A Aplicação da Lei Penal e as ações Penais Privadas, Privadas Subsidiárias da Pública e Públicas Condicionadas - Aspectos Relevantes



AÇÃO PENAL – CONCEITO

O Prof. Júlio Fabrini Mirabete traz em sua obra "Processo Penal", conceitos de ação penal elaborados por Magalhães Noronha e José Frederico Marques: "...o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do Direito Penal Objetivo" (Magalhães Noronha), ou ainda, "o direito de invocar-se o Poder Judiciário para aplicar o direito penal objetivo" (José Frederico Marques).
O citado Mestre, por sua vez, adotando o conceito elaborado por Fernando da Costa Tourinho Filho, leciona que a ação penal:
a- É um direito autônomo:
O direito de ação é autônomo, pois não se confunde com o direito subjetivo material que ampararia a pretensão deduzida em juízo. Se não fosse, não se poderia compreender como o direito de ação pôde ser exercido pela parte quando, afinal, foi ela julgada improcedente. Tem assim a ação um conteúdo próprio, uma vida própria, diversos do direito material a que está ligado. O destinatário da ação não é o sujeito passivo da pretensão insatisfeita e sim o Estado, representado pelo órgão judiciário, a quem se endereça o pedido sobre a pretensão. O interesse do autor é ver atendida sua pretensão, aquela deduzida perante o Estado-Juiz.
b- É um direito abstrato:
Além de autônomo, o direito de ação é um direito abstrato, que investe o seu titular da faculdade de invocar o poder público, por meio dos órgãos judiciários, para compor uma lide e atender, se possível, a pretensão insatisfeita de que este se origina. Independe, portanto, do resultado final do processo, de que o autor tenha ou não razão, ou de que obtenha ou não êxito no que pretende.
c- É um direito instrumental, específico e determinado:
É também um direito instrumental. Embora o fim último do autor seja o de obter um resultado favorável à pretensão insatisfeita, o direito de ação tem por fim a instauração do processo, com a tutela jurisdicional, para a composição da lide. Esse direito instrumental, porém, só existe porque é conexo a um caso concreto. Ingressa-se em juízo pretendendo algo específico. Seu conteúdo é a pretensão deduzida, como determinado, porque está ligada a um fato ou interesse concreto.
d- É um direito subjetivo:
É a ação um direito subjetivo, porque o titular pode exigir do Estado-Juiz a prestação jurisdicional.
e- É um direito público:
É um direito público porque serve para a aplicação do direito público, que é o de provocar a atuação jurisdicional.
E, por fim, assevera:
Diante de tais características pode-se adotar a definição de ação fornecida por Fernando da Costa Tourinho Filho: "Ação é o direito subjetivo de se invocar do Estado-Juiz a aplicação do direito objetivo a um caso concreto. Tal direito é público, subjetivo, autônomo, específico, determinado e abstrato".

CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES PENAIS

Vários são os critérios de classificação das ações penais.
Colocando-se a ação penal no esquema da Teoria Geral do Processo, em face do seu conteúdo, pode-se afirmar que ela subdivide-se em ações de conhecimento (declaratória, constitutiva e condenatória), as cautelares e as executivas.
Convém trazer à colação, a esta altura, as lições do Professor Julio Fabrini Mirabete:
a- Ação penal declaratória:
Ação penal de conhecimento é aquela em que a prestação jurisdicional consiste numa decisão sobre situação jurídica disciplinada no Direito Penal. São exemplos de ação penal declaratória o hábeas corpus preventivo em que o pedido é de declarar-se a existência de uma ameaça à liberdade de locomoção....
b- Ação penal constitutiva:
Sendo a ação penal constitutiva àquela destinada a criar, extinguir ou modificar uma situação jurídica sob a regulamentação do direito penal ou formal, apontam-se como exemplos as referentes ao pedido de homologação de sentença penal estrangeira e o de revisão criminal (que é uma rescisória no campo penal).
c- Ação penal condenatória:
A ação penal condenatória, destacadamente a mais relevante no campo penal, é a que tem por objetivo o reconhecimento de uma pretensão punitiva ou aplicação de medida de segurança, para que seja imposto ao réu o preceito sancionador da norma penal incriminadora.
d- Ação penal executiva:
Como ação penal executiva, em que se dá atuação à sanção penal, cita-se a execução da pena de multa, disciplinada nos artigos 164 a 170 da Lei de Execução Penal. Como a execução das demais penas (privativas de liberdade e restritivas de direito) independe de provocação dos órgão da persecução penal, procedendo-se de ofício, sem citação, não há que se falar, nessas hipóteses, em ação executiva, mas em prolongamento da ação penal condenatória.
e- Ação penal cautelar:
A ação cautelar, em que há a antecipação provisória das prováveis conseqüências de uma decisão de ação principal em que se procura afastar o periculum in mora assegurando a eficácia futura desse processo, encontra exemplos no processo penal na perícia complementar (art. 168), no depoimento ad perpetuam rei memoriam (art. 225), na prisão preventiva (arts. 311 e ss) etc.
Todavia, o critério mais utilizado é aquele que se baseia no aspecto subjetivo do titular da ação penal (aquele legitimado a propor a ação penal).
Adotando-se o citado critério, as ações penais são públicas, quando a titularidade de seu exercício é do Ministério Público, ou privadas, quando seu titular é o particular ofendido ou seu representante legal.
As ações penais públicas, por sua vez, subdividem-se conforme esteja ou não presente uma condição específica de procedibilidade, qual seja, a representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça. Quando se exige este requisito, a ação é pública condicionada; nos demais casos a ação será pública incondicionada.
É de se ressaltar que os motivos determinantes do enquadramento de determinado crime a um dos tipos de ação supracitados são de natureza política criminal.
Assim, os crimes mais agressivos a sociedade, são de persecução absolutamente indisponível, estando sujeitos a ação pública incondicionada.
Nos crimes em que ocorra lesão imediata concernente à esfera íntima do ofendido e apenas mediata ao interesse da coletividade, exige-se que o ofendido manifeste o desejo de que se inicie a persecução, embora a iniciativa continue sendo pública (ação penal pública condicionada).
Há crimes em que a ofensa atinge quase que exclusivamente o interesse do sujeito passivo. Nestes, o Estado confere ao ofendido o próprio direito de ação.
Tendo em vista a finalidade do presente trabalho, é de se concentrar a atenção mais especificamente, embora de forma bastante concisa, na sub-classificação das ações penais privadas.
Leciona o Mestre Julio Fabrini Mirabete, que:
"há duas formas de ação privada: a exclusiva, ou principal, e a subsidiária da ação pública. A ação privada exclusiva somente pode ser proposta pelo ofendido ou por seu representante legal...Fala-se na ação privada personalíssima, cujo exercício compete, única e exclusivamente, ao ofendido, em que não há sucessão por morte ou ausência".
No que se refere à ação privada subsidiária da pública, assevera o citado mestre que pode "intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal (art. 100, § 3º, do CP, e art. 29, do CPP..Veja-se o que dispõem os citados dispositivos legais:
Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente declara privativa do ofendido.
.......
§ 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal".
"Art. 29 – Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal."
Importante, neste momento, citar, também, o artigo 30 do Código de Processo Penal: "Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada".
Assim, é de se concluir que a aludida ação pode ser intentada por qualquer um que tenha o seu bem jurídico lesado ou ameaçado pela prática de crime, qualquer que seja a lei definidora do ilícito.
Assente-se, em passant, que a propositura desta ação só tem guarida quando caracterizada a inércia do Ministério Público. Vale dizer: quando, transcorrido o prazo legal, não são tomadas as providências cabíveis, o que não ocorre, vale ressaltar, quando o inquérito policial é arquivado por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça.
No ponto, Mirabete observa que:
"A ação penal subsidiária, ou supletiva, só tem lugar no caso de inércia do órgão do MP, ou seja, quando ele, no prazo que lhe é concedido para oferecer a denúncia, não a apresenta, não requer diligência, nem pede o arquivamento. Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem provas (Súmula 525) e, em conseqüência, não cabe a ação privada subsidiária".
No mesmo sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
"Para que surja o direito de promover a ação penal privada subsidiária é indispensável que tenha havido omissão da ação pelo Ministério Público, o que nada mais é do que a inércia processual – falta de oferecimento de denúncia ou de pedido de arquivamento formulado à autoridade judiciária – e não verificar-se se ocorreu ou não inércia administrativa do citado órgão".
Note-se, que, se o juiz não concordar com o pedido de arquivamento, aplica-se o disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal:
"Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará obrigado o juiz obrigado a atender".
Todavia, é de se concluir que se evidencia a inércia do Ministério Público nas hipóteses em que o pedido de arquivamento do inquérito policial não for cabalmente fundamentado, e, por via de conseqüência, a possibilidade da propositura da ação penal privada subsidiária da pública.
Como se vê, a questão é por demais intrigante, eis que, de um lado, a lei processual determinando que o juiz estará obrigado a acatar a decisão do Procurador-Geral no sentido de que o inquérito deverá ser arquivado. Do outro, a possibilidade, muito remota, é claro, do Chefe do Ministério Público insistir num arquivamento absurdo, decorrente de escancarada falta ou descabida fundamentação.
Ora, nestes casos, é forçoso concluir que a restará à vítima desconsiderar a decisão do Ministério Público e a posterior homologação desta decisão pelo juiz, até mesmo em face da sua nulidade absoluta, e propor a ação penal privada subsidiária da pública, sob o argumento de que restara caracterizada a inércia do Parquet.
No caso, porém, de não ser recebida a ação por ter sido aplicado no caso concreto o art. 28 do CPP, restaria ao ofendido a tomada das medidas processuais cabíveis - tais como, por exemplo, a propositura de mandado de segurança; ação de nulidade, etc. -, para assegurar o seu direito constitucional de acesso à justiça, ou seja, de utilizar-se da ação penal privada prevista nos artigos 5º, inc. LIX da Carta Magna; 100, § 3º do CP e 29 do CPP, quando evidenciada a omissão do Ministério Público.
Não se trata, é evidente, de negar vigência ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, eis que para a sua aplicabilidade, pressupõe-se, obviamente, a atuação legítima de "Parquet" em fundamentar adequadamente o pedido de arquivamento do inquérito policial.
Do contrário, estar-se-ia admitindo, ao arrepio da técnica, da lógica, da moral, dos princípios que norteiam o estado democrático de direito e o devido processo legal, um monopólio tirano da ação penal.

NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA PÚBLICA E PÚBLICAS CONDICIONADAS

Como é cediço, a ação penal privada subsidiária da pública, está prevista, inclusive, no art. 5º, inciso LIX da Constituição Federal: "Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal".
A propósito, ensina o Prof. Mirabete que:
"Essa ação privada subsidiária da ação pública passou a constituir garantia constitucional com a nova Carta Magna (art. 5º, LIX), em consonância, aliás, com o princípio de que a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV). Atende-se ao inderrogável princípio democrático do processo a participação do ofendido na persecução penal".
O Procurador da República Anastácio Nóbrega Tahim Júnior, por sua vez, observa:
"Alçada à categoria de garantia constitucional, a ação penal privada subsidiária da pública ainda suscita controvérsias. Singularizada por muitos como uma verdadeira avis rara de nosso ordenamento jurídico, sem prejuízo da inconveniência resultante de sua existência num sistema acusatório, como é o caso do nosso, a verdade é que, com assento no artigo 5º de nossa Carta Política de 1988, a ação penal privada subsidiária consubstancia-se em cláusula pétrea, em que pese todas essas honrosas críticas".
Têm-se, pois, que a natureza jurídica da ação penal privada subsidiária da pública é de instrumento de garantia constitucional, podendo, assim, ser também chamada de "remédio".
Imperioso notar que a mesma indisponibilidade existente na instauração do Inquérito Policial e na propositura da ação penal também deve nortear a tramitação dos mesmos, não sendo permitido à Autoridade Policial e nem ao Ministério Público desistir de suas investigações ou da ação, respectivamente (arts. 17 e 42 do CPP). Também prevê o artigo 576 do CPP a aplicação do princípio da indisponibilidade em matérias recursais, sendo certo que o órgão acusador não tem a faculdade de desistir do recurso interposto. Trata-se da regra da irretratabilidade que, igualmente, sofre exceções. É o caso dos crimes de ação privada, nos quais as normais infraconstitucionais (arts. 49, 51 e ss e 60, CPP) admitem os institutos da renúncia, do perdão e da perempção, e dos crimes de ação pública condicionada à representação, onde é possível a retratação antes de oferecida a denúncia (art. 25, CPP).

A LEGITIMIDADE DO ESTADO-ADMINISTRAÇÃO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA PÚBLICA COM RELAÇÃO AOS CRIMES QUE CAUSAM OU POSSAM CAUSAR LESÃO AO SEU PATRIMÔNIO FÍSICO.

Conforme visto acima, a ação supracitada caracteriza-se como cláusula pétrea e pode ser intentada por qualquer um que tenha o seu interesse ou bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão pela prática de crime.
Desta feita, pode-se afirmar que o titular desta ação é, obviamente, o sujeito passivo imediato do crime ou o ofendido pela prática delituosa (CPP, art. 30).
Todavia, é necessária uma análise acerca da abrangência da aplicabilidade desse dispositivo constitucional.
Não se pode afirmar, obviamente, que o citado sujeito passivo poderia ser tão-somente a pessoa física.
É evidente que também detém esta condição a pessoa jurídica, eis que também pode, obviamente, sofrer lesão ou ameaça de lesão, em decorrência da prática de uma infração penal.
Neste sentido é o entendimento do Prof. Fábio Ramazzini Bechara, ao comentar acerca da pessoa jurídica na condição de sujeito passivo de crimes:
Nesse mesmo conceito se inserem não somente as pessoas físicas, mas igualmente as pessoas jurídicas, sejam elas de direito público ou de direito privado. No crime de estelionato, na modalidade emissão de cheques sem fundos, por exemplo, tanto é possível que o sujeito passivo seja uma pessoa física quanto uma pessoa jurídica – uma empresa, uma sociedade de economia mista, a União, os Estados, os Municípios.
Têm-se, pois, que a entidade política é detentora da aludida legitimidade, eis que é pessoa jurídica e figura como sujeito passivo direto em várias figuras delitivas, tais como aquelas previstas no Capítulo I do Título XI do Código Penal; na Lei das Licitações e Contratos, etc.
No ponto, é de se trazer o comentário de Jessé Torres sobre o artigo 90 da Lei Federal n. 8.666/93:
"Art. 90 – Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação:
Pena – detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
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3.1 - Objetividade jurídica
A Administração Pública, no particular aspecto de seu patrimônio, que deve ser protegido através da aquisição mediante a proposta mais vantajosa, sobretudo quanto ao preço, da moralidade que deve presidir seus atos e da livra concorrência que se aplica ao processo licitatório, permitindo a competição salutar entre todos os licitantes.
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3.3 – Sujeito passivo
Primariamente, o Estado que vê frustrado ou fraudado seu interesse na competitividade da licitação e da qual deve emergir a proposta mais vantajosa economicamente.
Não há se falar que o Ministério Público, por se confundir com o Estado-Administração, retiraria deste a legitimidade para propor a ação subsidiária, eis que, consoante é sabido, a Constituição Federal de 1988 retirou do Parquet a atribuição de representante judicial dos entes de Direito Público (arts. 131 e 132), o que os legitima plenamente para a propositura da ação subsidiária.
Como dilucida o Professor Airton Rocha Nóbrega:
Uma avaliação atual dessa questão, exige, necessariamente, que se considere o fato de estarem deslocadas da esfera de competência do Ministério Público as atribuições alusivas à representação judicial dos entes de Direito Público que, com a promulgação da Carta Federal de 1988, se viu transferida, no âmbito federal, para a esfera da Advocacia-Geral da União (art. 131).
Esse órgão passou a ter, portanto, por intermédio de quadro próprio, de forma independente e dissociada da atuação do Ministério Público, a função institucional de representante judicial da União, diretamente ou através de órgão vinculado.
Ao Ministério Público, como órgão independente e instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, reserva-se o exercício de atribuições que lhe são próprias (CF: art. 129), não mais fazendo parte desse rol de atividades aquela alusiva à representação de tais entes.
Por sua vez, o Professor Rodolfo de Camargo Mancuso, citando José Marcelo Menezes Vigliar, afirma:
Nesse ponto, é muito importante a distinção conceitual, desenvolvida na doutrina italiana por Renato Alessi, entre "interesse público primário" e "interesse público secundário", cujo desdobramento permite, a nosso ver, a não menos importante distinção entre "interesse público" (propriamente dito) e "interesse fazendário" ou "da Administração Pública".
Note-se que o art. 127 da CF legitima o Ministério Público à defesa "dos interesse sociais e individuais indisponíveis", mas no art. 129, IX, veda-lhe "a representação judicial e a consultoria jurídicas entidades públicas", justamente por causa daquela distinção, observando-se, v.g., que "o interesse da União" vem a ser defendido por esse mesmo ente político, através de sua Procuradoria, no caso a Advocacia Geral da União (CF, art. 131). No ponto, preleciona José Marcelo Menezes Vigliar: "Fica patente que nem sempre o interesse cujo Estado (enquanto pessoa jurídica de direito público) é o titular coincide com o interesse público identificado com o conceito de bem geral (interesse da coletividade como um todo.
O Professor Jessé Torres Pereira Júnior, ao comentar o disposto no art. 103 da Lei Federal n. 8.666/93, em singular e objetiva apreciação, assevera com plena juridicidade, que o Estado-Administração, por distinguir-se do Ministério Público, tem plena legitiminade para propor a ação subsidiária:
Consagrou o legislador, neste dispositivo, o que a doutrina nomeia ação penal privada subsidiária da pública. Instituto incluído nos artigos 29 e 30 do Código de Processo Penal e alçado a direito individual pelo constituinte de 1988, consiste na garantia que se assegura ao cidadão de poder deflagrar o processo persecutório do infrator em caso de inércia de órgão de atuação do Ministério Público, quando este deixa de propor a ação penal, oferecendo a denúncia no prazo legal. É hipótese, pois, de substituição processual, eis que o ofendido ou quem tenha qualidade para representá-lo atua em nome próprio defendendo direito alheio, uma vez que o titular do direito de punir é o Estado.
Cumpre, pois, definir quem tem a legitimação extraordinária para propor a ação penal privada subsidiária. Remete o dispositivo em comento ao disposto nos artigos 29 e 30 do diploma processual penal, estabelecendo este último que caberá ao ofendido (ou a quem tenha qualidade para representá-lo) a iniciativa para intentar a ação penal no caso de omissão do Ministério Público. Legitimado, pois, será o titular do bem jurídico penalmente tutelado e lesado pelo ato infracional praticado.
Sob este prisma, vamo-nos deparar com curiosa situação, nos caso dos crimes definidos na Lei: como, em todos eles, o objeto da proteção penal é a Administração Pública e, por conseguinte, sujeito passivo primário é o Estado, disto se segue será ele, o ofendido, o legitimado extraordinariamente para a propositura da ação penal privada subsidiária da pública. Peculiar situação em que veremos o Estado substituindo-se...ao próprio Estado!
Com efeito. Titular do direito de ação penal pública, não detém o Ministério Público um direito próprio, seu, exclusivo, senão que a Constituição lhe confere a guarda e o exercício de um direito do Estado, já que a este, e só a este, se reconhece a titularidade do direito de punir. Por isto mesmo, é o Ministério Público órgão do Estado, velando o legislador constituinte por conferir-lhe prerrogativas (antes só reconhecidas à magistratura) que lhe assegurassem a necessária independência no exercício da superior função que lhe entregou a Carta da República. O exame destas prerrogativas (art. 128, I, da Constituição Federal) revela a preocupação do legislador constituinte, em tornar os membros do Parquet imunes a influências e pressões originadas, de regra, no seio da Administração Pública.
Disto se depreende que nem sempre são coincidentes os interesses defendidos e tutelados pelo Ministério Público e aqueles patrocinados pela Administração Pública. A prática, aliás, demonstra o sem-número de vezes em que o Ministério Público atua contra a Administração Pública, promovendo medidas na área cível e criminal, que confrontam o exercício do poder pelo administrador.
Não é de desprezar-se, portanto, a hipótese em que o entendimento do Ministério Público contrarie os interesses da Administração Pública quando à dedução da ação penal, não se podendo admitir que o Estado, por sua Administração, se visse tolhido em seu direito de ver submetida à apreciação do Poder Judiciário lesão que entenda ter ocorrido a direito seu, no caso de inércia ou inação da representação do Ministério Público.
Não hesitamos, portanto, em admitir que, em se tratando de crime definido na Lei (como, de resto, em qualquer crime cometido contra interesse ou patrimônio da Administração Pública), a inércia do Ministério Público, na propositura da ação penal pública autoriza ao Estado, por sua Administração, o exercício da ação penal privada subsidiária, hipótese em que ele se equipara ao particular (como em tantas outras, aliás), assim como o exercício da faculdade de recorrer, prevista no artigo 598 do Código de Processo Penal, nos casos em que o órgão de atuação do Ministério Público se conforme com a decisão proferida na ação penal, mas cujo desfecho a Administração Pública repute incompatível com o interesse público.
Assim, caracterizada a efetiva distinção de interesses e de atuação entre o Ministério Público e os entes públicos, bem como a evidente possibilidade destes serem sujeitos passivos de crimes, resta categoricamente demonstrada a legitimidade das aludidas entidades proporem a ação privada subsidiária da pública, se necessário, lembrando, nesse ponto, que a referida ação fora elevada à categoria de garantia constitucional, conforme visto no item anterior.
Realce-se, ainda, que se a melhor doutrina tem admitido, inclusive, a propositura da ação subsidiária da pública até mesmo nos chamados crimes vagos, quanto mais naqueles tipos penais em que o ente público é de pronto identificado como vítima; ofendido ou sujeito passivo imediato.
A esse respeito, e para corroborar ainda mais as afirmativas acima, é de se transcrever parte da tese apresentada e aprovada pelo Ilustre Procurador da República em Goiás, Dr. Anastácio Nóbrega Tahim Júnior, no 13º Congresso Nacional do Ministério Público, onde cita, inclusive, o Código de Defesa do Consumidor, que prevê a titularidade da ação subsidiária até mesmo por órgão da administração pública sem personalidade jurídica:
".....não se pode deixar de ter presente que a ação penal privada subsidiária é privada, apenas, subsidiariamente. Traz ela, como pano de fundo, toda a principiologia que inspira e informa as ações penais públicas. Em se tratando de ação pública em sua essência, pois, como qualquer uma outra, seu móvel não é um interesse particular da vítima, mas o interesse público que anima e justifica a própria repressão criminal.
Parece insustentável, portanto, que esse interesse público e princípios como o da obrigatoriedade e da indisponibilidade, por exemplo, possam não ser reconhecidos a ponto de cair no vazio a persecução penal quando inerte o Ministério Público, em casos que tais; tão somente pelo fato de se ter, como sujeito passivo, uma dada coletividade...
Assim, quer tenha o crime, como sujeito passivo, uma pessoa individualmente considerada e determinada, quer uma coletividade destituída de personalidade jurídica, é possível concluir, com extrema razoabilidade, que há identidade de razão jurídica entre ambas as situações, a justificar a aplicação dos mesmos princípios e dispositivos.
É dizer, qualquer que seja o delito, se inerte o Ministério Público quando do oferecimento de denúncia, estará aberto o caminho para a ação penal privada subsidiária, por quem detenha a necessária legitimidade....."
..........
Corroborando a tese aqui esboçada, no sentido de que a ação penal privada subsidiária da pública também tem ampla aplicação nos crimes que comprometem toda uma coletividade – e a de consumidores não poderia passar ao largo dessa disciplina -, a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, atribuiu legitimidade ativa para aquela causa também aos legitimados indicados no artigo 82, incisos III (as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) e IV (as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) da mesma lei, nos termos de seu artigo 80.
Conclusão:
..........
I – a ação penal privada subsidiária da pública tem, também,plena aplicação nos chamados crimes vagos; aqueles em que o sujeito passivo é uma coletividade destituída de personalidade jurídica;
II – em caso de inércia do Ministério Público no oferecimento de denúncia em casos que tais (crimes contra a incolumidade pública ou mesmo contra o meio ambiente, por exemplo), a ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública poderá ser proposta por todo aquele que puder se identificar, ao lado da coletividade a que pertence, como sendo o titular do bem jurídico tutelado pela norma penal;
III – a noção de coletividade lesionada e, conseqüentemente, de indivíduos que a integra, para os fins de ação penal privada subsidiária da pública, deve-se prender à idéia de sujeito passivo. A extensão desses conceitos, portanto, vai até onde houver titularidade do bem jurídico penalmente protegido; e
Quanto aos crimes vagos que interessem às relações de consumo, a legitimidade ativa para a causa é, sem prejuízo da pertencente ao ofendido, também conferida aos legitimados indicados no art. 82, incisos III (as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem persolnalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) e IV (as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre os seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC) da Lei n. 8.078/90)".





