Orientações Normativas para a Atuação Intervencionista da ONU



O Artigo 2(7) da Carta de Intenções da ONU declara que “[n]othing contained in the present Charter shall authorise the United Nations to intervene in matters which are essencially within the domestic jurisdiction of any State or shall require the Members to submit such matters to settlement under the present Charter”. Entretanto, o artigo ainda tem por intenção excluir de tais limitações àquelas circunstâncias em que a organização teria permissão para intervir na jurisdição doméstica com maior constrangimento; ele o faz através do seguinte complemento: “but this principle shall not prejudice the application of enforcement measures under Chapter VII” . Em verdade, as aplicações do artigo não ficaram claras. A adição da exceção demonstra, simplesmente, que os delegados tinham a intenção de abranger a isenção regulamentada àquelas situações em que “it would be proper in the interests of peace and justice, and in the preservation of human rights to interfere in the internal affairs of Members States” . Entretanto, a colocação ficou incompleta, pois não chega a expressar a intenção da organização em assumir a responsabilidade de atuar quando “the clear violation of essential liberties and human rights constitutes itself a threat capable of compromising peace ”, dando início a várias dificuldades técnicas.
Na prática, o Conselho de Segurança deu sua própria interpretação do que constituiria uma intervenção legítima e o que seria competência exclusiva da jurisdição estatal. Está claro que, em qualquer atividade adotada sob o Artigo 39, do Capítulo VII, o qual outorga ao Conselho de Segurança os poderes para decidir sobre provisões que exijam o uso de constrangimentos ou mesmo “coação”, estão isentos dos termos do Artigo 2(7). O Conselho simplesmente deu o próximo passo, adotando a prática de que qualquer acontecimento que se submeta ao Artigo 39, esteja ele ou não combinado ao uso de medidas coercitivas, é justificativa suficiente para que o conflito em questão se internacionalize, escapando das implicações do Artigo 2(7). Sendo assim, a isenção ao Artigo 2(7) não se dá somente quando há threat to peace, mas acima de tudo quando a situação em questão adquire proporções de “international concern”. Isto é, naquelas situações em que o perigo para a paz alcançar dimensões de potencial risco à segurança mundial, deve haver intervenção da ONU.
Deve-se considerar, entretanto, que os conceitos de “international concern” e “domestic jurisdiction” são impossíveis de serem capturados e cristalizados no tempo, principalmente diante das aceleradas transformações do Pós-Guerra Fria; o que é verdadeiramente doméstico hoje pode não o ser necessariamente em cinco anos.
Outro ponto frequentemente ressaltado por vários membros diz respeito às implicações de tal prática, as quais abririam precedentes para colocar a ONU “at the beck and call of any State faced with a problem of a dissident minority within its own borders” , argumento que fundamenta várias das discussões do CS, diante dos casos concretos.
O Artigo 2(7), na realidade, representa uma complicada tentativa de reconciliar a Doutrina da Soberania Estatal com a necessidade de intervenção em casos de “international concern, which historically connotes the gross deprivation of human rights” (HIGGINS, 2004).
Desta forma, faz-se mister orientarmo-nos pelos demais artigos da Carta de Intenções da Instituição, os quais tentam identificar os tipos de situações em que a ONU adquire competência para, legitimamente, influir no curso dos eventos.
O Artigo 2(4) apresenta uma norma categórica do direito internacional que fundamenta todas as demais provisões de segurança: “Members shall refrain in their international relations from the threat or use of force” . Tal declaração estabelece uma orientação que conforma os atores internacionais à não agirem com “threat or use of force”, sob a contrapartida de se tornarem contraventores, passíveis de serem punidos pela comunidade internacional. É imprescindível, desta forma, que tais conceitos sejam analisados mais atentamente a fim de esclarecerem, de fato, em quais situações a ONU adquire a autoridade legítima de realmente intervir num conflito.
Um argumento plausível seria estabelecer que a organização só poderia agir em casos de violações ao Artigo 2(4). Tal interpretação considera a Carta como um sistema fechado, no qual a competência da ONU estaria definida, e seus poderes limitados. Ao remetermos esta interpretação dos conceitos a outra passagem da Carta, como o Artigo 39, do Capítulo VII (o qual outorga poderes de intervenção ao Conselho de Segurança), iríamos encontrar que o use of force estaria equivalente às situações em que exista “violação à paz” ou “atos de agressão”, autorizando a organização a agir em situações onde a violação ao Artigo 2(4) teria sido expressa; enquanto as circunstâncias de threat of force seriam de competência exclusiva das atividades onde exista “risco potencial à paz”, reguladas pelo Capítulo VI.
