Sentidos Em Trânsito



O processo de construção dos contos começou com a discussão a respeito dos personagens. Tendo em mente que o local onde se passaria a história seria Belo Horizonte, pensamos em quem seria a figura através da qual poderíamos explorar as representações, percursos e subjetividades na cidade e qual seria sua característica peculiar, que levara-nos a escolhê-la.

As idéias iniciais para a personagem foram um louco, um cego ou um míope. Apesar de não sabermos exatamente onde iríamos chegar, o fio condutor do que foram as três narrativas finais já estava sendo estruturado: a visão ou a deficiência dela como uma forma específica de enxergar um determinado local na cidade.

Viaduto Santa Tereza, Praça da Liberdade, Praça do Papa, Avenida Afonso Pena, Avenida do Contorno foram os primeiros lugares que vieram em mente ao tentar definir onde aconteceriam as ações. Entretanto, não estávamos satisfeitos com estas escolhas, pois queríamos retratar algo particular, que aparecesse ao mesmo tempo com certo ar de novidade e estranheza. Ao lembrar de uma vivência em que observava uma cega andando de metrô em Belo Horizonte, surgiu a idéia de mostrar ou, de pelo menos situar o personagem dentro deste meio de transporte e espaço urbano. Mesmo sendo conhecido por muitos cidadãos da capital mineira, ele é utilizado por poucos de seus moradores, especialmente por aqueles que não moram próximos aos bairros que o metrô atravessa, como por exemplo, a zona sul da cidade.

Após discussões sobre qual sujeito poderia ser a personagem do conto, decidimos que um cego poderia trazer um novo “olhar” sobre o metrô, através da exploração de sua experiência auditiva e tátil, que é bastante diferente da percepção daqueles que contam com a visão. A fim de explorar ainda mais a percepção do espaço metrô, resolvemos contar também com um surdo e um míope, para que, através de suas deficiências, pudéssemos chamar a atenção para o contato com o mundo através de outros sentidos. O cego, por exemplo, não vê com os olhos, mas enxerga com a audição, o tato, o olfato. Já o surdo enxerga e, muitas vezes, conta com boa visão, visto que, geralmente quando uma pessoa apresenta deficiência em um sentido, acaba desenvolvendo os outros, como forma de suprir aquele que lhe falta. Por isso, um deficiente auditivo “ouve” com os olhos, com o tato etc. Da mesma forma, o míope, por não apresentar visão perfeita, acaba por ter que contar com outros recursos, como a audição e até mesmo a imaginação, a fim de auxiliá-lo a desvendar aquilo que seus olhos não conseguem captar muito bem.

Personagens definidas, partimos para a escrita do conto e acabamos optando por escrever três mini-contos, com o intuito de demarcar bem a experiência de cada personagem no metrô da cidade, mas em um curto período de tempo. Fizemos isso, objetivando recortar exatamente a percepção do espaço metrô, não importando sua vivência anterior, mas a forma como cada pessoa lida com esse espaço público. Buscamos então, sintetizar essa experiência, como estratégia para aguçar a percepção dos leitores, pois, já que o contato deles com as histórias seria bem pequeno, eles teriam que ser rápidos e ágeis, para captar toda a experiência revelada nas narrativas. Evocamos aí, a criatividade de nossos leitores, já que ao revelarmos apenas um fragmento da vida de cada personagem, abrimos espaço para eles construam/imaginem a história de cada um.

Para ilustrar o trabalho, escolhemos utilizar a fotografia, como forma de demonstrar que a “visão” de cada personagem é apenas um recorte da realidade. Segundo Vilém Flusser, “ decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condições culturais dribladas” (FLUSSER, 1920, p.18). Optamos por fazer fotos em preto e branco, visto que elas, ao retirarem as cores do mundo, já nos mostram uma nova maneira de enxergá-lo e, graças a essa “falta” de recursos visuais, as fotografias em preto e branco exaltam características como a luz e a sombra, além de, na maioria das vezes, cederem a espaços comuns uma beleza não antes encontrada neles. Além disso, concordamos novamente com Flusser, que em seu livro “A Filosofia da Caixa Preta” disse que “muitos fotógrafos preferem fotografar em preto-e-branco, porque tais fotografias mostram o verdadeiro significado dos símbolos fotográficos: o universo dos conceitos”. (FLUSSER, 1920, p.23)
As fotos foram tratadas no Adobe Photoshop , de maneira a compartilhar com nossos leitores, a deficiência de cada personagem. Fotos bastante escuras, com os traços semelhantes a vultos, representariam a visão do cego, fotos embaçadas representariam a visão do míope, e fotos bastante nítidas mostrariam a visão do surdo, supondo que nosso personagem houvesse desenvolvido o sentido da visão a fim de compensar a falta de audição. A intenção aqui foi tentar aproximar o leitor de como seria a percepção através das janelas visuais de cada um destes personagens.

