O ínicio



Os arquivos da agência de notícia Reuters deram conta em quinze de novembro de 1974 de que cinco homens foram encontrados mortos num apartamento em Helsinque. Aparentemente todos haviam sido envenenados mesmo que os exames de necropsia não tenham revelado nada. As autoridades suecas não tinham explicações plausíveis para o ocorrido e um inquérito de homicídio foi aberto.

As identidades dos homens eram de trabalhadores sucos com seguridade social e histórico de trabalho em locais comuns. Dois deles eram funcionários públicos em uma repartição da federação onde trabalhavam como assistentes administrativos, outro era enfermeiro do hospital geral com cinco anos no mesmo setor, outro era membro da guarda metropolitana e um deles era fotógrafo de um jornal local.

A manchete, de pouca visibilidade nacional, não chega a chamar atenção pelo destaque. Conta somente com um depoimento simples do comissário de polícia local, senhor Landgrin, e o que eles sabem é que mesmo trabalhando nesses locais os homens tinham pouco contato com vizinhos ou amigos.

O senhor Landgrin ainda disse que não havia sinais de luta ou arrombamento no apartamento pequeno e pouco mobiliado e que os cinco homens estavam sentados na mesma mesa quando encontrados pela faxineira e todos aparentemente estavam tomando cerveja.

Os arquivos da agência ainda mostram as fotos dos mortos, todos de camisa cinza e calças pretas, como se fosse uniforme de trabalho e calçavam botas pesadas. Ao fundo da sala pode-se vem um tipo rústico de criado-mudo com garrafas de vodca pela metade e de vinho. Não há sinais de sangue no chão de madeira empenada e ao que parece, todos morreram ao mesmo tempo e praticamente na mesma posição.

Não havia impressões digitais na casa que não fossem dos cadáveres e ao final de dois meses de investigações as conclusões foram de suicídio coletivo.

Em um canto da cidade, num terraço de um café escuro sob a névoa da noite e os vapores emergentes da calefação sob a rua, um homem estava recostado tranquilamente na cadeira tomando um capuccino, fumando um cigarro de pernas cruzadas e lendo um jornal.

Entre baforadas azuladas do cigarro sem filtro ele folheava o jornal e parou na coluna policial. O homem vestia terno completo, gravata, capa e chapéu. As abas da capa estavam levantadas o que escondia parcialmente seu rosto. Havia somente mais um casal risonho em outra mesa e um garçom sonolento. Se alguém notasse o homem veria que ele era negro, muito alto e muito forte, de olhos pequenos e profundos, a mão era do tamanho de um prato raso e a xícara parecia um dedal quando ele a pegava.

O homem terminou seu café e saiu pela penumbra da noite calmamente. Parou diante de um telefone público e digitou diversos números.

__Aqui é Hassan, está terminado. Estou retornando.

Mesmo que alguém ouvisse essa frase seria difícil de entender, havia sido dita em árabe egípcio.

Em 1990 os corpos de um casal foram encontrados dentro de um carro abandonado numa rua em Praga, República Tcheca. Havia duas marcas de bala no vidro dianteiro, que não foi estilhaçado pelos tiros.

A perícia policial indica que a arma usada era de altíssimo poder de fogo, porém, de baixo calibre, as testemunhas ouvidas disseram que não ouviram tiro algum, e que somente viram o momento das mortes.

Uma jovem bastante abalada pela cena presenciada disse que olhava o casal porque haviam parado o carro naquele local e que ficaram praticamente imóveis durante quase uma hora. Ela trabalhava numa livraria em frente e ficou olhando de tempos em tempos para ver o que eles fariam, por curiosidade.

Disse à polícia que viu o vidro soltar um pó cristalino e a cabeça da mulher ser jogada para trás. Sem ter tempo para se mover o homem foi o próximo baleado. Tudo em menos de um segundo.

Dois atiradores. Foi o que a polícia desconfiou. Provavelmente eles estavam posicionados no prédio em frente, distante pouco mais de cinqüenta metros na mesma rua com quatro andares, típico da arquitetura local.

As identidades dos dois foram levantadas e pelo que constava dos registros do governo ambos eram cidadãos tchecos, trabalhavam numa galeria de lojas onde tinham um pequeno comércio e quando perguntados, os vizinhos do endereço registrado na companhia de energia disseram que aquele sempre foi um casal tranqüilo, jamais brigavam e conversavam pouco com os moradores.

