Leitura Do Movimento Textual



Leitura do movimento textual em Hoje de Madrugada

1- A priori, o movimento do texto é a contradição

"O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar como está"
(Brecht)

À luz do método analítico do texto, concebe-se aqui a leitura do Conto Hoje de Madrugada de Raduan Nassar, tendo como prisma demonstrar o movimento textual, o qual é erigido pela força motriz das contradições, trazendo à baila uma lei dinâmica de relação intrínseca das partes com o todo, forma e conteúdo.

E, a partir de um olhar dialético de norte materialista de Marx e Engels, cujos nuances estruturam-se no conceito de que o movimento é a propriedade fundamental, este trabalho compreende em traçar a decomposição e composição, ou seja, perfilar análise, a decomposição das imagens, a função das partes no enunciado, e a síntese, a composição dessas partes no todo.

movimento das contradições

Texto

Relação recíproca = forma econteúdo

Análise de composição das imagens do texto

Método analítico

Síntese composição das partes no todo

A priori numa síntese, o conto Hoje de Madrugada retrata um desfecho amoroso, o fim de uma relação. O narrador personagem descreve o encontro que teve com a sua mulher pela madrugada, por isso evidencia-se o labor com a memória, da impressão daquele momento, tecendo uma distância temporal entre o ato da narrativa e o fato narrado. Deduz, assim, uma re-presentação do fato, uma re-elaboração do passado.

Observação sensível

Objeto da narrativa sujeito narrador

Observação objetiva

É lícito dizer que ocorre a tensão entre o sensível e o inteligível: a tentativa de reconstruir o quadro do encontro por meio da thecne (o inteligível), da escrita, todavia esse quadro corresponde a um fragmento sensível da memória; o momento passado não se deixa apreender objetivamente, segundo Mário de Andrade, o passado é lição para se meditar, não para reproduzir.

Tudo se rege pelo silêncio entre ambos, destacando-se a linguagem do olhar e do tato. A mulher procura uma aproximação, ele a distancia: "Não tenho afeto para dar". E esse contraponto no nível semântico insere-se na forma.

Contradição nível semântico – sentimento- narrador-personagem(distancia) x

a mulher(aproximação)

nível da forma – olhar – movimento - gestos

2- O conteúdo é a forma = a forma é o conteúdo

No que tange à lógica, o conto pode ser visto pelo princípio de contradição, pela lógica dialética, segundo a qual o movimento da realidade é essencialmente processo. Para Engels, a dialética é a ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo externo quanto do pensamento humano.

Em símile a essa perspectiva, o fenômeno literário articula-se na simbiose forma-contéudo de maneira indissociável, uma unidade dos contrários. Por isso, toda análise tem que se valer do olhar na forma e no conteúdo, como as imagens se entrelaçam para produzir o efeito final, a síntese. Desde o inicio do conto até a última palavra,as imagens contraditóriasarticulam-se a fim de elucidar a separação das personagens, o intervalo entre ambos.

O narrador-personagem matem-se com os movimentos inertes, devagar, sem se mexer, sem pressa em relação aos movimentos da mulher tentando mudar a situação. Ele a descreve como algo corruptível, cujo "corpo obsceno", "mendigava afeto". A imagem da mulher, o seu perfil, cria a tentativa de mudança. Observa-a pelo viés da sensibilidade, ou seja, " a capacidade de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos", segundo Kant.

A maneira de narrar também elucida o contraponto entre os personagens visto que é um mergulho no movimento do narrador em si mesmo e no movimento da mulher: na frase sempre o duplo, a tensão; em símile a uma câmera que vai focalizando cada olhar, cada gesto. Essa proeminência do visual, conforme Pound, configura-se a Fanopéia, pois projeta os objetos, fixos ou em movimento, na imaginação visual.

(...) De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava.(...)