Para dinamizar o trabalho, optamos por animar as fotografias, produzindo três foto-vídeos que, além de mostrar o metrô de Belo Horizonte, reproduziram as visões peculiares dos personagens, buscando assim, aproximar o receptor da experiência de estar numa estação e dentro do metrô com a percepção de cada um de nossos protagonistas. Na transição de um ângulo a outro, colocamos janelas que mostram as imagens em diversos tamanhos, a fim de representar a multiplicidade de pontos de vista que podemos ter de uma mesma imagem, num mesmo instante – ou seja, o quanto nossa percepção é relativa. A animação foi feita utilizando o Macromedia Flash MX e o Adobe Premiere Pro 2.0 .

Para representar cada um de nossos atores literários, escolhemos estratégias diferentes na escrita de cada conto. A personagem cega foi um texto mais descritivo e escrito em primeira pessoa, o que gerou um paradoxo interessante: sua narração nos permite imaginar toda a cena visualmente, pois todas as suas referências são bem marcadas. Já a míope Luiza, é narrado em terceira pessoa, e os comentários do narrador expressam um certa melancolia de uma pessoa comum da cidade que apresenta uma deficiência parcial da visão. Ela também faz um elo entre os dois contos, pois não enxerga tão bem quanto alguém com a visão normal, nem tem a visão completamente debilitada. Já o surdo, é marcado por uma linguagem cortada, com a ausência de artigos e preposições e com erros propositais mais próximos a oralidade da língua. É importante notar que nem todo surdo é mudo, mas que toda referência do surdo é visual, incluindo a própria leitura labial quando este se comunica com outras pessoas através da fala.

Para concluir, gostaríamos de utilizar um trecho de Helen Keller, uma cega que descreve com emoção toda a sua experiência com seus outros sentidos aguçados e imagina como seria se ela enxergasse por apenas três dias.

Várias vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no princípio da vida adulta. As trevas o fariam apreciar mais a visão e o silêncio lhe ensinaria as alegrias do som. (KELLER, 2005)

A experiência de uma visão particular de mundo nunca pode ser passada exatamente da forma como a pessoa vê. Para isso sempre usamos de artifícios, analogias e metáforas para tentar fazer com que o outro capte algo do real que é a nossa própria subjetividade.


Bibliografia

BONASSI, Fernando. Passaporte. 1ed. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.
BONECAS Russas, As. Direção: Cédric Klapisch. Produção: Matthew Justice e Bruno Levy. Intérpretes: Romain Duris, Kelly Reilly, Audrey Tautou e outros. Roteiro: Cédric Klapisch. Música: Loïc Dury e Laurent Lavesque. Fotografia: Dominique Colin. Edição: Karen Harley e João Jardim. França / Inglaterra: Studio Canal / Lunar Films / France 2 / Canal+ / Ce Qui Me Meut Motion Pictures, 2005. 1 DVD (125 min.), son., color. Título Original: Les Poupées Russes.
FLUSSER, Vilém. Filosifia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985. 92p.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. 34ed. São Paulo: 1998.
JANELA da Alma. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Produção: Flávio R. Tambellini. Entrevistados: José Saramago, Wim Wenders, Hermeto Pascoal e outros. Roteiro: João Jardim. Música: José Miguel Wisnick. Fotografia: Walter Carvalho. Edição: Karen Harley e João Jardim. Brasil: Ravina Filmes, 2002. 1 DVD
(73 min.), son., color.
KELLER, Helen. Três dias para ver. Grupo de Estudos Sociais, Tiflológicos e Associativos, Portugal, 17 jul. 2005. Disponível em: < http://www.gesta.org/braille/keller.htm> Acesso em: 22 out. 2006.
SIMÕES, Maria Lúcia. Contos Contidos. 2ed. Belo Horizonte: Editora RHJ, 1996.
WALTY, Ivete; CURY, Maria Zilda. O jogo narrativo. In: _____. Textos sobre textos: um estudo da metalinguagem. Belo Horizonte: Editora Dimensão, 1999.
Autor: Felipe Augusto Fonseca de Ataíde


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