A AÇÃO PENAL PRIVADA E OS INSTITUTOS DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

Diante da edição da Lei dos Juizados Especiais Criminais – LJE (Lei n.º 9.099/95) e do seu silêncio quanto à aplicação de seus principais institutos às ações penais exclusivamente privadas, mormente a transação penal e a suspensão condicional do processo, pôs-se a questão de saber se referida omissão seria indicativo veemente de vedação no seio da relação entre querelante e querelado.
Utiliza-se no presente trabalho, como na maioria dos estudos monográficos da seara jurídica, a bibliografia (opinião dos doutos) e as amostras jurisprudenciais coletadas junto à rede mundial de computadores como principais fontes de pesquisa.
A investigação não se inicia sem antes traçar e compreender as linhas legais e doutrinárias básicas da ação penal privada e as justificativas que explicam sua sobrevivência dentro do ordenamento jurídico vigente. A partir do estudo de seus princípios desencadeia-se a busca para bem responder a questão singelamente levantada. Com isso, busca-se identificar as notas essenciais no regramento da ação penal exclusivamente privada, a fim de saber de incompatibilidades lógicas evidentes que possam desde logo refutar sua permeabilidade aos institutos despenalizadores da Lei dos juizados Especiais Criminais, objeto do presente estudo.
O foco da análise se volta também para o conhecimento dos pontos nevrálgicos e das necessidades do sistema processual contemporâneo, mais especificamente do sistema processual penal brasileiro, bem como para as fórmulas mais recentes encontradas pelos cientistas como alternativas para a otimização da atividade jurisdicional, de forma a resgatar sua legitimidade junto à coletividade, com a efetivação e aprimoramento de sua clássica função de pacificação social; correlaciona-se este quadro, pois, com a edição da LJE, com o escopo de investigar as razões de política criminal que informam seus institutos e suas serventias práticas para a solução dos problemas detectados no sistema.
Faz-se, então, com base da revisão bibliográfica, uma digressão sobre os 4 (quatro) institutos previstos na LJE, quais sejam a composição civil (art. 74), a transação penal (art. 76), a transformação da lesão corporal simples em crime de ação penal pública condicionada à representação e, finalmente, a suspensão condicional processo (art. 89). Analisam-se suas linhas essenciais, vinculando-as às tendências do processo penal contemporâneo, em que a valorização da vítima, decorrente dos avanços da Vitimologia, juntamente com a escolha de um modelo consensual de solução de conflitos penais são características distintivas.
Procura-se, em seguida, ao demonstrar as principais idéias doutrinárias em torno do tema, bem como a maneira como o mesmo vem sendo tratado pelos tribunais superiores, com destaque para os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), responsáveis, respectivamente, pela uniformização da interpretação da Constituição Federal e da legislação federal infraconstitucional, fornecer maiores subsídios para a solução da indagação empreendida.
Busca-se evidenciar, por fim, com forte concentração no entendimento dos tribunais, não só o percurso – com suas idas e vindas, mas também os fundamentos jurídicos em que se baseia o disciplinamento atual (doutrinário e jurisprudencial) da matéria, respondendo ao final sobre a possibilidade da aplicação, a legitimidade, vantagens, desvantagens e as demais razões extralegais que circundam a questão posta.

O MODELO DE JUSTIÇA CONSENSUAL E A LEI N.º 9.099/95

O progresso da ciência processual assistiu o cientificismo ceder lugar à preocupação com sua efetividade. O descompasso entre as descobertas científicas a prática processual levou os estudiosos do processo a rever as orientações metodológicas então vigentes, em nome de uma justiça mais célere, eficiente e capaz de dar tratamento aos litígios postos à apreciação do Estado-Juiz.
Antonio Scarance Fernandes (2002, p. 191) afirma que a doutrina há muito vinha preceituando, dentre outras coisas, a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, segundo o qual o órgão acusatório tem o dever de perseguir todo e qualquer crime, valendo-se, sobretudo, do arquivamento do inquérito policial, com o beneplácito do judiciário, fundado ora em razões de política criminal, como a adequação social da conduta, ora por inexistência de ofensa concreta ao bem penalmente tutelado (insignificância) ou mesmo por falta de justa causa (presença de indícios de autoria e elementos de materialidade).
O reconhecimento da falência do sistema processual tradicional regido pelo princípio da obrigatoriedade estaria, portanto, demandando, tanto que na prática isto já ocorria, a flexibilização da necessidade de instauração da ação penal pública, conferindo ao Ministério Público certa discricionariedade em sua atuação persecutória.
Da mesma forma, segundo Pellegrini et al (1999, p. 31), a idéia de que o Estado possa e deva perseguir penalmente toda e qualquer infração, sem admitir-se, em hipótese alguma, certa dose de disponibilidade da ação penal pública, havia mostrado, com toda a evidência, sua falácia e hipocrisia. Paralelamente, havia-se percebido que a solução das controvérsias penais em certas infrações, principalmente quando de pequena monta, poderia ser atingida pelo método consensual.
Foi assim descrito por Scarance (2002, p. 198) o movimento em busca da efetividade do processo:
Firmada a idéia de que e necessário cunhar regras processuais que resultem em eficácia na atuação concreta do direito, passa a doutrina a falar em deformalização e delegalização.
A deformalização apresenta duas faces: a deformalização do processo em si e a deformalização das controvérsias. Com a primeira, pretende-se um processo mais simples, rápido, econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com eficiência tipos particulares de conflitos de interesses. Com a segunda, buscam-se equivalentes jurisdicionais, ‘como vias alternativas ao processo, capazes de evitá-lo, para solucionar as controvérsias mediante instrumentos institucionalizados de mediação’. Expressa-se a deformalização do processo e das controvérsias por duas vertentes de superação da crise da justiça: a via jurisdicional e a via dos meios alternativos.
A delegalização representa a ‘possível submissão de certas causas a um juízo de equidade, subtraindo-as à solução legal’.
Nesse contexto impregnado de novas idéias de reforma eficiente do processo e da justiça e que se insere marcante preferência pela solução consensual, pela via de conciliação. De um lado, a conciliação realizada fora do processo entre os interessados e, de outro, aquela obtida no processo pelas partes e estimulada pelo juiz da causa.
Constatou-se enfim que e preciso dinamizar o processo para sua função instrumental, servindo aos anseios de uma justiça rápida, mais eficiente, e, para isso, algumas idéias passam a ser propaladas e tenazmente defendidas:
a) é necessário estimular o uso de vias alternativas para a solução dos litígios, fora do âmbito judiciário ou dentro deste, ficando a resolução clássica, mais morosa, para as causas de maior complexidade ou relevância;
b) dentro do âmbito judiciário, deve-se preferir a via alternativa da conciliação e que, de preferência, evite a instauração formal do processo;
c) para a conciliação, exige-se do juiz um novo papel, pois fica ele incumbido de estimular o acordo entre as partes na busca da solução mais rápida e justa;
e) os procedimentos devem ser marcados pela celeridade e pela oralidade para tornar a justiça menos burocratizada;
f) devem ser chamados a participar dos debates conciliatórios não só as partes formais da ação, mas outros interessados no litígio, como a vitima no processo criminal;
g) deve-se estimular a colaboração dos leigos na conciliação
É esse conjunto de idéias que moldam os contornos da justiça consensual, na qual os três principais protagonistas da cena processual, com a participação de terceiros interessados, como a vítima no processo penal, são instados a solucionar o conflito pelo consenso.
A Constituição de 1988, em seu art. 98, I, abriu as portas para a aplicação do modelo consensual de justiça, ao prever a criação dos juizados especiais criminais, in verbis:
A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau (Constituição Federal, grifo nosso).
Para regulamentar este dispositivo constitucional, foi editada a Lei n. º 9.099, de 26 de setembro de 1995, surgida na contramão de uma tendência legislativa de combater a criminalidade com o recrudescimento da resposta penal, sendo a Lei dos Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/90) um exemplo cabal desse movimento.
A Lei dos Juizados Especiais Criminais (LJE) veio, pois, atender os anseios de efetividade processual da comunidade jurídica e dos cidadãos em geral, estabelecendo definitivamente o modelo consensual de justiça no Brasil, trazendo consigo algumas inovações destinadas à resolução amigável dos conflitos de menor impacto social, sendo os principais: o acordo civil (art. 72), o aumento dos casos de representação (art. 88), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89).
Vale dizer que, atualmente, sob o nomen juris de infração de menor potencial ofensivo, enfeixam-se, após a modificação produzida com a Lei n.º 10.259/01, aqueles delitos (com ou sem procedimento especial) cuja pena máxima abstrata não exceda dois anos de duração, seja de reclusão, detenção ou prisão simples; abrangendo também todas as contravenções penais (independente da pena).