A síndica do prédio disse ainda que eram discretos demais e que somente recebiam visitas esporádicas, não tinham filhos e jamais chegavam em casa depois das dez horas da noite.

Quem cometeu o crime ficou na cidade durante oito meses até que os jornais disseram que o inquérito policial havia sido encerrado. Ninguém havia reclamado os corpos que seriam doados para estudos da faculdade de medicina de Praga.

Novamente fora enviada uma mensagem em árabe, mas por um homem diferente daquele da década de oitenta.

Se alguém aprofundasse mais as investigações veria que os homens mortos em Helsinque em 74 faziam parte de uma seleta lista de agentes da KGB e que o casal morto em Praga não era um casal, não dormiam na mesma cama e não eram tchecos, mas sim ingleses e pertenciam ao MI-6 britânico.

Barcelona 1992. Era uma manhã de agosto, pouco antes do dia 9, final das competições olímpicas daquele ano. A equipe da Comunidade dos Estados Independentes, CEI, formada por quinze nações após a queda da União Soviética, terminava sua apresentação em ginástica olímpica e era assistida de perto por seus concorrentes norte-americanos.

Uma das mais jovens competidoras, uma loirinha linda metida num maiô vermelho, deixou a competição e dirigiu-se rapidamente para os vestiários reservados e exclusivos dos atletas.

Ninguém presenciou o que aconteceu dentro daquele vestiário. Se alguém tivesse visto, teria a visão proscrita de um homem de meia idade, trajando o uniforme da equipe americana, aos beijos com a jovem competidora russa.

Naquela noite um corpo foi encontrado num hotel barato reservado aos chefes de delegações. A eficiente polícia espanhola determinou que o homem foi vítima de um golpe forte no rosto e que morreu ainda desmaiado enquanto era asfixiado. Silencioso e fatal.

A jovem competidora retornou ao seu país com os demais.

Mercenário - O Início

Por

Brunno Bueno

Quando os primeiros acordes de Don't you forget about me estouraram no rádio velho sobre o criado mudo mais velho ainda a última coisa em que ele pensava era em sair da cama. Primeiro porque o motivo era idiota, trabalho, e segundo porque estava frio demais.

Não que ele odiasse trabalhar, ele odiava o trabalho, como muita gente. O frio era outro grande problema. Era inverno em São Paulo e isso significava algumas coisas: frio, chuva, alagamentos, e no caso dele, atrasos, ônibus terríveis, trens desastrosos, gritos, xingos, caos urbano mesclado à violência daquele bairro e os chacais de plantão, como para muita gente.

Era cinco horas da manhã e ele somente entraria para trabalhar as sete e trinta, mas pra chegar ao trabalho era complicado. Levantou e tomou um banho gelado. Não por opção, mas porque não havia água quente naquele moquifo que ele chamava de ximbica, mas que poderia receber a denominação de pardieiro. A única coisa de valor que havia ali dentro eram umas economias que ele fazia há algum tempo.

Ele até que tomaria a porcaria do banho gelado por opção porque o inverno em si não era problema, era benção. Costumava dizer aos caras no trampo que melhor que sair de casa pra enfrentar suor e sangue era enfrentar sangue seco.

O apartamento era simplesmente algo ímpar na história da existência. Os andares inferiores guardavam a nada da Rua Tremelheiros, bairro da Liberdade, a parte ruim. O prédio havia sido erguido em 1971 e esquecido em 72, se alguém quisesse contar o que por ali passou precisaria da ajuda da polícia.

Encrenqueiros, traficantes, prostitutas, cafetões, pivetes de rua, marmanjos de rua, homens de rua, assaltantes e assassinos do atacado e do varejo dividiam o endereço numerado de 47.

Quando não era um saco de merda atirado num andar de baixo era uma chuva de seringas ensangüentadas, normalmente devido ao barulho. É que as criaturas que habitavam o local divergiam quando aos horários de trabalho. O pessoal da rua pedia dinheiro enquanto havia sol e queria dormir à noite, quando as casas das prostitutas e dos traficantes estavam bombando.

A única coisa boa nisso tudo era que o apartamento do homem no chuveiro era o mais alto, quinto andar. Ouvindo os gritos e brigas diários ele se vestiu e foi saindo. Encontrou pelo caminho alguns amigos da bandidagem ainda sobre efeito de drogas e chegou à rua.