2.1- Decomposição

O processo analítico vale-se da decomposição, a penetração no âmago do texto - as partes, para confeccionar uma síntese mais segura, o conhecimento do todo. Trata-se de uma forma de pensamento regido pela indução. Aplicar isso no conto Hoje de Madrugada é perceber o ritmo entre os dois personagens, as formas de diálogo. Constitui um exame nas micro-imagens, a fim de estabelecer a grande imagem: a metáfora: o fenecer de um relacionamento, o fim de um diálogo amoroso.

O movimento do texto desencadeia-se com a entrada da mulher no quarto de trabalho do narrador-personagem. A imagem dos olhos já indicia o rompimento entre ambos:

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher.

Os dois permanecem calados, sem voz diante da situação: "Assim que entrou, ficou espremida ali no canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada". De vez em quando olhar e o gesto diz algo. A imagem que representa isso, analogicamente, acha-se no final do primeiro parágrafo: "De permeio, um outro estalido na madeira do assoalho."

A comunicação faz-se pelo silêncio, pelo virtual, tanto que o discurso indireto predomina.Trazendo à baila as palavras de Merleau Ponty, a linguagem dizperemptoriamente quando renuncia a dizer a coisa mesma. Por essa via, o silêncio não é um vazio, contudo um repertório comunicativo sugestivo que se utiliza de outros elementos auxiliares como o olhar, os gestos.

Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa

Desse modo, a narrativa caracteriza-se pela descrição do momento entre ambos. As únicas palavras entre eles são palavras rascunhadas, soltas num papel de rascunho; diga-se de passagem, palavras contraditórias não pronunciadas,marcadas pela afetividade, a mulher escreve "vim em busca do amor"e pela falta desse sentimento, o narrador: "Não tenho afeto para dar".

Tom de aproximação e afastamento permeia todo discurso, dando vivacidade às engrenagens da narrativa: a mulher move-se sensualmente, toca o narrador-personagem, mas este a repele como fosse algo execrável. A linguagem do erotismo rompe-se formando uma lacuna.

"Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca."Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos."

No término da narrativa, acontece o corte, a desilusão. A mulher pareceperceber a inutilidade de seus gestos, corre em direção à porta, e, ao mesmo instante, freando os passos: "mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar". Logo em seguida, "feito uma sonâmbula". O movimento da narrativa não acaba, contudo se abre para outro movimento: a interpretação do leitor, que irá decompor, analisar e construir uma nova síntese.

3- Afinal, uma possível síntese

A arte não é apenas imaginação, mas também conhecimento emotivo do mundo.

Teplov(1977)

Tendo por perspectiva que a percepção da arte é um processo ativo, vale dizer que Raduan Nassar impõe ao leitor a observação de um fato, chamando-o a participar das engrenagens de uma observação de um narrador-personagem. Deduz, assim, tratar-se de uma observação de uma observação. Ademais, não é uma simples percepção do término de um relacionamento, mas um mergulho de como se dá a comunicação das contradições, onde não há mais espaço para um sentimento, uma educação dos sentidos. Conforme as palavras de Bertolt Brecht, o artista ensina-nos a arte da observação das coisas.

BIBLIOGRAFIA

VÁRIOS. Psicologia e Pedagogia II, Aspectos Psicológicos e Educação Artística, p.123, Editorial Estampa, Lisboa, 1977.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda.Temas de Filosofia. São Paulo:

Moderna. 2003.

COSTA, Cristina. Questões de arte. São Paulo: Moderna. 2002.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. "A função moralizante da arte"

In Estética – A idéia e o ideal. São Paulo: Nova cultural.

2005.

KANT, Immanuel. "Estética Transcendental" in Crítica da razão

Pura. São Paulo: Nova cultural. 2005.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Editora Cultrix, São Paulo.

MERLEAU-PONTY, M. O filósofo e sua sombra, Sobre a fenomenologia da linguagem, A linguagem indireta e as vozes do silêncio, In: Textos Escolhidos (Os Pensadores). v. XLI.São Paulo: Editora Abril, 1975.

___. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins

Fontes, 1994.


Autor: Vicente alves batista


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