O SISTEMA ACUSATÓRIO E SEUS REQUÍCIOS INQUISITORIAIS.



JOVENITA DE LIMA BARRETO









ARTIGO









TÍTULO: O SISTEMA ACUSATÓRIO E SEUS REQUÍCIOS INQUISITORIAIS.




ÁREA: DIREITO PENAL









SALVADOR – BAHIA
08/ MARÇO/ 2007


INTRODUÇÃO


Será abordado neste artigo os tipos de sistemas processuais existentes, especialmente no Brasil, seus conceitos e características, ressaltando o sistema acusatório e sua aplicabilidade, princípios inerentes, suas contradições e implicações e resquícios encontrados, bem como críticas sobre o tema.


OS SISTEMAS PROCESSUAIS

Há três tipos de sistemas processuais utilizados na evolução histórica do direito: o inquisitivo, o acusatório e o misto, estes sistemas são utilizados segundo as formas em que se apresentam e os princípios informadores de cada um.

O sistema inquisitivo possui características de auto defesa de administração da justiça do que um processo de apuração da verdade. Tem suas raízes no Direito Romano, por influência da organização política do império, pois, permitia ao juiz iniciar o processo de oficio. Atuou na Idade Média diante do contexto histórico da época, pois, nesta época, havia a necessidade de afastar a repressão criminal dos acusadores privados e alastrou-se por todo o continente europeu a partir do século XV, perante a influencia do Direito Penal da Igreja Católica, e só entrou em decadência com a Revolução Francesa. Nele não existe regras de igualdade e liberdade processuais, o processo é normalmente escrito e secreto e se desenvolve em fases por impulso oficial, a confissão é elemento suficiente para a condenação, permitindo-se a prática de tortura e etc.

Diferentemente do sistema acusatório, este, possui suas raízes na Grécia e em Roma, fundamentado na acusação oficial, embora se permitisse , excepcionalmente, a a iniciativa da vítima, de parentes próximos e até de qualquer do povo. No Direito moderno tal sistema implica o estabelecimento de uma verdadeira relação processual, valorizando a igualdade das partes, sobrepondo-se a eles, como órgão imparcial de aplicação da lei, a figura do Juiz.
Este sistema aponta como traços fundamentais marcantes, os princípios penais tais como: a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência deste princípio, encontram-se em pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo povo, excepcionalmente permite-se uma publicidade restrita ou especial; d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas e, logicamente, não permitindo ao juiz iniciar o processo; e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existência de igualdade de direitos e obrigações entre as partes; g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer do povo ou um órgão do Estado.

Em síntese, tal sistemas floresceu na Inglaterra e na França, após a revolução, hoje adotado na maioria dos países americanos e em muitos da Europa.

Há também o sistema acusatório misto, ou acusatório formal, é constituído de instrução inquisitiva (de investigação preliminar e instruções preparatórias) e de um posterior juízo contraditório de julgamento. Este sistema passou por diversas reformas na época de Napoleão, espalhando –se por toda Europa e América Latina. No Direito contemporâneo o sistema misto, combina elementos acusatórios e inquisitivos em maior ou menor grau, de acordo ao sistema processual de cada lugar. Nosso estudo, valoriza com base na aplicação em nosso sistema penal o acusatório, adotado em nossa legislação.
O sistema misto contou com o grave defeito de, em suas duas primeiras fases, manter características do inquisitivo (sigilo, ausência de garantias para o acusado e parcialidade do juiz, que procedia como acusador). A ideologia liberal da época fez severas críticas a essas características inquisitivas. Assim, ao final do século XIX, são adicionadas garantias ao sistema misto (principalmente a ampla defesa), marcando a transição para um sistema puramente acusatório.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, assegura o sistema acusatório no processo penal. Estabelece o contraditório e a ampla defesa , como meios e recursos a eles inerentes, como se verifica do art. 5º LV, da Carta Magna. A ação penal pública é promovida pelo Ministério Público (art. 129, I), havendo possibilidade do ofendido promover a ação privada subsidiária ( art. 5º LIX) ; a autoridade julgadora é a autoridade competente é o juiz constitucionalmente constituído, ou seja , o juiz natural. Há a prevalência da publicidade dos atos processuais, em regra. Pois, pode a Lei restringir, quando houver interesse social, ou defesa da intimidade ( art. 5º, LV).