Era figura conhecida do local. Mudou-se há mais de cinco anos e sempre estava discutindo com o proprietário os atrasos do aluguel, resolvia tudo de maneira peculiar, dormia eventualmente com o proprietário, que era uma velha de uns setenta e tantos anos, nojenta segundo consta, resquício das drogas e embalos dos anos setenta.

Quando pensava nisso dava graças de estar trabalhando e não ter de passar o ferro na velha prostituta aposentada.

Subira finalmente na bumba! Que desgraçadamente já trazia lá no fundo um grupo de pagodeiros entoando a mesma porcaria todos os dias, o clássico "Baguio na Bumba", e pior que um deles devia se chamar Rogério, porque era sempre o mesmo filho da puta que destruía um cavaco descascado.

Entre uma moça molestada e uma ameaça de "levar o do lanche" (assalto em que se leva o que a vítima tiver nos bolsos) Henri Gascoin conseguia dormir até chegar ao trabalho. Alguns dos batedores de carteira do ônibus já o conheciam e sabiam que apesar de aparentemente pacato, era melhor não mexer com o cara.

Gascoin estava com vinte e seis anos. Deixara a pequena cidade em que nascera ainda adolescente depois de fugir de um orfanato. Fugiu pra não ser punido pelas coisas que fazia, estava de saco cheio de levar tapas na cara e fazer trabalhos de limpeza nauseantes, escapar das brincadeiras dos colegas e dos estupros dos mais velhos no banheiro coletivo.

A educação que recebera foi muito boa, era inteligente e pensava rápido. Os padres-professores costumavam dizer que se não fosse o filho do Demônio em pessoa, seria um advogado bem sucedido dada a capacidade de aprender e de convencer pessoas.

A disciplina também foi uma coisa importante que ele admitiu dentro daquela escola. Odiava fazer certas coisas, mas fazia, se estivesse convencido de que seria melhor.

O emprego era uma porcaria. Era auxiliar de um auxiliar de um cara que ele não sabia o que fazia. Então basicamente o que ele tinha pra fazer era ficar sentado numa sala minúscula arrumando caixas de ferramentas e escutando xingos dos outros. Ele era o cantinho anti-estresse naquele segmento de uma repartição cinza socada num prédio quente do centro velho de São Paulo.

Quando alguém tinha um problema em casa, quando a mulher estava dormindo de calça jeans, jaqueta e capacete, quando o filho avisava que era homossexual e iria morar com o namorado, quando a luz queimava e quando chovia no feriado, era sempre no imbecil do Gasco que todo mundo pensava.

Naquele dia especial de sua vida, ele estava com dor de cabeça. Sentia o peito apertar por uma gripe incipiente e as costas também doíam.

__Hei, filho da puta... – esse era o chefe da repartição -... Só não arrebento a sua cara agora porque torci o pé ontem e na queda, machuquei a mão. Então você é o otário que vai ficar escrevendo o que eu vou dizer pra enviar pra central. Levanta esse rabo daí e vai pra minha sala.

Passou um delicioso dia nesses moldes e os demais eram bastante parecidos. Num deles em especial o chefe ainda pediu uma grana emprestada. Disse que ia comer a mocinha da cafeteria do outro lado da rua e que tava sem grana pra um hotel do centro.

__Tu deve ter ai uns dez paus. Tu me emprestas agora que eu te pago no fim do mês.

Gascoin levantou os olhos e fechou a mão direita. Não era forte fisicamente, mas tinha uma patada certeira e era ágil como um tigre.

__Que que foi, seu sem mãe? Se tu não emprestar te ponho na rua e vais fazer o quê? Reclamar pra quem?

Tinha de pensar no aluguel e nos sacrifícios que teria de fazer pra dormir sob um teto. Emprestou a grana da volta pra casa, doze reais.

Teria de voltar a pé, muitas horas de caminhada acompanhadas de chuva e vento. O centro estava alagado, havia polícia, ambulância e bombeiros fechando ruas e socorrendo pessoas, teve de fazer um grande desvio pela Avenida Ricardo Jaffet para chegar até em casa.