A LEI N.º 9.099/95 E A AÇÃO PENAL EXCLUSIVAMENTE PRIVADA

Como se viu, o texto constitucional apenas atribuiu à lei o papel de definir o cabimento do consenso penal, mas de seu próprio texto não se pode extrair qualquer outra limitação que tenha como critério decisivo outro fator senão o conceito de crime de menor potencial ofensivo. Não poderia, então, o legislador ou o intérprete afastar a sistemática dos juizados especiais de quaisquer crimes com base na titularidade do direito de agir, sob pena de burlar a matriz constitucional e as próprias finalidades para os quais foram idealizados os juizados e seus institutos.
O que se quer dizer é que, e isto já sinalizando para a conclusão do raciocínio apresentado, é que a LJE elevou a negociação penal como melhor forma de solucionar os conflitos postos sob seu procedimento, sendo a participação das partes imprescindível tanto na transação penal como na suspensão condicional do processo. O cerne da questão é muito mais centrado na bilateralidade do consenso processual-penal do que na espécie de crime ou modalidade de ação penal de que se cuide.
A fortiori, deve-se sempre lembrar de que partimos de um contexto em que a própria obrigatoriedade de ação penal pública sofreu mitigações autorizadas pela própria Constituição e disciplinadas por lei (LJE). O que era obrigatório, agora é submetido à discricionariedade regrada do Ministério Público – embora assim não pense Eugênio Pacelli (2003, p. 684), para quem a legalidade não foi flexibilizada e o Ministério Público apenas é agente de execução da política criminal consagrada na LJE, sem que isso importe em qualquer outorga de discricionariedade na aplicação dos institutos despenalizadores, mormente a transação penal e a suspensão condicional do processo, que têm seus requisitos claramente definidos em lei.
De acordo com a exposição, são os princípios da disponibilidade e da oportunidade os marcos orientadores da ação penal exclusivamente privada, tendo o legislador relegado ao ofendido (ou seu representante legal) o juízo de oportunidade e conveniência quanto à instauração da ação, o que é reforçado pela existência de institutos como a decadência, a renúncia, o perdão e a perempção.
Neste quadro, os institutos da LJE teriam ou não aplicação na ação penal exclusivamente privada?
No que concerne ao acordo civil, por expressa disposição da LJE, este acarreta a renúncia ao direito de queixa. Consequentemente, entendeu a lei que se a vítima se compôs com o autor do fato em relação à reparação dos danos civis, dele obtendo a desejada satisfação, não mais se justifica o ajuizamento da ação penal nas infrações penais de menor potencial ofensivo (PELLEGRINI, 1999, p. 136).
Com relação aos institutos da transação penal e suspensão condicional do processo, até mesmo por ausência de expressa disposição da lei em sentido afirmativo, muito se discutiu na doutrina e jurisprudência acerca de sua aplicação à ação penal privada.
Cezar Roberto Bittencourt (2003, p. 603) textualmente nega a possibilidade de aplicação dos institutos de LJE às ações penais exclusivamente privadas, não só pela ausência de previsão legal; pela interpretação literal dos arts. 76 e 89 da LJE, que só se referem à iniciativa negocial do Ministério Público, nada falando quanto ao querelante; e, por fim, pela inconstitucionalidade por ele vislumbrada na oposição de limites à continuidade da ação penal privada mesmo depois de ter a vítima vencido os impedimentos de ordem pessoal que motivariam sua inércia e a decadência do direito de queixa.
Ada Pellegrini et al. (Ibid., p. 267) chegou a defender a exclusividade da transação e suspensão condicional do processo às ações penais públicas, sob a fundamentação de que na ação privada já vigoraria o princípio da oportunidade e que qualquer acordo seria tido como perdão ou perempção.
A jurisprudência também sufragava o entendimento de que no silêncio da lei quanto à iniciativa do querelante, referindo-se apenas aos crimes de ação penal pública e ao Ministério Público, não caberia ao intérprete estender os institutos à ação penal exclusivamente privada, até mesmo com base na titularidade estatal do jus puniendi que não autorizaria pudesse o querelante, como mero substituto processual, transigir com os interesses do substituído. Alegava-se, inclusive no Superior Tribunal de Justiça que, nos crimes em que o jus persequendi é exercido por ação de iniciativa privada, é impróprio o uso do instituto da suspensão condicional do processo, já que a possibilidade de acordo é da essência do seu modelo, no qual têm vigor os princípios da oportunidade e da disponibilidade. (STJ – HC n.º 17.431/SP).
Eugênio Pacelli (2003, p. 633) não admite nem a transação penal nem suspensão condicional do processo, por vislumbrar incompatibilidade entre o sistema de composição civil do art. 74 da LJE e a ação penal privada. Afirma que, no sistema processual clássico, por expressa disposição do art. 104, § único, do Código Penal, a reparação do dano não implica em renúncia ao direito de queixa, o que não se dá no âmbito dos juizados especiais, onde a composição extingue a punibilidade pela renúncia.

A NATUREZA LEGAL DOS INSTITUTOS DA LJE

A distinção entre normas materiais e processuais em direito penal é algo sempre nebuloso que, não raro, enfrenta sérios questionamentos antes de se pacificar.
Como é cediço, há normas tipicamente penais – que criam tipos penais e seus preceitos primários e secundários, etc.; e normas processuais, que regulam a aplicação dinâmica da jurisdição penal no seio da relação composta por Estado-Juiz, Autor e Réu, sem promover qualquer alteração no direito punitivo do Estado. As primeiras são regidas pelo princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica e as segundas pelo princípio da aplicação imediata (tempus regit actum).
Contudo, a doutrina identifica a existência de normas mistas que, veiculando matérias relativas a processo, atingem profundamente o jus puniendi e/ou a própria liberdade individual.
É Mirabete (1999, p. 57) quem bem elucida a questão:
Não se pode negar, porém, que existem normas mistas, ou seja, que abrigam naturezas diversas, de caráter penal e de caráter processual. São normas penais as que versam sobre o crime, a pena, a medida de segurança, os efeitos da condenação e, de um modo geral, o jus puniendi (por exemplo, a extinção da punibilidade). São normas processuais, as que regulam o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Ora, se um preceito legal, embora processual, abriga uma regra penal, de direito material, aplica-se a ela os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna. Assim, embora as regras sobre ação penal e representação sejam leis processuais, como a falta de iniciativa da parte na ação privada e na ação pública dependente de representação pode acarretar a decadência, que é matéria penal ligada ao jus puniendi, não pode ser aplicada a lei nova que impede a extinção da punibilidade, por ser mais severa.
Desta forma, deve-se investigar a natureza dos institutos criados pela LJE, para esclarecer se são materiais ou processuais, o que terá repercussão tanto no tempo de sua aplicação e possibilidade de retroação como para saber se admitem ou não aplicação a casos análogos.
Analisando os referidos institutos, portanto, chega-se a conclusão de que todos eles repercutem no direito punitivo, pois todos implicam, mais cedo ou mais tarde no procedimento, na extinção da punibilidade. Segundo as lições de Mirabete (1999, p. 57), portanto, são normas que podem ser consideradas mistas.
Ada Pellegrini et al. (1999, p. 47) confirma esta conclusão, dizendo que os quatro institutos têm natureza híbrida: três com natureza processual-penal (art. 76, 88 e 89) e um com natureza penal-civil (art. 74).
Assim, conforme inclusive já decidiu STF, os institutos da LJE têm aplicação imediata e retroativa, mas sofrem limitações decorrentes não só da impossibilidade material de sua aplicação ao passado, mas, também, quando a lei posterior, malgrado retroativa, não tem mais como incidir, à falta de correspondência entre a anterior situação do fato e a hipótese normativa a que subordinada a sua aplicação, ou quando a situação de fato no momento em que essa lei entra em vigor não mais condiz com a natureza jurídica do instituto mais benéfico e, portanto, com a finalidade para a qual foi instituído (HC n.º 74.305/SP) – v. tb. STF, ADI n.º 1.719 MC/DF.
Ada Pellegrini (Ibid., p. 49) estabelece, ao contrário da decisão pretória acima referida, como marco temporal a determinar a possibilidade de retroação dos quatro institutos despenalizadores, o momento do trânsito em julgado da sentença.

O RECURSO À ANALOGIA

Em regra, a analogia é proscrita do direito penal seja quando implicar na ampliação das proibições ou no afastamento de benefícios existentes, em homenagem, sobretudo, a anterioridade da lei penal, guindada ao status de direito fundamental do cidadão.
Explica Zaffaroni (2002, p. 173) que
[...] também na análise jurídica a preparação dos elementos para a construção e os resultados da mesma devem corresponder a certos princípios que não se podem ver vulnerados, sob pena de inutilizar as proposições a que se cheguem ao término da investigação.
[...]
Se, por analogia, em direito penal, entende-se completar o texto legal de maneira a estendê-lo para proibir o que a lei não proíbe, considerando antijurídico o que a lei justifica, ou reprovável o que ela não reprova ou, em geral, punível o que não é por ela penalizado, baseando a conclusão em que proíbe, não justifica ou reprova condutas similares, este procedimento de interpretação é absolutamente vedado no campo da elaboração científico-jurídica do direito penal.
Damásio de Jesus (1997, p. 55), por sua vez, professa que a maioria da doutrina brasileira, malgrado os debates travados em torno do assunto, admite a analogia quanto às normas não incriminadoras, com base no art. 4º da LICC, mormente quando dela resultar benefícios para o indivíduo. É a conhecida analogia in bonam partem.
Consiste a analogia, portanto, na aplicação de conseqüências jurídicas características de uma hipótese prevista na lei penal a uma outra hipótese não tratada pelo legislador. A analogia supre a omissão da lei e, em direito penal, quando for benéfica ao réu, deve ser admitida.