A relevância de apontar a existência de tais sistemas, é no particular, para possibilitar um entendimento, com base nos princípios adotados por cada sistema, e sua efetividade na prática , como forma de salvaguardar O Estado Democrático de Direito, como será adiante positivado.

É importante salientar que apesar de nossa Constituição Federal, consagrar o sistema acusatório, pois, prioriza os princípios dos quais fazem parte, na prática, há ainda influência do sistema inquisitorial, na atuação do processo penal. Nesta mesma linha, o magistério do festejado jurista, que com a maestria que lhe é peculiar, ressalta:
(...)que prevalece, no Brasil, a teoria da aparência acusatória, porque muitos dos princípios opostos ao acusatório são implementados todo o dia. O princípio e o sistema acusatório são, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo Código de Processo Penal e um novo fundo cultural, consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar realidade. (PRADO, 1999, p. 89).
Há ainda hoje resquícios de atuação do sistema inquisitorial, neste mesmo entendimento: acordo com Vanessa Curti Perenha Guasques:

O Código de Processo Penal deve ser interpretado à luz da Constituição, pois esta prevê todo um sistema de garantia individual que permite concluir pela adoção do modelo acusatório de processo. Já o Código de 1941, inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 30, do século passado, de cunho político-ideológico fascista, propunha medidas em que se visualizava o tratamento de presunção de culpa do investigado/acusado e, na ponderação entre a tutela da segurança jurídica e a tutela da liberdade individual, prevalece a preocupação quase sempre da primeira, sempre legitimada pela "busca da verdade real.