Às nove da noite aquela avenida não é um lugar ideal para se andar a pé. Já quase no final dela, onde se pode entrar à esquerda e pegar a Rua Dom Pedro abrindo caminho até a Liberdade, um rapaz mais velho carregando uma mochila nas costas vinha em direção contrária.

Gascoin sacou rápido que seria assaltado, mas como tava sem grana, no máximo o cara ia ser agressivo e ir embora.

Dito e feito, o rapaz perguntou as horas e depois apresentou a arma. Uma pistola que ele não sabia de que tipo e nem precisava.

__Tou sem grana, velho. Sou do trampo, meu irmão. To ralado que nem você.

__Vou te revistar, cara. Dá um real ai, então!

__Leva a camiseta se quiser... – só que quando disse isso, Gascoin enfiou a mão por baixo da camisa. O rapaz deve ter achado que era uma arma e apenas puxou o gatilho.

Gatilho não se puxa, se aperta. Arma não se segura de lado como nos filmes, nem com o braço arqueado. O resultado foi que a arma que estava apontada para as pernas de Gascoin cuspiu uma bala que atingiu sua cabeça, tremeu na mão do atirador e caiu no chão.

O rapaz apanhou a arma e saiu caminhando na direção contrária.

Os homens do posto de combustíveis da esquina viram a cena e como sempre, fizeram o que estavam acostumados, ligaram para o resgate que levou o corpo ao hospital mais próximo, Hospital Municipal do Ipiranga.

O Ipiranga é um complexo de três prédios dispostos como uma estrela de três pontas, cada prédio tem onze andares divididos em bloco cirúrgico, de especialidades e ambulatório. O térreo do bloco um é a porta de entrada do pronto socorro e o movimento naquela hora da noite era demais.

A doutora Michele, médica recém formada de plantão, deveria como manda a norma estar acompanhada de um médico preceptor, um orientador, mas estava sozinha. Era estudiosa e competente, mas tinha seis perfurações de bala, quatro facas, duas crianças espancadas, um anzol enfiado num pé, uma obstrução gástrica, duas paradas cardíacas, uma apendicite supurando, um telefone tocado, cinco enfermeiros falando ao mesmo tempo, quatro famílias de pacientes exigindo notícias, quatro ameaças de boletim de ocorrência e mais, claro, uma urgência de tiro na cabeça.

__Esse ta mais morto que vivo, deixa ele pra depois! – gritou aos enfermeiros a poucos segundos de ter um colapso nervoso.

Não teve seu colapso e quando passou o plantão as sete da manha para seu colega sonolento que pouco estava se importando com o que acontecia lá dentro disse apenas: e isto é alguma coisa com uma bala na cabeça.

De sobrancelhas arqueadas e boca entra aberta, com uma das mãos e em menos de cinco segundos o médico disse somente que estava respirando e não tinha sangramento...

__Vai pra tomografia e chama um neurologista.

Horas depois o diagnóstico do neurologista foi: ferimento por arma de fogo sem alojamento de corpo estranho, lesões cerebrais imprevisíveis e espera esse cara acordar e manda ele pra casa.

Gascoin foi deixado numa enfermaria. Estava sem documentos e ninguém foi reclamar o que restava do corpo, portanto, deixado numa enfermaria como indigente. Respirava sozinho e tinha motilidade normal, tirando isso era praticamente um vegetal.

Numa manhã qualquer despertou de seu sono profundo quando uma médica falava alguma coisa com um paciente ao lado.

Ele balbuciou besteiras, a moça terminou o que estava fazendo e veio até o leito dele.

Enfiou-lhe uma caneta de luz nos olhos e anotou algo numa papeleta.

__E ai, cara? Finalmente acordou. Achamos que você ia ficar o resto da vida nessa cama.

O dor pela luminosidade nos olhos era enorme. A boca tinha gosto de merda, o rosto coçava pela barba espessa, a cama cheirava a suor e o calor naquela sala era insuportável.

__O que... O que eu to fazendo aqui? – o primeiro reflexo foi tentar levar as mãos aos olhos, mas estava pesada e dormente.

__Está num hospital, em São Paulo. Você teve um ferimento de bala na cabeça. Está sentindo dores?

Muitas era uma boa resposta. Foi instruído a ficar deitado, o que era o mais óbvio e que chamasse se tivesse algum problema.