ADMISSIBILIDADE DOS INSTITUTOS DA LJE NA AÇÃO PENAL EXCLUSIVAMENTE PRIVADA

A tendência doutrinária para refutar a aplicação dos institutos despenalizadores, principalmente a transação penal e a suspensão condicional do processo, às ações penais exclusivamente privada cedeu passo à sua franca admissão. Reconhecido pelos estudiosos o caráter consensual dos Juizados Especiais Criminais, atualmente as opiniões dominantes parecem ter encampado a franca admissão dos institutos em sede de ação penal privada.
Com efeito, para Roberto Podval (2002, p. 1911)
Em se tratando de ação penal privada a diferença está no fato de ser o querelante a parte legítima para propor a transação ou mesmo rejeitar a sua possibilidade. Não cabe aqui falar-se em direito subjetivo do querelado [...], mas sim de opção das partes em transacionarem.
O próprio Eugênio Pacceli (2003, p. 634), a princípio contrário à admissibilidade da transação penal e da suspensão condicional do processo na ação penal privada, ao final de sua exposição sobre o tema, passa a admitir a transação na impossibilidade real de composição civil, admitindo a suspensão do processo através do recurso à analogia in bonam partem, refutando os argumentos que se apóiam na disponibilidade da ação penal privada. Segundo ele, a suspensão do processo se insere no mesmo âmbito de disponibilidade da ação, podendo o querelante dela se valer ou não; aduz, por fim, que se o próprio Estado abdica da obrigatoriedade da ação penal para celebrar a suspensão condicional do processo, não há razões para que o querelante dela não possa lançar mão.
Revendo seu pensamento inicial, Ada Pellegrini et al. (1999, 141) admite a utilização da analogia para permitir a aplicação da transação às ações penais exclusivamente privadas:
A vítima, que viu frustrado o acordo civil do art. 74, quase certamente oferecerá queixa, se nem uma outra alternativa lhe for oferecida. Mas, se pode o mais, porque não poderia o menos? Talvez sua satisfação no cambito penal se reduza à imposição imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa, e não se vêem razões válidas obstar-se-lhe a via da transação que, se aceita pelo autuado, será mais benéfica também para este.
[...]
Dentro dessa postura, é possível ao juiz aplicar por analogia o disposto na primeira parte do art. 76, para que também incida nos casos de queixa, valendo lembrar que se trata de norma prevalentemente penal e mais benéfica.
E quanto à suspensão condicional do processo, Ada Pellegrini Grinover et al. (1999, p. 268), secundada por Roberto Podval (2002, p. 2034) professa que,
Bem refletido o assunto, no entanto, impõe-se destacar que a transação processual (suspensão do processo) não possui a mesma natureza do perdão (que afeta imediatamente o jus puniendi) nem da perempção (que é sanção processual ao querelante inerte, moroso). Havendo proposta e aceitação da suspensão do processo não se pode dizer que o querelante esteja sendo desidioso. Esta agindo. Está fazendo um opção pela incidência de uma resposta estatal alternativa, agora permitida, mas que é também resposta estatal ao delito. Isto não é inércia. Muito menos indulgência (perdão). Nem sequer abandono da lide.
[...]
Alguma alternativa transacional deve ter cabimento, mesmo porque o legislador, no art. 89, só teve em consideração a pena mínima do delito e de modo algum deixou transparecer que quisesse excluir qualquer modalidade de ação penal (pública ou privada).
[...]
O fato de o art. 89 mencionar exclusivamente "Ministério Público", "denúncia", não é obstáculo para a incidência da suspensão na ação penal privada, por causa da analogia (no caso in bonam partem), que vem sendo reconhecida amplamente na hipótese do art. 76.
Acima de preciosismos lingüísticos está o interesse maior na efetiva realização de uma política-criminal alternativa, assim como o interesse do próprio acusado de valer-se, querendo, dessa resposta estatal alternativa.
[...]
Não é porque já reinava o princípio da oportunidade em relação à ação penal privada, acrescente-se, que devemos, sempre, raciocinar, em termos de punição total (resposta estatal tradicional, prisão) ou renúncia total (perdão, perempção). Tercius datur. A introdução no nosso ordenamento jurídico de uma forma alternativa de solução do conflito obriga-nos a questionar a bipolaridade tradicional entre as duas alternativas clássicas na ação penal privada, surge agora a possibilidade de algo intermediário (cumprimento de algumas condições, dentre elas a reparação dos danos, durante certo período de prova, com eficácia extintiva da punibilidade). Muitas vezes, à vítima não interessa o processo clássico (por causa de todos os transtornos que ele provoca), nem tampouco o perdão puro e simples.
[...]
Consideram-se ainda (e esse argumento é de fundamental relevância) os interesses públicos gerais presentes no instituto da suspensão, que transcendem em muito os interesses pessoais dos envolvidos no litígio. Dentre aqueles destacam-se: ressocialização do infrator pela via alternativa da suspensão, reparação de danos sem necessidade de processo civil de execução, desburocratização da justiça, aplicação do Direito Penal e da pena de prisão como ultima ratio etc. Inviabilizada a suspensão na ação penal privada, nada disso será alcançado. Nem tampouco a meta político-criminal que o legislador quis imprimir para a chamada criminalidade de menor ou médio potencial ofensivo. Se até mesmo em relação aos crimes de ação penal pública, que envolve interesses públicos indiscutíveis, estes cedem para a incidência da suspensão do processo, com muito maior razão deve ser admitida em relação aos crimes de ação penal privada, onde predominam interesses privados. Pela própria natureza, estes a fortiori não contam com a primazia diante dos interesses públicos.
A jurisprudência, por sua vez, tem firmado entendimento dominante no sentido de aceitar a aplicação dos institutos da LJE nas ações penais privadas, conforme de depreende do aresto a seguir:
[...] Suspensão condicional do processo instaurado mediante ação penal privada: acertada, no caso, a admissibilidade, em tese, da suspensão, a legitimação para propô-la ou nela assentir é do querelante, não, do Ministério Público. (STF – HC 81720 – SP – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 19.04.2002 – p. 00049)
No STJ, igualmente a tese da admissibilidade tem sido acatada senão com base da analogia in bonam partem, na ausência de qualquer critério segregante vinculado à modalidade de ação penal:
O benefício previsto no art. 76 da Lei n.º 9.099/95, mediante a aplicação da analogia in bonam partem, prevista no art. 3º do Código de Processo Penal, é cabível também nos casos de crimes apurados através de ação penal privada (HC n.º 31.527/SP).
A Lei n.º 9.099/95 aplica-se aos crimes sujeitos a procedimentos especiais, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permitindo a transação e a suspensão condicional do processo inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada (RHC n.º 8.480/SP). E no mesmo sentido (HC n.º 33.929/SP; HC n.º 30443/SP; HC n.º 17601/SP; HC n.º 13.337/RJ).
Nos autos do RHC n.º 8.480/SP, em suas razões de decidir, o Min. Gilson Dipp assim se manifestou:
[...] Não vislumbro óbice à aplicação da Lei n° 9.099/95 aos crimes sujeitos a procedimentos especiais. desde que obedecidos os requisitos autorizadores, entendendo pela possibilidade da transação e da suspensão do processo até mesmo nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada.
O critério que define a incidência da benesse legal, afora os requisitos subjetivos, é o menor potencial ofensivo da conduta praticada, que deve ser aferido pela pena mínima cominada ao delito.
Maiores restrições vem sendo dispensadas, tendo em vista que o fim precípuo da lei dos Juizados Especiais é justamente a negociação – o que faz com que se entenda que a sua aplicação deve ser a mais ampla possível, ultrapassando-se eventuais contrariedades pela hermenêutica penal e pelos fundamentos e princípios da própria lei.
Verifica-se, então, a partir dos julgados e dos argumentos doutrinários atualmente considerados majoritários no seio da comunidade jurídica, que a transação processual ou penal prevista na LJE decorre essencialmente da política criminal que informa o referido diploma e, sendo disposição benéfica, nada impede que o recurso à analogia permita sua aplicação no âmbito das ações penais exclusivamente privadas, mesmo diante da literalidade lacônica dos arts. 76 e 89 da lei.