Outro argumento seria a possibilidade de se analisar quaisquer infrações ao Artigo 2(4) sob uma perspectiva mais abrangente e discricionária do conceito de threat or use of force, estabelecendo sua correlação com um requisito generalizado de perigo à paz, o que nos remete, por exemplo, ao conceito de danger to peace, contido no Capítulo VI. Esta interpretação considera a Carta como um sistema aberto, capaz de autorizar a organização a interferir em um amplo leque de disputas que, teoricamente, poderiam infringir o Artigo 2(4) naquele momento, entretanto, possuem baixa capacidade de fazê-lo em realidade.
A posição adotada pelo Conselho de Segurança tem, na prática, se orientado pelo sistema aberto. Em particular, o conceito de threat to peace, do Artigo 39, tem sido aplicado essencialmente para situações de conflitos internos aos Estados. Os defensores do sistema fechado argumentam que problemas domésticos não seriam da competência da ONU, pois não constituem threat to force contra outro Estado. A fundamentação de tal leitura se baseia no preâmbulo da própria Carta, o qual indica que o conceito de paz somente deveria ser aplicado como antítese para situações de guerra entre Estados. Na prática, entretanto, tais subjeções perdem sua força quando diante de situações em que o conflito interno apresenta evidências de alcançar proporções globais.
O debate em torno das delimitações regulamentares sobre as atividades movimentadas pela ONU deveria ser vital ao esclarecimento da amplitude das intervenções, a fim de que estas se mantenham legítimas diante da outorga de poderes pela comunidade internacional. Entretanto, o que vem ocorrendo é muito mais uma flexibilização dos conceitos, a fim de se adequarem às situações em que há interesse político da organização, particularmente, dos membros permanentes do Conselho de Segurança.
Os termos usados pelo Capítulo VI, nos artigos 33 e 34, por exemplo, se referem a “dispute” ou “situation” para momentos em que “it is like to endanger the maintenance of international peace and security ”. Sendo assim, a função do Capítulo VI seria, portanto, outorgar poderes ao Conselho de Segurança para que ele resolva conflitos de natureza “perigosa”, através de meios pacíficos. Já no Capítulo VII, lê-se, logo em seu título, os conceitos de “action with respect to threats to the peace, breaches of the peace, and acts of aggression”, indicando que tal regulamentação deverá ser aplicada quando o “perigo” ultrapassa o status de “risco potencial” para designar “risco real, vigente ou efetivo”. Um estudo mais aprofundado dos momentos em que tais conceitos foram aplicados revela que, na prática, não há uma clara distinção de quando as atividades serão exercidas sob regulamentação do Capítulo VI, ou quando elas se darão com base no Capítulo VII. De fato, tais termos se resumem a rótulos usados para indicar o clima político do Conselho, facilitando a imposição de medidas mais ou menos coercitivas. Isto é, a tentativa de conceituar as circunstâncias em que a intervenção da ONU se legitimaria, e como, não se orienta pela natureza dos problemas, mas se torna necessária para apontar o momento em que as medidas que o Conselho vem adotando sob o Capítulo VI falham em resolver a situação, com o prolongamento do conflito.
Ainda assim, nos anos de formação do Conselho de Segurança, houve a tentativa de desenvolver uma jurisprudência que distinguisse legalmente os conceitos de “danger” e “threat to international peace”. A frase “potential threat”, a qual parece não ter nenhuma diferença conceitual de “danger to peace”, é produto do período da Guerra Fria, usada pelos os membros do Conselho para atingir consenso por conciliação de todos os interessados. Enquanto alguns membros desejavam que a identificação de tal risco viesse acompanhada por ações do Capítulo VII, outros, por razões igualmente políticas, desejavam que tal perigo implicasse somente em recomendações para que o conflito fosse resolvido de forma pacífica, através de medidas do Capítulo VI. Assim, na tentativa de produzir alguma forma de resolução, o Conselho usava o termo “potential threat” acompanhado de medidas de caráter voluntário. Com o fim da Guerra Fria, entretanto, a aplicação gradual de medidas em direção a atividades de coerção foi abandonada, sendo que o Conselho se encontra livre para usar o Capítulo VII em quase todas as circunstâncias em que há o desejo de intervir (quando o conflito ainda não se encontra num estágio em que a intervenção é politicamente interessante, o Conselho simplesmente prolonga o “timing” de identificação do conflito como potencialmente perigoso à paz internacional).
