Reforma Protestante: diálogos e duelos



“A Reforma Protestante representou a grande transformação religiosa da época moderna”
(ARRUDA, José. PILETTI, Nelson. Toda a História. Ática, 2001).


No último dia 31 de outubro fez 488 anos que o monge Martinho Lutero afixou na porta da catedral de Wittenberg, as 95 teses contra a Igreja Católica. A iniciativa de Lutero é tida como decisiva para o fim do monopólio que o papa exercia sobre as almas cristãs. Em poucos anos, como diria o historiador Lucien Febvre, Lutero deixava de ser um homem de importância provinciana, para se tornar uma figura européia.

A figura européia a que se refere Febvre, no entanto, não foi a responsável pela Reforma Protestante. Devemos levar em consideração que o “mundo católico” já estava em plena decomposição. O feudalismo cedia lugar ao capitalismo e toda a herança medieval sofria uma crítica sistemática. A Igreja Católica, por ser o principal sustentáculo da ordem feudal, acabou atraindo contra si a oposição de vários segmentos sociais.

Os renascentistas classificaram todo o período marcado pela cultura católica como uma época de profundas “trevas”. Já os monarcas, criticavam-na pelo fato de ser uma instituição supranacional concorrente, uma vez que possuía tribunal de justiça particular e enviava para Roma, verdadeiros “rios” de dinheiro, oriundos de dízimos, ofertas e tributos.

No campo econômico, a burguesia imprimia forte resistência à tradição religiosa que desprezava a atividade comercial e ao dogma que condenava o lucro e a usura. Por outro lado, a nobreza e os camponeses cobiçavam as riquezas acumuladas pela Igreja Católica, principalmente as imensas extensões de terras. Aos poucos, a Santa Sé ia se tornando o alvo contra o qual todos tinham ao menos uma pedra a lançar.

O famoso jornalista e historiador Leo Huberman após analisar essa conjuntura tão desfavorável à hegemonia católica, afirmou em seu livro História da Riqueza do Homem que a igreja teria perdido o seu poder, mesmo sem a Reforma Protestante. Essa proposição nos leva a aceitar que as causas externas teriam influído mais para o fim da unidade cristã na Europa do que as religiosas.

Sendo assim, o destaque não pode estar na questão da comercialização das indulgências denunciada por Lutero, nem no pecado da luxúria cometido pela “Senhora Feudal”. Mas no fato de que a sociedade que abrigava a proeminência católica estava em franco desmoronamento. A continuidade da união em torno do santo padre era quase impossível. A fissura da cristandade acabou se tornando mais um pedregulho na imensa avalanche que caia sobre a sociedade feudal. A intempérie era geral!

Afinal, o que foi a Reforma Protestante? Dificilmente conseguiríamos oferecer uma única resposta a essa pergunta, caso fôssemos levar em conta a gama de personagens que se envolveram com esse fenômeno. A Reforma estava entrelaçada numa teia de múltiplos interesses. Os resultados não estariam limitados à religião, mas repercutiriam, como de fato aconteceu, nas esferas política e econômica. Por esse motivo, muitos autores hesitam em defini-la como um acontecimento meramente religioso. Engels, por exemplo, ao escrever sobre as revoltas camponesas na Alemanha, referiu-se a Lutero como um “reformador burguês”.

O conceito de Reforma Protestante que temos é o que nos foi ensinado no 2° Grau - um movimento estritamente religioso em defesa da pureza do cristianismo, que culminou com “a quebra da unidade Cristã” (CONTRIM, Gilberto. História e Consciência do Mundo. Saraiva, 2001.), “dando origem a novas igrejas...” (PEDRO, Antonio. História Geral. FTD, 1996.)

Mas o que dizer do fato de que as ordens religiosas criadas a partir do século VI anteciparam em quase oito séculos a crítica que Lutero fez à luxúria católica. Ou o fato de que os religiosos, João Huss e Savonarola, já no século XV, faziam denúncias contundentes contra o papa, pagando com as próprias vidas o que defendiam. O rompimento com o papa seria fatal caso não tivessem sido mortos prematuramente.

Mas alguém poderia afirmar que a Reforma Protestante recebeu uma posição de destaque em nossa historiografia pelo fato de ter posto fim ao monopólio papal sobre o cristianismo. O que diríamos então do “cisma do oriente” acorrido em 25 de julho de 1054? Desde essa data, o Cristianismo já não era mais uno. Passou a existir duas igrejas cristãs, uma sediada em Roma, a outra em Constantinopla. Uma chamada Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a outra Igreja Cristã Ortodoxa Grega. A idéia de uma igreja cristã universal já não fazia parte do imaginário da época dos reformadores.

Então, por que a “seita” luterana do início do século XVI recebe tanto destaque? A resposta está no fato de que somos adestrados a pensar historicamente a partir de referenciais europeus. Nos ensinam a olhar o passado com uma visão de mundo ocidental. A ruptura de 1054 não prevalece por que foi um acontecimento proveniente do mundo oriental.

A verdadeira ruptura do “aprisco” papal deveria vir de uma “figura européia” que estivesse respirando os “ar” da modernidade. Os “tempos modernos” surgem quando a Europa se firma como “centro” da história universal. É como diria o filósofo Hegel, a história da humanidade sai do oriente para o ocidente, já que a missão civilizadora da “razão” passou a ser um monopólio ariano. O processo que deslocou a Europa da periferia do “cosmo” muçulmano para o centro do mundo, foi o mesmo processo que ativou o motor da história em direção ao capitalismo. Fomos ensinados a valorizar a cultura ocidental e desprezar a oriental.

Mesmo a Reforma Protestante sendo a ruptura de uma unidade já desfeita, basta o fato dela ter suscitado o aparecimento de “novas” doutrinas de salvação para incluí-la no rol das parteiras da modernidade. Como afirma o sociólogo Max Weber, as novas doutrinas produziram um comportamento humano mais condizente com o “espírito capitalista”. A Reforma Protestante não foi filha da espiritualidade de Lutero, mas da modernidade da qual fez parte. Qual modernidade? A dos europeus é claro! A nossa ainda está por chegar.
Autor: eduardo de araújo carneiro


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