APLICAÇÃO DA LEI PENAL


As idéias – como proposições – surgem na filosofia, consagram-se na moral e se fortalecem com o Direito.
Da mesma maneira, a noção de dignidade da pessoa humana, concebida como uma idéia, surgiu no plano filosófico como reflexão (ou cogitatum), para em seguida ser consagrada como valor moral, ao qual, finalmente, agregou-se um valor jurídico.
Isto posto, inicia-se aqui uma incompleta e panorâmica exposição de alguma – por isso não toda – fundamentação filosófica e axiológica responsável, pelo menos parcialmente, pela consolidação de um paradigma da dignidade da pessoa humana e pela pré-compreensão dessa noção.
Ao longo da história, podemos observar a evolução do pensamento reflexivo do homem acerca da sua própria essência e da sua própria condição existencial.
No âmbito da filosofia, talvez seja no pensamento clássico que se encontrem as origens da idéia de que a pessoa humana seria dotada de um valor intrínseco. Num primeiro momento, essa premissa teria sido extraída da concepção de que todo ser humano possui um valor próprio que o distingue dos demais elementos da realidade. Bem mais tarde, essa idéia evoluiria para a noção de que esse mesmo ser humano, na figura de uma só pessoa, representaria toda a humanidade.
Na filosofia antiga, o limiar da preocupação com a natureza do homem talvez se encontre entre os sofistas. Foi com esses filósofos que se iniciou o deslocamento do eixo reflexivo do pensamento físico (cosmos) para o pensamento humanista antigo (homem como indivíduo e como membro de uma sociedade).
Nesta época, PROTÁGORAS afirmou que o homem era a medida de todas as coisas ("homo mensura") e ANTIFONTE defendeu a igualdade dos indivíduos independentemente de sua origem.
No pensamento estóico de CÍCERO, verificado nas clássicas tragédias gregas, já estava patente que o ser humano possuía uma qualidade que o distinguia das demais criaturas e que, além disso, esse atributo distintivo era uma característica de todos os seres humanos mesmo diante de eventuais diferenças sociais, culturais ou individuais.
Essa nova qualidade (ou dignidade) resultou do significado filosófico conferido ao universalismo de Alexandre Magno que concebia o mundo como uma única "polis" da qual todos participavam como amigos e iguais, e que nisso fundamentou sua conquistas e seu expansionismo.
A patrística de SANTO AGOSTINHO também buscou distinguir os seres humanos das coisas e dos animais. Anos antes, PLATÃO e ARISTÓTELES também se dedicaram a um objetivo semelhante, elevando o ser humano a um patamar de superioridade frente às demais criaturas.
É importante se notar que embora existisse essa reflexão acerca da condição humana, ainda surgiam e permaneciam arraigadas – mesmo no plano filosófico – muitas idéias que fundamentavam práticas morais prejudiciais ao ser humano e hoje drasticamente condenadas.
Na Idade Média, SÃO TOMAS DE AQUINO sustentou a divindade da chamada "dignitas humana".
Já no Renascimento, período em que se conclamou o homem como um ser ativo e responsável pela transformação da sua própria realidade, surgiu o pensamento de PICCO DELLA MIRANDOLA, humanista italiano que defendia o homem como um ente dotado da prerrogativa necessária para construir e planejar sua própria existência de maneira livre e independente, sem a ingerência abusiva de outros indivíduos.
Da mesma maneira, foi muito importante a contribuição de FRANCISCO DE VITORIA que, ainda no século XVI e contra o colonialismo espanhol, defendeu a liberdade e o respeito aos povos indígenas, com base no pensamento estóico e cristão, e com base na tese de que esses povos da América – da mesma maneira que todos os outros povos – já eram dotados de um direito original em razão de sua natureza humana.
Inauguradas as vertentes do pensamento moderno, a reflexão acerca da liberdade do indivíduo foi lapidada pela filosofia que moveu a Independência Americana e a Revolução Francesa, e que se manifestou por meio do Movimento Iluminista do século XVIII com origens no século anterior.
Entre outros, nesta época destacaram-se DESCARTES, LOCKE, VOLTAIRE, TURGOT, CONDORCET, PAINE, ROUSSEAU e MONTESQUIEU. Existia, então, a concepção de que a sociedade ideal deveria ser organizada visando à felicidade humana e essa sociedade ideal só poderia nascer do respeito aos direitos naturais do homem.
SAMUEL PUFENDORF, ainda com fundamento jusnaturalista, considerava a dignidade humana como a liberdade nata de que o indivíduo desfrutava e que lhe permitia agir de acordo com sua opção de vida. A dignidade era a base da liberdade humana.
É do idealismo alemão de IMMANUEL KANT que talvez tenha surgido a melhor expressão do conceito lógico-filosófico de dignidade humana.
A filosofia kantiana concebia o homem como um ser racional, que existia como um fim e não como um meio, diferentemente dos outros seres desprovidos de razão.
Em função dessa condição de ser racional, comum a todos os seres humanos, é que o homem poderia ser chamado de pessoa – logo, pessoa humana.
Essa pessoa humana seria dotada de um valor intrínseco, um valor próprio da sua essência. Esse valor intrínseco seria superior a qualquer preço e, por isso, não poderia ser apreçado ou substituído por coisa equivalente, já que – como dito – o ser humano seria um fim e não um meio passível de utilização e manipulação. Do que decorre que esse valor intrínseco seria um valor absoluto, uma qualidade absoluta, ou – finalmente – uma dignidade absoluta.
Esse dignidade absoluta seria a qualidade essencial daquele ser racional, a pessoa humana, por isso dignidade da pessoa humana, objeto de respeito e proteção.
Como visto, KANT atribuiu a condição de valor ao atributo da dignidade humana, por meio da lógica e da filosofia.
No pensamento filosófico contemporâneo, a questão da dignidade da pessoa humana assumiu o papel de tema fundamental, como pilar de toda existência social merecedor de atenção e de todo esforço.
Já no âmbito da axiologia, a dignidade da pessoa humana – concebida concretamente como um valor moral – esteve presente em diversas culturas e povos.
É possível perceber, neste aspecto, em várias doutrinas e textos religiosos – ora considerados como códigos morais – a valorização e salvaguarda do homem, justificadas seja por fundamentos metafísicos de fé seja por necessidades meramente materiais.
No judaísmo a salvaguarda do ser humano é julgada como uma necessidade e como uma obrigação. Com relação à dignidade do homem, o cerne da teologia judaica encontra-se no incentivo à caridade, na proteção ao desamparado e no amor fraternal.
Na tradição islâmica, da mesma maneira, a pessoa humana é vista como o ser mais nobre e digno de honra que existe. Tudo o que céu e terra abrangem estaria à sua disposição . A ela teriam sido dadas, por graça divina, a razão e a capacidade de pensar e de dirigir seu destino.
Os princípios básicos da civilização islâmica deixaram uma impressão bastante profunda nas sociedades que surgiram a partir do século VII. O ideário islâmico prega que a dignidade do povo não deve ser violada e elege valores como generosidade, cooperação, igualdade, paz e fraternidade.
A pessoa humana é concebida como uma criatura de Deus, que a produziu com as próprias mãos, deu-lhe um sopro de alma e fez dela a figura mais bela. O respeito à pessoa é tão importante que a vida de uma única pessoa é tão valiosa como a vida de todo o gênero humano e de sua posteridade.
Em 1981 foi proclamada na sede da Unesco a Declaração Islâmica dos Direitos Humanos, um dos documentos que marcaram o começo do século XV da era islâmica. Além de outras proposições o documento afirma que a vida humana é sagrada e inviovável, e que ela deve ser sempre protegida.
Nas várias manifestações do Cristianismo é relativamente uniforme a adoção do ditame da preservação do homem. Com efeito, o fundamento teológico cristão para a proteção da dignidade do homem encontra-se no axioma de que a pessoa humana, criada por Deus à sua imagem e semelhança e remida por Cristo, tem necessariamente uma condição que exige a Liberdade e a Justiça como prioridades sobre todas as coisas materiais que lhe possam degradar ou escravizar.
A Igreja Católica, coadunando com o princípio cristão que lhe embasa, inaugurou sua doutrina social numa época em que o homem se via ameaçado pelo estado de selvageria que afetava a sociedade no plano econômico e que transformava o ser humano em insumo a ser consumido na progresso industrial.
Dessa doutrina social originaram-se vários movimentos de caráter renovador e de preocupação humanitária. Na América Latina, e principalmente no Brasil, foi notório o surgimento da chamada Teologia da Libertação preocupada com as questões de inclusão social do indivíduo.
Por outro lado, ainda que no campo da ontologia – livre de juízos de valor, amoral e meramente fática – a proteção e promoção da dignidade do ser humano passa a ser uma necessidade material e uma condição para a construção e para o desenvolvimento da humanidade. Negar a validade desse ideal é negar a própria validade da existência das instituições humanas e, por isso, assumir uma posição auto-destrutiva.
Como se disse anteriormente, após o seu reconhecimento como valor moral, foi atribuído valor jurídico à dignidade da pessoa humana. A proteção da dignidade da pessoa humana passou do âmbito da consciência coletiva para o âmbito jurídico.
Consagrado como valor jurídico universal, principalmente após a Declaração da ONU de 1948, a dignidade da pessoa humana – entendida como o atributo imanente ao ser humano para exercício da liberdade e de direitos como garantia de uma existência plena e saudável – passou a ter amparo como um objetivo e uma necessidade de toda humanidade, vinculando governos, instituições e indivíduos .
Pelo exposto, nota-se que existe uma importante confluência entre valores morais e valores jurídicos voltada para a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana. Essa confluência é condição para uma contingente e posterior integração da humanidade.
Se é mesmo possível que um dia – superadas diferenças superficiais – toda a humanidade convirja para um vértice comum, início de um novo caminho conjunto, é também muito provável que o fundamento desse vértice de convergência seja a defesa da dignidade do homem.
Essa dignidade é algo imanente ao ser humano. Talvez uma das poucas características comuns e essenciais presentes nas mais antagônicas culturas, religiões ou instituições humanas seja o próprio homem, que – mesmo submetido a diferentes circunstâncias externas – preserva ainda sua essencialidade comum, constituída por sua consciência, seus medos, suas virtudes, seus defeitos e, principalmente, suas necessidades.
Apesar disso e apesar de todo arcabouço filosófico, moral e jurídico para a proteção do homem, a história demonstrou que – desde a antigüidade oriental até os tempos atuais – nem sempre houve de fato o primado do ser humano sobre todos os outros interesses.
É de se notar que são recorrentes os atentados ao bem do homem, sempre preterido, desde a escravatura reinante nas civilizações orientais e européias, passando pelas perseguições da Inquisição e dominação de povos mais vulneráveis, até os despiciendos fenômenos da prevalência dos interesses econômicos sobre os interesses sociais, das guerras, do genocídio, da fome, da miséria, da discriminação social e da animalização do indivíduo.
Somente com a efetiva superação de todos esses fatores degradantes da condição humana é que poderia ser alcançado o patamar da plenitude da humanidade.
O caminho para a comunhão da humanidade passa necessariamente pela preservação da dignidade do homem.
A constitucionalização do princípio: atribuição do caráter imperativo e vinculante
No plano jurídico, a valorização da noção da dignidade humana está intimamente ligada aos movimentos constitucionalistas modernos, sobretudo ao constitucionalismo francês e ao americano.
Embora ao longo da história sejam encontradas algumas manifestações axiológico-constitucionais destinadas à finalidade de organização da estrutura do poder e algumas até de defesa da liberdade individual, o constitucionalismo somente se avulta significativamente com o advento das Cartas da segunda metade do século XVIII, sob influência das Revoluções Burguesas, do Contratualismo e do Iluminismo .
A constituição moderna, de caráter nitidamente liberal, surgiu com a finalidade de declarar direitos, de fundamentar a organização do governo e de limitar o poder político, limitação essa que era o maior anseio dos mentores burgueses setecentistas.
O valor moral da dignidade da pessoa humana foi consagrado como valor constitucional na Declaração de Direitos de Virgínia, que precedeu a Constituição americana de 1787, e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que resultou da Revolução Francesa. Neste aspecto, ambos os documentos se fundamentavam nas doutrinas de LOCKE, MONTESQUIEU e ROUSSEAU influenciadas pela noção humanista de reserva da integridade e da potencialidade do indivíduo.
Com o passar do tempo, a figura da Constituição, nas suas principais aparições, preservou o provimento à dignidade humana e englobou gradativamente outros valores e outros desideratos mais amplos do que aqueles iniciais, assumindo a função de garantia dos interesses sociais e de limitação do poder econômico até adquirir, nos tempos atuais, um caráter programático e democrático voltado para a concretização dos valores por ela enunciados.
Apesar de ser possível sua dedução dos textos constitucionais mais antigos que tutelavam as liberdades fundamentais, a expressa positivação do ideal da dignidade da pessoa humana é bastante recente. Com algumas exceções, somente após sua consagração na Declaração Universal da ONU de 1948 é que o princípio foi expressamente reconhecido na maioria das Constituições .
Ressalte-se que, embora inegável a importância do reconhecimento expresso do princípio para a afirmação do ideal, esse recente movimento de sua positivação na ordem constitucional não é pioneiro na criação da obrigatoriedade da proteção da dignidade, já que essa necessidade já era patente, mesmo que implicitamente, nos movimentos anteriores, notadamente a partir daquele constitucionalismo do século XVIII.
No Brasil, país cuja trajetória constitucional foi bastante conturbada e cuja realidade política esteve sempre sob o jugo de períodos ditatoriais poucas vezes atenuados, o ideal de proteção da dignidade da pessoa humana somente foi reconhecido formalmente na ordem positiva com a promulgação da Constituição de 1988.
O advento da nossa Constituição foi louvável tanto em razão de seus nobres objetivos quanto por sua natureza compromissória e sincrética de inspiração salientamente democrática. O texto constitucional consagrou o valor da dignidade da pessoa humana como princípio máximo e o elevou, de maneira inconteste, à uma categoria superlativa em nosso ordenamento, na qualidade de norma jurídica fundamental.
Quanto à sua natureza, as normas jurídicas possuem as características de coercitividade e de imperatividade, características essas que as diferenciam das normas não-jurídicas (como as normas de ordem moral – meramente sugestivas).
Os princípios de direito, e notadamente os princípios constitucionais, são equiparados a normas jurídicas no tocante a essas características de coercitividade e de imperatividade . Por isso, não são meros ditames de obediência contingente ou facultativa, mas sim normas jurídicas de aspecto principiológico e dotadas de poder vinculante.
As normas constitucionais (regras e princípios) compartilham desse poder vinculante e dessa característica de imperatividade de que são dotadas as normas jurídicas "latu sensu" .
E mais; em âmbito constitucional, essa coercitividade se expressa num grau ainda mais contundente do que nas outras normas jurídicas, já que as regras e os princípios constitucionais, mais que meras normas jurídicas, são normas jurídicas de hierarquia superlativa , submetendo todo o conjunto normativo inferior às suas disposições expressas e aos desígnios dos valores consagrados em seu bojo, mesmo que implícitos .
Ademais, essa submissão perante às normas constitucionais, mesmo que programáticas, não vincula somente o ordenamento normativo enquanto sistema teórico, mas – mais que isso – vincula todos seus efeitos práticos, na medida do alcance dos efeitos do Direito na realidade, e como esse alcance deve ser máximo, os efeitos das normas constitucionais tornam-se, necessariamente, bastante amplos.
Logo, a partir dessa constatação, é possível se verificar a necessária abrangência dos efeitos das regras e princípios constitucionais que se projetam em toda realidade, inclusive além dos âmbitos estritamente normativos ou jurídicos, como, por exemplo, na atividade econômica e na atividade política "latu sensu" (processo legislativo, atividades de governo, efetivação de políticas públicas etc).
E é nos casos práticos que a afirmação do caráter dirigente da Constituição revela sua importância e seu significado mais salientes, na medida que todo o desenvolvimento da sociedade passa a ser submetido aos valores de ordem constitucional.
Assim, uma das conseqüências práticas desse reconhecimento é que diretrizes como, por exemplo, a proteção da dignidade humana deixam de ser meras sugestões filosófico-axiológicas para se tornarem imperativos fáticos em toda amplitude do Direito projetado na sociedade.
A dignidade da pessoa humana frente aos direitos humanos fundamentais
Existem muitos pontos de contato entre a dignidade da pessoa humana e a teoria dos direitos fundamentais . Em verdade, mais que simples pontos de contato, trata-se de íntima ligação entre eles, sobretudo em cinco aspectos pelo que necessariamente se relacionam, o ente dignidade e o ente direitos fundamentais .
Num primeiro aspecto, a dignidade da pessoa humana pode ser vista como unidade de valor de uma ordem constitucional e, principalmente, como unidade de valor para os direitos fundamentais. Neste aspecto, a dignidade da pessoa humana assumiria seu caráter axiológico-constitucional, funcionando como um paradigma das liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais, e como elemento de integração e de hierarquização hermenêutico-sistemática de todo o ordenamento jurídico.
Num segundo aspecto, como elementos de habilitação de um sistema positivo dos direitos fundamentais, a proteção e a promoção da dignidade do homem sustenta e afere legitimidade a um Estado e a uma sociedade que tenham a pessoa humana como fim e como fundamento máximos. Aqui, a dignidade assumiria o papel de critério para verificação do sentido de uma ordem estabelecida, sentido esse que não pode ser outro que não aquele baseado na unidade de valor mencionada .
Num terceiro aspecto a que se chamaria de aspecto pragmático-constitucional, a relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana seria uma relação de "praxis" no interior teórico da ordem constitucional. Aqui, os direitos fundamentais seriam a concretização da diretriz da dignidade da pessoa humana em substância constitucional, diretriz essa informadora de toda a ordem jurídica. Em verdade, trata-se de um processo de derivação, por meio do qual todos os direitos constitucionais frutificam a partir da gema original da dignidade .
Restam ainda dois aspectos que decorrem desses aspectos iniciais. Um, seria a perspectiva da dignidade da pessoa humana como parâmetro na dedução de direitos fundamentais implícitos, seguindo a concepção de que a própria dignidade consistiria um direito fundamental na medida em que se manifestasse "stricto sensu".
Outro, seria a perspectiva da dignidade da pessoa humana como limite e função do Estado e da sociedade, na dupla vertente de que tanto um quanto outro devem respeitar a dignidade (limite – ou função negativa) e promover a dignidade (função positiva ou prestacional), respeito e promoção esses que se manifestariam por meio do respeito e da promoção de todos direitos constitucionais da pessoa e do cidadão.
Da relação em epígrafe, é possível se concluir que, dotada de caráter universal, a dignidade da pessoa humana é tanto o fundamento quanto o fim dos direitos fundamentais, para os quais funciona como paradigma e por meio dos quais aflora concretamente.
A dignidade da pessoa humana como escopo da constituição brasileira de 1988
A noção de dignidade da pessoa humana funde-se com a definição material de Constituição, já que a preocupação com o ser humano consagrou-se como uma das finalidades constitucionais.
Uma Constituição que não consagre a proteção e, principalmente, a promoção da dignidade do homem não pode ser uma verdadeira Constituição.
Assim, por essência, um dos objetivos mais importantes das Constituições – senão o principal deles – consiste nessa proteção da dignidade humana e em sua promoção.
A Constituição brasileira se mostrou simpática aos apelos de abertura política e conformação democrática, consagrando inúmeros princípios que representaram essa tendência.
Após um período de instabilidade constitucional que a antecedeu, a Carta de 1988, com uma opção notoriamente socializante, reafirmou os dispositivos de organização e limitação do poder político, além de votar pela garantia da Democracia e da cidadania, pela enunciação dos direitos fundamentais, pela promoção da justiça social, pelo controle do poder econômico e, sobretudo, pela preservação da dignidade da pessoa humana.
Esses mencionados objetivos seriam os chamados escopos constitucionais que representariam aquela vontade da Constituição de que nos fala KONRAD HESSE e teriam aquele referido caráter imperativo e vinculante, em razão da força normativa das Constituições.
Como visto, encontramos dentre esses escopos da Constituição de 1988 a preservação da dignidade da pessoa humana eleita como um princípio estruturante do atual Estado brasileiro (art.1o., III, CF), princípio esse sob que se deve edificar (ou realizar) materialmente esse Estado Constitucional de aspiração social e democrática.
Outrossim, caracterizada como princípio estruturante, a proteção da dignidade da pessoa humana transcende as generalidades teórico-políticas e projeta-se para o campo jurídico-político-pragmático de realização, assumindo tanto – nesse plano geral – seu papel de conformação política "lato sensu", quanto – num plano específico – seu papel casuístico na promoção de justiça e na defesa do homem.

