fátima aproveitara o tempo ócio para se despir por completo e fazer pose de madona. Exceto pelo volume.

De barraca semi-armada e gritando aleluia, seu Rômulo se entrega a voluptuosidade da ocasião. Foram ambos da hora A até a hora F sem demais problemas.

Até que quando se direcionava para a hora G antes hora H, só pro Eduardo entender, ocorre algo.

O velho Rômulo sente uma fisgada forte acompanhada de uma grande dor no braço, que o faz parar imediatamente. A dor se espalhava rapidamente para o peito e as costas. Apavorada Fátima o sacudia sem parar perguntando o que estava acontecendo...

Rapidamente ela apanha o telefone e chama uma ambulância que não demora ao chegar, pois se tratava de uma parada cardíaca.

O ataque fora fulminante e no caminho do hospital, Rômulo não resiste e morre, e infelizmente Drº Rômulo Advogado não conseguiu o que tanto queria, partindo com seu paletó de madeira tão fino e chique quanto a sua bengala.

Três meses de sessão já haviam passado e Irineu, apresentava uma aparente melhora em suas manias.

Porém a questão de seu paciente se apresentar como Deus curtindo umas férias, ainda deixava Daniel, o psicólogo, meio desprovido da segurança que deveria ter ao tratar de seus pacientes. Sempre que possível ele entrava nesse mérito com Irineu e esse às vezes falava do assunto, mas por várias vezes fingia não ouvir e desconversava.

Um belo dia, Daniel retornava com este assunto e Irineu finalmente aceitava falar do assunto. Depois de explicar algumas das suas funções e descrever sua rotina, dizia que o que realmente incomodava atualmente eram as orações, pelo fato de estar de férias.

Daniel passava a esclarecer sobre o povo sofredor e que naturalmente a demanda deveria ser imensa, ouvir todas as reclamações e pedidos. Que deveria providenciar um modo de dividir essa tarefa com outros na mesma posição e assim fragmentar a grande responsabilidade com outras pessoas.

Tinha que caminhar um pouquinho de cada vez, pois se pegasse firme com Irineu, este iria fugir da conversa como em outras ocasiões.

Dna Benedita percebia as mudanças diárias que seu Irineu fazia. Estava mais simpático inclusive. Diminuía drasticamente o passeio no boteco disfarçado de lanchonete e até pensava em se livrar de algumas bugigangas. Parou de fumar e até fez a barba.

Em mais uma Sessão com Daniel, Irineu trouxe algumas idéias para melhorar sua vida no dia a dia, como dever de casa. Entre outras, achou que seria apropriado, deixar a humanidade por conta de seu próprio destino. Que suas orações formariam uma camada de esperança para cada um que as fizessem. E que desse modo não as ouviria mais, exceto por opção de alguma em especial.

Essa esperança lhes daria força pra caminhar cada dia de suas vidas. Já os pedidos de cura e etc. Fariam parte de uma energia vital dispensada ao moribundo. Cada um que pedisse tal intromissão estaria automaticamente repassando um pouco de sua esperança e da sua energia vital acumulada por momentos felizes que vivia. Este porém era uma pegadinha. Momento feliz não era somente aquele que se fazia feliz por alguma conquista ou tranqüilidade vivida, mas tinha que reconhecer que naquele momento sua felicidade tinha sido alcançada e assim, transformava aquele sentimento em energia para usar nas horas de necessidade, ou doadas a quem precisasse. Irineu tornava assim a existência humana, um ciclo de aprendizado com sabedoria ou sofrimento e felicidade possível a todos que a reconhecesse como momento. Pois felicidade alguma perduraria uma vida inteira, tratando-se de uma energia vital. Teria que ser em doses homeopáticas, acumulativas e de fácil adesão.

As orações estavam sendo redirecionadas para o próprio que a fizera, a humanidade era agora polivalente e auto-sustentável. Logo, dependia unicamente de si para encontrar ou não, o sucesso que desejava e o que chamava de trivial. Saúde, dinheiro, união, paz, etc. Tudo fazia parte de um sistema em que cada indivíduo era responsável por alcançar sozinho ou coletivamente seus desejos e os desejos de um país ou região e assim por diante.

Livre das vozes e com felicidade, (um momento feliz reconhecido), no íntimo, Irineu clareava as idéias para Daniel e explicava o tal ciclo.

Daniel chamava atenção de Irineu para seu horário que finalizava.