De fato, a nossa Carta Magna com o objetivo cerne de afastar o órgão jurisdicional da persecutio criminis, assegurou a exclusividade da ação penal ao Ministério Público, separando por definitivo o juiz da função acusatória.:
Dessa forma, a Constituição da República Federativa do Brasil deverá ser a luz guia da atividade jurisdicional, haja vista que todo direito nasce e morre na constituição, segue-se que os princípios constitucionais devem ser o ponto de partida e o ponto de chegada de toda e qualquer interpretação, independentemente da natureza da norma em questão. (QUEIRÓZ, 2001, p.38)
Entretanto, inúmeros operadores do Direito, essencialmente alguns ilustres Magistrados, persistem em negar aplicabilidade aos preceitos constitucionais, invertendo a pirâmide hierárquica do saudoso Hans Kelsen, condicionando à aplicabilidade das normas que residem no ápice do ordenamento jurídico ao quantum a ser determinados por leis infraconstitucionais.
Assim, ter a Constituição Federal determinado que a privatividade da ação penal pública pertence ao Ministério Público, não fora o bastante para definir e restringir na prática forense a função de acusar, continuando extremamente eficazes os dispositivos do Código de Processo Penal que restam extremamente revogados pela nova ordem jurídica constitucional.
Por certo, falta ao operador do direito realizar uma filtragem constitucional antes de aplicar um dispositivo de lei ordinária e interpretá-lo à luz da Carta Magna, de forma a impedir uma mitigação do preceito jurisdicional da imparcialidade do juiz.
Nesse sentido, cumpre anotar que na fase inquisitorial da persecução penal, esta neutralidade inerente à atividade jurisdicional encontra-se extremamente violada pela aplicação irrestrita dos dispositivos inseridos no Codex de Ritos Penais pertinentes ao inquérito policial.
Inicialmente, em seu art.5°, II, o legislador prevê a possibilidade de a fase policial ser instaurada mediante a requisição da autoridade judiciária. Assim, segundo entendimento da Suprema Corte Pátria, por se tratar de requisição e não requerimento, tal imposição do juiz não admite indeferimento da autoridade policial.
Ocorre que, o juiz, requisitando a instauração do inquérito, está, indubitavelmente, determinando uma atividade acusatória, eivando sua neutralidade e imparcialidade, violando assim a separação de funções assegurada pelo sistema acusatório.
Como o indiciado acreditará a esse juiz, uma inafastável imparcialidade, se este Magistrado no âmbito de um juízo antecipado, raso e provisório, optou por seu indiciamento?
O ônus probatório se inverte em detrimento do acusado, que na fase processual restará obrigado a demonstrar que o anterior entendimento do juiz pela pertinência do seu indiciamento restava equivocado e extremamente improcedente.De fato, é inaceitável a requisição da instauração do Inquérito pela autoridade judiciária, visto que acarreta em grave violação constitucional e ao sistema processual penal adotado em nosso ordenamento jurídico.
O juiz tomando conhecimento de um fato aparentemente delitivo apurado mediante Ação Penal Pública incondicionada, deverá sem o caráter de requisição, determinar o envio das peças de informação ao Ministério Público, aplicando-se o art.40 do CPP, para que este, examinando o caso concreto, com absoluta discricionariedade, requisite a instauração do inquérito policial ou ofereça desde logo a denúncia.
Destarte, o STF tem inclinado seu entendimento em favor da impossibilidade do Magistrado requisitar a instauração do inquérito, ressaltando ainda que, o anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal também afasta tal legitimidade.
Cumpre ainda acrescentar que o art. 10, § 1° do Código de Processo Penal prescreve que após a realização do relatório, a autoridade policial enviará os autos ao juiz competente, e o § 3º do mesmo dispositivo prevê que o requerimento de prorrogação do prazo para conclusão das investigações também seja destinado ao Magistrado.
Para melhor entendermos a base dos fundamentos do sistema acusatório, cumpre trazer à baila ensinamento do ilustre jurista abaixo, então, vejamos:
O sistema acusatório adotado por nós distingue, nitidamente, as funções do órgão acusador o órgão julgador, deixando claro que a este é vedada qualquer intromissão na fase persecutória, salvo as referentes as medidas cautelares que podem ser requeridas. ( RANGEL, 2005, p. 108).
No âmbito de um Estado (que se diz) Democrático de Direito, decorrente do Iluminismo e da Modernidade, no qual as velhas e odiosas práticas de apuração da verdade restaram substituídas por leis e formas capazes de ensejar sua verificabilidade, as normas jurídicas, além de apresentarem, como ensina: “a mera legalidade para serem legítimas precisam atender também a estrita legalidade na qual o conteúdo das normas (princípios + regras) constitucionais estão tutelados em todo seu conteúdo.” (FERRJOLI, 2001, p. 33-70).

O SISTEMA ACUSATÓRIO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

O sistema acusatório não é previsto explicitamente na Constituição Federal, mas encontra-se implicitamente reconhecido em vários de seus dispositivos:

A acusação é facultada à vítima ou a seus familiares (ação penal privada), mas se torna obrigatória ao Ministério Público quando houver indícios do cometimento de crime: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; (...) art. 5º LIX – será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal.
Assegura a igualdade entre as partes (princípio de equilíbrio de situações ou da paridade de armas):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifo nosso)

Existe o contraditório e a ampla defesa: art. 5º LIX – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusado em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A defesa é assegurada inclusive àqueles que não puderem pagar: LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
O processo é público: Art. 93. “ Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...)

CONCLUSÃO:

A Constituição Federal/88, como visto, exige o sistema acusatório público. Porém, boa parte da legislação brasileira adota, de forma claramente inconstitucional, elementos do sistema inquisitivo. Tais elementos têm sido eliminados gradativamente, mostrando uma transição entre um sistema misto (acusatório e inquisitório) e um sistema acusatório puro., pois na prática, há ainda aplicação no Processo Penal resquícios Inquisitoriais atuantes, apesar de modernamente estarmos diante de um sistema acusatório, pois, os princípios não são respeitados, contradizendo o atual sistema.


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Autor: Jovenita de Lima Barreto


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