Constituição e sistema penal: esse sistema como ambiente para a concretização dos escopos da Constituição
A Constituição se projeta no sistema penal (vetor Constituição-sistema penal). As disposições constitucionais vinculam o funcionamento desse sistema e nele se concretizam.
Concretizar as normas e valores constitucionais é realizar efetivamente os escopos da Constituição no seio da sociedade e no cerne do sistema jurídico. De nada adianta enunciar direitos sem concretizá-los efetivamente.
Só é possível a existência de um verdadeiro Estado Democrático se a sua Constituição for efetivamente aplicada e se os valores dessa mesma Constituição surtirem efeitos verdadeiramente.
Por isso – sendo a dignidade da pessoa humana o principal valor constitucional – também só é possível a consolidação desse Estado Social e Democrático de Direito após a efetiva materialização do princípio humanitário.
O sistema penal – como fruto de uma opção político-criminal oriunda de um modelo jurídico-político de Estado fundado na dignidade como valor máximo – passa a ser um dos "loci" de materialização da axiologia constitucional e, especificamente, de realização desse valor da dignidade humana.
Assim, em razão desse processo de concretização constitucional, o sistema penal – considerado como toda a estrutura organizada para o exercício do "jus puniendi" – deve manifestar em seu bojo a necessária influência axiológico-normativa ditada pela Constituição e deve evidenciar uma estrutura que tenha verdadeiramente os valores constitucionais – sobretudo o valor da dignidade do homem – como um limite, um paradigma e uma finalidade.
Sistema penal e Constituição: os fundamentos constitucionais para esse sistema
O sistema penal além de ser um dos ambientes de concretização deve ser também o resultado de uma alquimia sistemática com fundamento constitucional. Por isso, não é só a Constituição que se projeta no sistema penal, mas é também o sistema penal que se fundamenta na Constituição (vetor sistema penal-Constituição).
Os valores constitucionais ao influenciarem a ordem penal – além de limites (aspecto negativo), finalidade (aspecto positivo ou prestacional) e paradigma – passam a ser fundamentos de uma estrutura específica forjada nos padrões constitucionais e dotada de uma identidade particular.
Neste aspecto de fundamentos, o sistema penal ideal deve "emprestar" os valores constitucionais para si e com base neles moldar sua estrutura específica que – consequentemente – manifestará as feições da ideologia constitucional que lhe embasou.
Dentre os valores penalmente fundamentais estão os princípios estruturantes do Estado constitucional (arts.1o. a 4o.), os princípios constitucionais penais expressos e os implícitos (vários incisos do art. 5o.), e todas as normas constitucionais (regras e princípios) que influenciam a política criminal e a dogmática penal.
Com efeito, adotada como um dos princípios estruturantes (art.1o., III), a dignidade da pessoa humana é o superlativo fundamento constitucional em matéria penal, e no momento da conformação do sistema penal deixa de ser somente um ditame axiológico-normativo-constitucional para se tornar também um ditame axiológico-normativo-penal.
A dignidade da pessoa humana como um desses fundamentos: a conexão entre a dignidade do homem e o sistema penal
A dignidade da pessoa humana é a pedra angular sobre que deve ser construído todo o monumento do sistema penal. O princípio constitucional da proteção e da promoção da dignidade do homem é a célula-mãe desse sistema e, por isso, também seu fundamento máximo.
Além de fundamento, o ideal humanitário passa a ser considerado como uma unidade axiológico-penal funcionando como um paradigma geral e imperativo na dinâmica do sistema penal, desde a escolha da política criminal até a execução das conseqüências jurídicas do delito, passando pelo processo legislativo penal e por todos os fatores envolvidos com a aplicação da ordem penal.
Ademais – ainda em âmbito penal – tanto princípio da dignidade quanto a necessidade da prevalência dos direitos humanos tornam-se os elementos de hermenêutica penal e os fatores de habilitação do sistema punitivo, além de desempenharem as funções de limites do "jus puniendi" e de finalidades prestacionais do Estado (também mediatamente da sociedade) ora realizadas por meio da atividade punitiva.
Daí a relação entre o valor jurídico da dignidade do homem e o sistema penal, cuja existência e a dinâmica somente são possíveis se pautadas obrigatoriamente pelos moldes humanitários.