Quando Clarisbadeu acordara no banco da praça, com uma sensação maravilhosa, renovado de esperanças e com vergonha de ter feito escolhas ruins para sua vida, decidiu que daquela manhã em diante seria totalmente diferente.

Naquela mesma semana, ele conseguiu um emprego para lavar carros, e aposentou Finólio.

Um mês depois do encontro com o ser alado, Clarisbadeu agora morava em uma pensão, comprou roupas novas e até tinha uma paquerazinha.

Porém queria mais, desejava compensar o tempo perdido. Pensava em se tornar vereador. Mas era um passo gigantesco para um zé-ninguém. Deveria percorrer esse caminho pelas bordas e teve uma excelente idéia.

Começou a freqüentar uma igreja evangélica, escolheu a igreja universal do reino de Deus e lá se infiltrou.

Fez umas doações em dinheiro, e começou a cuidar das crianças nas horas do culto para que estas não atrapalhassem a concentração dos seus pais. A tática deu certo, a igreja aumentou sua arrecadação, pois os pais estavam mais concentrados e livres da desatenção dos filhos.

Com o tempo, foi convidado para fazer alguns discursos, pois perceberam sua facilidade em se comunicar e seu poder de persuasão.

No primeiro testemunho que deu, arrecadou o dobro do valor que seria correspondente ao culto.

Apelidado de Silvio Santos nos bastidores da igreja, por outros pastores, Clarisbadeu mudou de nome e recebeu muitas graças, como uma casa maior pra morar e muitas irmãs prestativas nas horas de solidão. Tinha agora um salário excelente para um zé-ninguém.
Batizou-se como Abraão, a voz de Deus, por apenas trezentos e cinqüenta Reais. Sua atitude levou mais setenta batismos no mesmo dia. Todos queriam estar junto dele, e faziam tudo que Abraão, voz de Deus, fazia ou declarava.

Tudo que toca vira ouro, dizia seus superiores. Finalmente conseguiu tudo que o ser alado, Adolf sugeriu. Contava suas experiências e a conversa que teve com um anjo. Gravou CD, DVD que narrava seu encontro com um anjo. Enfeitou bastante a história e omitiu fatos importantes, mesmo assim vendia como água.

Já tinha uma igreja só pra ele, e nunca mais quis manipular Finólio, que abandonado foi e lá ficou.

Clarisbadeu provou tanto o fel que acostumou. Agora Abraão, voz de Deus, saboreava o mel como ninguém. Compreendia que era mais um no mundo e que as mudanças que procurava tinham de vir dele mesmo.

A alma do velho Drº. Rômulo perambulava pelos quatro cantos do mundo, jamais teve nem paz, nem castigo, pois céu e inferno foram fechados pelas mudanças que Deus se propôs a fazer.

De vez em quando, aprontava em uma igreja evangélica. Tomava o corpo de alguém e fazia o show, até se cansar e fingir ser expulso. Deliciava-se com as orgias do pastor nos bastidores da igreja.

Sempre que se encontrava com outros como ele, perguntava de sua bengala, más ninguém sabia do que se tratava.

Dna Fátima, presenteou a bengala do velho para sua filha Alice, que não era mais nem enfermeira, nem diarista de velhinhos viúvos, mas sim esposa de um deles. Apelidada gentilmente como viúva negra, mas isso já é uma outra história, a bela moça seguia sua vida de olho nos rendimentos e sonhando com o funeral do marido.

Deus finalmente se curava das manias e resolveu tentar um romance com Dna Benedita. Sem obter sucesso em suas investidas, buscava alguma coisa pra fazer, pois como ele mesmo dizia:

- Mente vazia é a oficina do diabo!

Com o tempo, foi treinar como voluntário, um grupo de garotos no futebol de areia. Nos fins de semana era juiz, aproveitando-se do fato de não ter mãe, não era ofendido com os insultos da torcida. Decisão sábia e humilde para alguém tão ilustre.

Como qualquer semelhança é mera coincidência, ficamos a observar a vida de cada um e achar a ligação certa para a história certa.

Insisto em confirmar a veracidade de toda essa história, pois adquiriu vida, forma e tomou um rumo.
Brincando de Deus e de escritor, compartilho minha sábia ignorância que tanto gosto, de um modo versátil, criativo, maldoso e irônico que não sou nem um pouco. E tudo isso para aqueles que me incentivaram desde o início até o fim e por falar nele...FIM.
Autor: Nilton André Cordeiro


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