Depois de algumas horas de volta ao mundo resolveu que iria se levantar. O fez com muita dificuldade e foi até o banheiro. Normalmente os banheiros de hospital não têm espelhos, mas aquele tinha e quase voltou ao estado vegetal quando se olhou.

Os cabelos estavam compridos, a barba parecia como a de um náufrago e os olhos estavam brancos como os de um cachorro siberiano. Teve de se escorar para não cair e não tinha mais coragem de olhar novamente, não sem tentar melhorar aquela coisa.

Perguntou a uma enfermeira se havia como fazer a barba e recebeu um kit de tricotomia com aparelho descartável, gaze e espuma de sabão.

Melhorou, mas o tempo todo em que esteve fazendo a barba olhava aqueles olhos brancos e sentia medo. Outra coisa que o incomodava e dava extremo desconforto era o calor.

Tomou um banho gelado e sentiu que as forças voltavam. A respiração ficava mais fácil e os músculos trabalhavam melhor. Viu que seus braços estavam finos assim como suas pernas, estava muito magro e parecia um realmente um náufrago.

De barba feita, vestindo camisola verde e com um bom café na barriga, foi levado novamente ao exame de tomografia, testes físicos e depois de algumas horas recebeu alta e suas coisas: as roupas do dia do tiro e nada mais.

­__Minha carteira...

__Deve ter sido levada moço – disse uma das enfermeiras – disseram que foi um assalto.

__E os médicos acham que eu tenho que tomar algum remédio?

__Não deixaram nada na sua prescrição.

__E quanto a esse calor todo e esses olhos brancos? Ninguém me diz nada do que aconteceu.

__Olha moço, se quiser pode tentar falar com a doutora que te atendeu no dia em que chegou, ela está de plantão lá no pronto socorro.

No térreo

__Ah, você é o cara da bala! E ai, como está se sentindo?

__Mal... – estava ofegante -... Queria saber por que estou sentindo esse calor todo e porque meus olhos estão brancos?

A moça estava realmente ocupada e sem tempo de ficar tentando adivinhar aquelas respostas, porque não às tinha, claro.

__E então doutor? – foi orientado a falar com o doutor Vita, chefe da neurocirurgia, que no momento estava em sua sala assinando fichas.

__Bem, eu gosto de estudar esse tipo de caso. Você foi talvez o mais curioso que eu já vi – o médico tinha um jeito de cientista maluco, de olhos pequenos e ferinos, tinha seus setenta anos, falava rápido e gesticulava demais – Olhando suas duas tomografias posso notar algumas mudanças interessantes em seu cérebro. Enquanto estava desacordado fiz mais exames e posso garantir que este tipo de lesão evoluiu até aqui – apontou com uma caneta uma área escura dentro da cabeça – vê? Parou pouco depois dessa data...

__Eu não estou entendendo...

__Parece que ninguém falou pra você, não é? Ficou desacordado por três meses senhor Gascoin. Nesse tempo seu cérebro parece ter-se adaptado a uma nova condição da parte destruída pela bala. Quase como se estivesse usando um caminho alternativo para se manter funcionando. Essas alterações que você está sofrendo são conseqüência disso.

__Três meses...

__Digo que seu caso é interessante por dois motivos: primeiro porque pode ser que apareçam novas alterações e segundo e mais importante, eu jamais vi isso acontecer com essa velocidade.

__Velocidade? Foram três meses dormindo aqui!

__Meu jovem, é quase como se seu cérebro tivesse evoluído nesse tempo. E isso costuma ocorrer em milhões de anos. Aparentemente as primeiras alterações são essas que está relatando, esse calor excessivo e a despigmentação das íris.

__E o que mais o senhor acha que pode acontecer?

__Imprevisível. Mas no geral, você está bem. Vá pra casa e descanse, se tiver algum problema volte aqui.

Gascoin deixou o hospital pela manhã e foi caminhando pela rua com dificuldade para enxergar. Assim que chegou em casa sentia os olhos queimarem, mas não tanto quanto o corpo. Foi direto para o banheiro onde tomou outro banho gelado.

Estava sentado na cama enrolado numa toalha e respingando água quando bateram à porta. Era a senhoria, puta da vida. Estava sem receber o aluguel há três meses, não tinha a chave e havia outros vagabundos pra alugar aquela porcaria.

__Sai daqui agora, velha. Depois eu falo com você.

A mulher fez cara de desprezo e foi dizer mais alguma coisa.