Estrutura e dinâmica do sistema penal
O sistema penal pode ser concebido como a complexa estrutura punitiva existente em determinada sociedade e derivada de um modelo jurídico-político de Estado que, em âmbito penal, manifesta-se por meio de uma opção de política criminal.
A política criminal – considerada como o conjunto sistemático dos imperativos que regem, no plano objetivo e específico, a atividade de reprovação e de prevenção às infrações penais – deve ser concebida e executada com observância à realidade social e humana vigentes nessa sociedade, em conformidade com os valores constitucionais e, portanto, também em conformidade com o reconhecimento da condição humana dos indivíduos atingidos por essa política.
A dinâmica do sistema penal engloba todos os seus elementos constitutivos, cujo funcionamento está internamente concatenado e externamente vinculado aos princípios constitucionais que o fundam .
Esses elementos correspondem a todas atividades e instituições destinadas à persecução das finalidades penais do Estado. Portanto, incluem-se nessa categoria de elementos ordenados todas as atividades e instituições envolvidas com o propósito penal, desde a teoria criminal e da dogmática até a atividade carcerária, passando pelo processo legislativo penal, pela interpretação/aplicação da lei penal, pelas estruturas penais burocráticas e administrativas, pela atividade de polícia e pela atividade judicial.
Ocorre que, no plano concreto, o sistema penal está longe de obedecer à seus imperativos humanitários, tendo em vista todos os problemas estruturais e conjunturais que o afetam e que geram prejudiciais efeitos tanto para a realização das suas funções penais próprias quanto para realização da opção de política criminal adotada e para a efetivação do paradigma da dignidade humana.
Apesar dos incansáveis esforços, essa crise resulta na carência do pleno sucesso do sistema penal e no despiciendo quadro de crescimento da criminalidade e da violência. Ademais, dentre outras fontes, as evidências de um iminente colapso surgem dos problemas da deficiência administrativa e burocrática do sistema, da inflação legislativa, das recorrentes rebeliões carcerárias, bem como dos infortúnios de uma atividade policial por vezes brutal, da inefetividade do processo penal, e da dantesca situação dos estabelecimentos prisionais, que – em verdade – funcionam como escolas do crime e como fatores de marginalização, de suplício e de exclusão social.
Contra esse quadro, o sistema penal em todas as suas manifestações específicas, bem como principalmente na realização de suas funções próprias, não pode se furtar a resolver o problema da criminalidade e a atender seu precípuo paradigma de respeito à dignidade do homem e aos direitos humanos.
A sua perspectiva funcional
O sistema penal adquire uma feição instrumental na medida que funciona como um mecanismo de proteção de bens jurídicos essenciais e de garantia da obediência a um modelo de política criminal adotado.
Nessa perspectiva instrumental, o sistema penal se incumbe de dupla função. A primeira função seria de salvaguardar os bens jurídicos essenciais, e tutelados, contra os agentes de delito. E a segunda seria de garantir que tanto essa salvaguarda quanto a corolária punição desses mesmos agentes de delito ocorram sob a égide do paradigma político-criminal do Estado.
A primeira função (função protetiva) esboça uma finalidade de conservação dos bens jurídicos essenciais contra sua degradação pelo delito. Ocorre por meio da reprovação ao ato lesivo e da prevenção contra o crime, e – após a aplicação da pena – deve proporcionar a estabilização do ordenamento violado, a disciplina penal pedagógica pelo Estado, a intimidação ao potencial agente e o desestímulo à prática delitiva.
A segunda função (função garantista) diz respeito à observância da conformidade entre a prática da função protetiva e o padrão de política criminal, tanto na aplicação da norma penal em defesa da sociedade quanto na preservação da dignidade do agente do delito com propósito de sua inclusão social.
Com efeito, o propósito de inclusão social torna-se um dos objetivos funcionais do sistema penal. Executar esse propósito – quando necessário – também é promover a dignidade humana.
Por outro lado, não é raro que no âmago da sociedade o sistema penal manifeste uma outra função. Essa seria a função jurídica de estabilização política do poder. Neste aspecto, o sistema penal assume um caráter de mecanismo de controle dos fatores de poder arraigados na sociedade com a finalidade de direção dessa mesma sociedade e de preservação do poder político instituído.
Essa terceira função é bastante temerária, já que – se deturpada – pode ensejar odiosas circunstâncias de repressão e de indiscriminada arbitrariedade. O sistema penal não deve ser um instrumento de coerção política e de imposição ideológica. Por isso, essa função jurídico-política assume um caráter de função imprópria e secundária desse sistema, sendo mitigada em favor dos mecanismos próprios de preservação democrática do poder político estatal.
O modelo humanitário frente aos problemas jurídico-políticos de segurança pública
Freqüentemente, a progressão da violência e as crises de segurança pública provocam um clamor geral pelo recrudescimento da atividade punitiva do Estado.
Ocorre que – mesmo nesses tempos críticos – inexiste qualquer justificativa para afronta aos ideais democráticos e humanitários, cuja preservação é sempre imperativa. Essa preservação não impede nem a realização da prevenção geral positiva nem o combate ostensivo ao crime.
É possível a solução do problema sem atentados contra o ideal humanitário e com respeito à ordem democrática, o que – em verdade – não é só uma necessidade mas também uma obrigação. O crime e a violência não podem vencer a Democracia.
Dignidade do homem e direito humanos não são contrapontos de sistema penal. É um equívoco colocar o paradigma humanitário como inimigo da persecução punitiva, já que essa função do Estado pode se realizar plenamente, e alcançar sua finalidade, sem ofensa aos valores jurídico-políticos máximos, que na realidade são sua base.
Os valores constitucionais são aliados da dinâmica jurídico-política de combate ao crime e da estratégia de solução dos problemas de segurança pública.
Alguma manifestação da dignidade humana no âmbito penal
Deriva do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana uma série de outros princípios particulares e importantes para o campo penal.
Esses princípios decorrentes tanto indicam o conteúdo material e específico do ditame geral da dignidade quanto demonstram (no caso art. 1o., III) rumo à informação do sistema penal por meio da realização dos direitos e garantias fundamentais (notadamente art. 5o.).
Assim, no plano principiológico, promanam da norma constitucional da dignidade vários outros princípios que nela buscam fundamento, e que ou são naturalmente penais ou meramente desfrutam de relevância penal.
Dentre esses princípios, encontramos o princípio da legalidade penal expresso no art. 5o., XXXIX e que compreende o princípio da reserva legal, o da taxatividade e o da retroatividade da lei penal mais benigna e irretroatividade da mais gravosa (inc. XL), bem como encontramos o princípio do devido processo legal (incs. LIII, LIV, LVI), o princípio processual do contraditório e da ampla defesa (incs. LV e XXXVIII,a), o princípio da presunção de inocência do acusado (inc.LVII). Além desses, observamos também o princípio da intervenção mínima ou da necessidade deduzido do texto constitucional e que compreende os fatores da fragmentariedade penal, da proporcionalidade, da insignificância e da subsidiariedade penal, bem como observamos o princípio da responsabilidade pessoal (inc.XLV), o princípio da individualização das penas (inc.XLVI), o princípio da humanidade derivado por excelência da norma da dignidade (incs. III, XLVII, XLIX, L), entre outros.

Apesar disso, a manifestação prática da dignidade humana em âmbito penal não se resume tão-só à teoria dessa derivação principiológica, na medida que todo esse arcabouço diretivo necessariamente aduz significativos efeitos concretos para a dinâmica do sistema penal.
Com efeito – exposta a base de princípios e patente a obrigatoriedade do respeito e da promoção da dignidade humana no plano penal – resta saber então como toda essa principiologia se expressa de fato no sistema penal, ou seja, resta saber como o princípio da dignidade se manifesta concretamente nesse sistema penal.
A primeira manifestação prática do princípio da dignidade ocorre ainda na formulação e na realização da estrutura do Estado que será o fulcro do sistema penal. Só é realmente capaz de proporcionar a dignidade do homem um modelo de Estado com aspiração social e democrática, e que não só acate mas também pratique o princípio da primazia do ser humano sobre quaisquer outros interesses.
Em seguida, é necessária uma política criminal realmente fundada nesse Estado Social e Democrático de Direito, e que realmente abrigue o valor humanitário, propiciando o incremento de um sistema penal também fundado na primazia do ser humano .
Disso decorre a necessidade do desenvolvimento de uma doutrina penal que – sob a luz da premissa de valorização do potencial humano, e exercendo o seu poder de influência na formação estrutural das instituições da sociedade – apologize teoricamente a mudança prática de um sistema penal degradante.
Consolidadas essas bases de modelo de Estado, de política criminal e de doutrina penal, enseja-se a construção ou modificação estrutural do sistema penal. Esse fomento de construção ou de reformulação se expressa em todos aqueles mencionados elementos constitutivos do sistema penal.
a) Reflexos no processo legislativo penal
Ainda no processo legislativo penal – concebido como a fonte formal do "insumo positivo" do sistema penal – devem ser atendidas determinadas exigências para que esse sistema tenha legitimidade e seja coadunante com o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, as principais pontes de ligação da dignidade da pessoa humana com o processo legislativo penal são os imperativos derivados do princípio da legalidade penal, do princípio da supremacia da Constituição e do princípio da intervenção mínima.
Do princípio da legalidade derivam o princípio da reserva legal e o princípio da taxatividade. Para o processo legislativo, o aspecto relevante do princípio da reserva legal diz respeito à competência para a edição das leis penais, que devem ser elaboradas privativamente pela União, em atenção ao art. 22, I da Constituição. Respeitado o imperativo anterior da competência e doravante com relação ao princípio da taxatividade, fica patente que a enunciação formal dos preceitos dessas leis penais deve ser clara, precisa e objetiva, já que não se admitem, no âmbito penal, leis vagas e incertas que prejudiquem a segurança jurídica e a dignidade dos cidadãos por elas atingidos.
Da mesma maneira, o processo de elaboração da lei penal – em acatamento ao princípio da supremacia da Constituição – deve atender às disposições dos imperativos que decorrem desse princípio, a saber o princípio da constitucionalidade formal e o princípio da constitucionalidade material.
O atendimento ao princípio da constitucionalidade formal corresponde a elaboração da lei penal com observância aos requisitos formais e legais para o trâmite do projeto de lei penal (arts. 61 a 69, CF). Não atende a esse princípio uma lei penal que traga vício formal já em seu bojo.
Outrossim, o atendimento ao princípio da constitucionalidade material corresponde à observância da natureza do conteúdo substancial da lei penal. Por isso, somente atende ao princípio em questão uma lei penal cujo conteúdo contemple os valores da Constituição. Disso decorre que somente é materialmente constitucional uma lei penal cujo conteúdo substancial abrigue – ou pelo menos não contrarie – a axiologia constitucional humanitária e a axiologia constitucional de inclusão social.
Resta ainda a breve prospecção dos efeitos do princípio da intervenção mínima sobre o processo legislativo penal. No aspecto da gênese legislativa, decorre do princípio em questão que somente serão legítimas a criminalização ou a tipificação de determinados fatos, se essa criminalização ou essa tipificação constituírem o meio necessário para a proteção de um bem jurídico. Caso existam outros meios suficientes para essa proteção, não será correta a elaboração de uma lei penal que tipifique o fato.
A aplicação desse princípio da intervenção mínima colabora para a solução do problema da inflação legislativa ou para o problema da "nomorréia" penal de que falou FRANCESCO CARRARA já em 1883.
b) Na atividade policial
Outro elemento constitutivo da atividade punitiva do Estado seria a atividade policial (art. 144, CF). Com efeito, só é possível um sistema penal que contemple a dignidade humana, se a atividade policial que o constitui também contemplar esse paradigma. E somente contempla esse paradigma uma atividade policial que, apesar de firme, seja serena e pautada no respeito aos direitos constitucionais e no respeito à integridade psicológica, moral e física do indivíduo.
Por isso, todo o universo da atividade das polícias deve estar pautado pela constitucionalidade e pela humanidade, seja na apuração e investigação das infrações penais, seja na prevenção e repressão do crime ou mesmo na diligência para preservação da ordem pública.
São proibidos, portanto, na atividade policial a prática de tortura e quaisquer outros tratamentos que degradem o indivíduo da sua condição de ser humano (art.5o.,III, CF e art.5o. do Pacto de São José da Costa Rica).
Da mesma maneira, a investigação policial, apesar de norteada pelo princípio inquisitivo, deve estar pautada na legalidade, sendo por isso repelidas, v.g, a violação de correspondência e a quebra arbitrária de sigilo pessoal (art.5o.,XII,CF e Lei 9.296/96), bem como a invasão injustificada de domicílio por deliberação da autoridade policial (art.5o.,XI,CF).


c) Na atividade judicial e na interpretação/aplicação da lei penal
A observância do princípio da dignidade humana requer uma atividade judicial de cunho constitucional, instrumental e teleológico, e que vislumbre o processo penal como uma ferramenta de Justiça que lida com seres humanos e não como um mecanismo "kafkaniano" que valoriza o formalismo e trata os homens como coisas.
Por isso, o processo penal deve ser visto como "mero meio" de alcançar os fins penais de proteção e de garantia , e como um ente submetido aos parâmetros constitucionais. Esse novo processo penal (constitucional) afirmaria seu caráter garantista em detrimento das anacrônicas características de meio opressor e degradante.
No mesmo sentido, atende ao imperativo do respeito ao homem uma interpretação/aplicação da lei penal à luz do método sistemático que, no caso concreto, propicie efetivamente a "praxis" do valor constitucional da dignidade humana e a aplicação eficaz dos princípios penalmente relevantes derivados desse valor.
d) Na execução da pena (ou das conseqüências jurídicas do delito)
O art. 1o. da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) deixa claro o objetivo da (re)integração social do condenado e do internado. Entretanto, existem alguns requisitos materiais necessários para a consecução desse resultado. Esses requisitos dizem respeito à satisfação das condições para a existência digna e para o perfeito desenvolvimento da pessoa do condenado, com a finalidade de viabilizar seu harmônico (re)ingresso no convívio social.
É imprescindível que a execução da pena imposta ocorra em estabelecimentos carcerários que – da mesma maneira que propiciem a necessária cominação do castigo nos moldes da política criminal – preservem a integridade do condenado e lhe garantam tanto a habilitação pessoal para o convívio na sociedade quanto a possibilidade de sua efetiva inclusão nessa mesma sociedade.


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Autor: Roberto Bartolomei Parentoni


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