Com o decorrer da Guerra Fria, as transformações históricas do período acarretaram também na necessidade em se reavaliar várias das atividades políticas exercidas pela ONU. A repercussão de novos fenômenos políticos provocou alterações na interpretação de vários conceitos adotados pela instituição, sendo necessário sua adaptação para o novo contexto mundial. O termo threat to peace adquiriu, desta forma, outras aplicações práticas, abrangendo seus efeitos para além de situações de disputas entre Estados. Nos primeiros anos do Conselho de Segurança, o termo threat to peace era usado somente para situações preliminares à identificação de ocorrências reais e diretas contra a paz internacional. Durante as reuniões de 1965 a 1968, o termo começou a ser moldado para se adequar às situações pouco tradicionais de violência internacional, nas quais o principal perigo à paz mundial não estava no conflito entre dois ou mais Estados, mas surgia principalmente de eventos domésticos, os quais poderiam se manifestar futuramente em ataques a outros Estados. Sendo assim, a extensão do conceito de threat to peace deveria, portanto, possuir dois elementos essenciais: o desrespeito aos direitos fundamentais do indivíduo, ou da maioria – traduzido, muitas vezes, em right to self-determination – e a probabilidade de expansão do conflito interno para violência internacional – caracterizado como spillover effect.
Desta forma, a legitimação da prática intervencionista da ONU para as novas circunstâncias que se apresentavam no contexto Pós-Guerra Fria se sustentou, em termos de política jurídica, na ampliação do conceito de threat to peace; o qual poderia, portanto, ser aplicado diante de genocídio e sérias crises humanitárias (Rwanda, Zaire, Burundi), guerras civis (Libéria e Angola), situações de inanição (Somália), assim como a controversa restauração da democracia (Haiti) (WHITE, 1997).
O Direito Internacional Costumeiro indica ainda que tal ajuda humanitária (promovida por agências internacionais) deve, no entanto, ser implantada após um pedido ou o consentimento do país para o qual essa ajuda é destinada. Conforme já foi ressaltado neste estudo, algumas propostas, em especial o inovador Relatório do ICISS, têm sido elaboradas a fim de permitir atividades de intervenção mesmo sem a permissão do Estado soberano .
Argumenta-se atualmente que o reconhecimento dos Estados como atores centrais, juridicamente iguais e soberanos absolutos dentro de suas jurisdições , embora permaneça central às relações internacionais, tem sido adaptado aos novos valores universais. O conceito de soberania abarcaria, portanto, três noções: o grau de respeito que uma instituição merece, a sua capacidade para governar e sua habilidade para agir em nome e para o benefício de uma maioria (NICHOLAS ONUF, 2003). Embora esta definição de soberania não defina precisamente o grau da capacidade de um Governo, abrindo espaço para interpretações mais abrangentes, ressalte-se, entretanto, que o princípio da não-intervenção nos Estados ainda possui, em sua essência, a garantia legal no Direito Internacional.
O rompimento desta regra se legitimaria, porém, conforme assim defende o Relatório do ICISS, em razão da perda de controle sob a ordem civil, o que sustentaria a idéia de eventuais intervenções internacionais (com ou sem o consentimento das autoridades locais), com o fim de, caso não haja real perigo à segurança internacional, amenizar o sofrimento humano.
A adoção definitiva do Projeto do ICISS significaria, portanto, em reconhecer que:
Quando uma população sofre por uma guerra civil, quer por repressão exercida pelo Estado, quer pelo fracasso de suas políticas, ou porque o Estado não está disposto ou não é capaz de pôr fim a esses sofrimentos ou evitá-los, a responsabilidade internacional de proteger tem primazia sobre o princípio de não-intervenção (FALK, 2000).
Autor: Mariana Gomes Pereira


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