Num movimento sem precedentes em sua medíocre história Gascoin levantou-se e como se fosse a coisa fácil do mundo desferiu um golpe com o dorso da mão esquerda na ponta do queixo da velha que a fez cair como um saco vazio.

De estar sentado a estar em pé olhando o corpo caindo foram frações de segundos. Já havia dado um passo para trás voltando a uma posição de defesa quando a cabeça terminou de bater no chão.

"Mereceu, vadia"

Foi até a cozinha, abriu a geladeira que tinha um cheiro que morte horrível e desistiu. Bebeu água da torneira e vestiu-se. Levantou a velha desacordada do chão e a deixou desfalecida no corredor, estava viva, mas não acordaria por um bom tempo.

Precisava pensar, relaxar e começar a entender o que estava acontecendo. Voltou ao apartamento e tirou uma parte das economias escondidas que por sorte, ainda estavam no local e desceu novamente para a rua, não sem antes pegar os óculos escuros velhos que tinha jogado numa gaveta.

Os amigos chapados o cumprimentaram da maneira usual, como se jamais tivesse saído de casa.

Gascoin parou num boteco perto e pediu a coisa mais gelada que o homem tivesse, foi água gelada e com gosto de fezes, ele tomou porque estava realmente gelada.

Pondo a cabeça em ordem não precisava ser um gênio pra saber que emprego ele não tinha mais, mas até que isso não era tão mal, oportunidade pra procurar um novo. Grana não seria problema por uns três meses, tinha aquela economia e isso ajudaria até achar outra coisa. Não conseguia pensar com todo aquele calor desgraçado. No caminho de volta pra casa parou numa loja modesta e comprou um ventilador barato. Voltou ao bar e comprou umas cervejas.

De volta ao apartamento não achou mais a velha. Sabia que ela não iria chamar a polícia porque seria bem pior pra todo mundo, então, de madrugada, ficou sentado na sala numa cadeira semi-destruída onde almoçava sobre uma mesa idem, tomando as cervejas depois de limpar a geladeira o melhor que pôde e se pôs a pensar no que iria fazer dali pra frente.

Passou a noite toda pensando e logo de manhã viu pela janela que um de seus amigos do prédio, um ladrãozinho vagabundo, mas em informado, estava chegando do "trabalho".

__Hei, Marcos... Preciso falar contigo.

__Gasco! Quando tempo eu não te vejo por aqui cara! Achei que tinha se mudado.

__Tive uns problemas pra resolver. Escuta, cara, to precisando de emprego. Ce sabe onde posso arranjar alguma coisa?

__Ih, maninho... Ta foda a coisa aí fora!

__Tu sempre sabe de alguma coisa, parceiro. Vivia me dizendo que tinha gente precisando de homem pra resolve as coisas.

__Eu sei, maninho. Mas ce não é o tipo do cara que vai trampar nas mesmas coisas que eu...

__Marcão, numa boa, to de saco cheio dessa babaquice de levar a vida como empregado raso. To precisando fazer alguma coisa maior cara!

Marcos pensou um pouco.

__Beleza, mano. Se liga na parada... Tem um chegado da favela do Aimoré que trampava para uns trutas ai da zona Norte. O cara tem um cunhado na polícia e esse cara é dos feras, tipo tira bonzinho que quer ser general da banda. O negócio é que o tal polícia sacou que na corporação ele não vai longe começando como soldado e disse para o cara que tem um pessoal ai precisando de gente ferrada pra trampar de segurança.

__Segurança...

__Nem precisa ter escolaridade. Acho que é só saber enfiar a porrada e dar uns tecos com as quadradas. Pelo menos tu vai trampar de terno e gravata, que nem os granfinos!

__Me da o endereço dessa merda ai...

__Se liga, mano! Tu nunca se meteu nessas coisas...

__Parece que pra dar porrada eu ando levando jeito...

Gascoin pegou o endereço e seguiu na manha seguinte. A informação era de que os recrutadores iriam avaliar os candidatos e escolher dois. O endereço era um prédio todo bacana na Paulista, segundo Marcos.

Tinha outra coisa, diziam para levar dinheiro, mas não diziam quanto, então, ele pegou aquelas economias e foi morrendo de medo de ser assaltado ou perder tudo. Não era muita grana, mas era tudo que tinha.

