O cinema e a imagem perdida da utopia



Utopia talvez seja uma das palavras mais cruéis do dicionário. Entre os vários significados que o senhor Houaiss encontra para o vocábulo estão o de um projeto de natureza irrealizável, modelo abstrato e imaginário de sociedade ideal no marxismo, fantasia, quimera... A crueldade da utopia reside no fato dela representar algo impraticável e, quase sempre, fundamental à atividade humana. A utopia de mudar o mundo é a mais conhecida, a mais almejada, a mais discutida, a mais destruída e a mais esquecida nos últimos anos. Para se mudar o mundo, várias armas podem ser escolhidas. Para muitos, a mais eficaz ou a única possível é a arte. Escolhendo este caminho, o artista se depara logo de cara com o dilema de ser ou não panfletário.
Em 1975, o escritor paulista Ignácio de Loyola Brandão publicou seu segundo romance intitulado Zero. Uma obra radical que uniu, na época, duas utopias: contribuir para a queda do regime militar no Brasil e inovar a literatura brasileira no que diz respeito aos aspectos da linguagem. É sempre muito difícil analisar a obra de arte como uma arma de guerra ligada a um pragmatismo quando ela se ampara em pilares subjetivos da criação. Segundo Loyola, ele quis jogar uma bomba no governo da época. Seu livro foi retirado das livrarias, muita gente leu cópias alternativas e, até hoje, é considerado um dos mais inovadores romances da literatura brasileira. De alguma forma, a arte venceu a guerra.
No cinema, diversas obras que trabalharam com temas revolucionários ficaram esquecidas e outras, importantes, devem ser contempladas com admiração e reserva. Por outro lado, existem as que buscaram um outro caminho, exatamente como o livro Zero, e não podem ser classificadas apenas como obras políticas.
É o caso do filme Soy Cuba, de 1963. Rodado na ilha governada por Fidel Castro, o longa-metragem foi uma encomenda do governo russo que almejava que a obra fosse uma espécie de ode à revolução. Em outras palavras, uma propaganda bem feita e consumível dos ideais socialistas. Mas o diretor russo contratado, Mikhail Kalatozov, foi além e criou uma obra que reverencia a revolução e, ao mesmo tempo, reverencia o fazer cinematográfico. O filme apresenta uma série de planos-sequência históricos e uma fotografia sofisticada que formam uma dramaturgia visual que impressiona ainda hoje. No filme de Kalatozov, a técnica está a serviço de um projeto estético e de uma utopia. Cada metáfora visual, como o céu que aparece negro até o momento em que acontece a revolução, está ligada de forma sentimental ao discurso. Soy Cuba não foi bem aceito pelo governo cubano e nem pelo russo. Ficou praticamente esquecido até que os cineastas Martin Scorcese e Francis Ford Coppola o retiraram do limbo para que os críticos do mundo todo o considerassem uma obra-prima.
No Brasil, Glauber Rocha fez pelo menos dois filmes que desafiaram o governo militar e ainda se transformaram em grandes obras de arte: Deus e o diabo na terra do sol e Terra em Transe. Mas o que faria Glauber diante da atual situação política brasileira? Como se posicionar estando no olho do furacão? As perguntas são e estarão sempre sem resposta ou receita. Cada artista se relaciona com o mundo à sua maneira. Mas é possível perceber que, além de alguns documentários, pouco se tem feito a esse respeito no Brasil.
A situação atual do país confunde os que querem lutar a favor de um ideal ou contra um modelo estabelecido. O governo do presidente Lula reúne hoje a imagem enfraquecida de um idealista, um utópico e, ao mesmo tempo, a imagem de Lula que mudou de lado para conseguir alcançar seus objetivos. O Lula utópico aparece agora como que mesclado à imagem de um Lula vendido.
Ao contrário da época da ditadura, quando o escritor Ignácio de Loyola Brandão tinha contra quem jogar sua bomba e ao contrário da época da revolução cubana quando Mikhail Kalatozov tinha um ideal político definido, que já não era mais aparentemente tão utópico; o Brasil de hoje deixa seus cidadãos-artistas paralisados. Quer-se acreditar que Lula seja finalmente uma mudança e não se quer acreditar que ele seja exatamente como os políticos que o ele próprio combateu. E o que parece óbvio e estarrecedor é que Lula está no meio do caminho e o povo, meio órfão, sem partido, continua sem um cinema político de peso; utópico ou não, artístico ou não.
Autor: Daniel Antônio de Oliveira


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