Assim que chegou, Gascoin viu logo que teria vários concorrentes. Havia gente com farda da polícia militar, uns três caras com roupas camufladas, mais dois à paisana e ele, seis caras no total.

Foram todos colocados numa sala com cadeiras, uma mesa na frente e uma lousa. O prédio em si era grande e muitíssimo bem decorado, chão de mármore e colunas trabalhadas no saguão. Aparentemente era uma empresa bem sucedida ou um prédio de escritórios de grandes companhias.

Gascoin sentou numa cadeira do fundo e foi ouvindo as conversas paralelas dos caras. Falavam em técnicas de treinamento, tempo de trabalho na polícia e experiência como seguranças de políticos e empresários.

Imediatamente começou a achar que não daria em nada.

Depois de umas duas de horas de espera, depois de alguns caras terem desistido e ido embora e depois de um cochilo, um cara de mais de quarenta anos entra na sala e começa a falar.

"Vocês todos vão passar pela mesma prova, estão aqui porque são os melhores ou porque estão interessados em mudar de ramo..."o de sempre.

Até que um dos caras olhou pra ele e perguntou qual era sua experiência naquele tipo de coisa.

__Porra nenhuma...

Numa outra sala no mesmo prédio, pessoas olhavam o que acontecia na sala reunida através de uma câmera escondida.

Foi entregue uma ficha de inscrição simples com nome, endereço, nome dos pais, esposas e filhos, parentes próximos, escolaridade e depois foi ministrada uma prova de conhecimentos gerais.

__Saca só esse cara... – disse um dos membros da sala que acompanhava a reunião.

__Vamos ver como se sai na prova.

Os dois conversavam em francês.

Depois de oito horas sentado na mesma cadeira, a maioria daqueles homens havia desistido, restavam quatro, um de cara fechada que ficava brincando com uma caneta, dois grandes e fortes como soldados e Gascoin.

O resultado da prova de conhecimentos gerais foi interessante, Gascoin foi o melhor qualificado por falar três línguas: seu português original, inglês e francês pouco fluentes, estudar em colégio de padres teve suas vantagens afinal.

A parte que pedia para que falassem de suas experiências profissionais foi o mais complicado. Gascoin tinha pouco mais que o sub do sub do cara que ele não sabia o que fazia...

__Ainda há um trunfo nesse cara... – disse uma das vozes da sala de vigilância.

__Com essa experiência?

__A pedra bruta pode ser desgastada...

__Detesto quando você vem com essas de samurai.

__O que acha que vem agora? – perguntou um dos caras a Gascoin.

Não houve tempo para resposta. Em menos de trinta segundos homens vestidos de preto, encapuzados e empunhando armas automáticas entraram na sala no momento em que a luz se apagou.

Os quatro homens restantes foram tomas de assalto e sob as miras das armas e palavras de ordem foram levados para os fundos do prédio e colocados no que parecia uma caixa de aço grande.

As portas do contêiner se fecharam não antes de uma bomba de gás paralisante ser atirada dentro. Pouco adiantaria a tentativa de prender a respiração.

Acordaram horas depois, desorientados por uma sirene como um alarme de incêndio e com uma voz num alto-falante que dizia para saírem imediatamente.

Gascoin notou que havia dois homens de seu lado esquerdo e um do lado direito, era uma sala escura com luz estroboscópica incessante somente uma porta à frente e à direita.

Ele empurrou os dois homens que caíram o que lhe deu chance para chegar antes à porta. Hesitou no momento certo. O cara que estava do lado esquerdo passou antes dele e recebeu uma bala de borracha no peito. Ele pôde então identificar de onde vinha o tiro e saiu usando o homem cambaleante como escudo humano.

Esse tomou mais seis tiros de borracha à queima roupa e caiu quase morto. Gascoin passou pelo atirador quando sua arma ficou sem balas sendo seguido de perto pelos outros dois caras que gritavam em desespero.

Não pensou em reagir, afinal, a ordem dada era para sair dali não para limpar a casa. Um dos dois homens, o que não gritava, disse que havia luz vindo da escada, Gascoin olhou rapidamente em volta e não viu janelas.

Colou na parede e fez como no colégio quando os maiores não seguravam a libido, joga outro pra eles comerem...


Autor: Brunno Bueno


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