BILHETE PERDIDO



Caminhava tranqüilamente pela calçada quando um papelzinho dobrado chamou-me a atenção pela dobra correta e pela limpeza aparente. Abaixei-me e tomeio-o nas mãos. Estava certo em minha suspeita. Não era um papel qualquer. Havia nele um bilhete mágico:

“Mãe...
Estou com saldades; gostaria de te ver!
Presciso de roupas: blusas, 2 casacos, se achar uma ou 2 cauças que não estejem furadas, 1 casaco, mais 4 causinhas, mais 2 sutiãns que estão no armário de seu quarto.
OBRIGADA! BEIJOS!
TE AMO!
MANDA BEIJOS E ABRAÇOS PARA A INGRID
e diz que estou com saldades!”

A letra até que era bonitinha, bem redondinha, escrita com esmero e com algumas correções à caneta, que se não corrigiam nada (em alguns casos até impunham erros), pelo menos demonstravam a dúvida sobre a grafia de certas palavras e a intenção de escrever correto. Embora, o resultado, passasse longe disso...

Dois sentimentos distintos me dominaram durante e após a leitura do bilhete: primeiro, de risibilidade. Mesmo que não queiramos reagir de certas maneiras, acabamos, instintivamente, correspondendo a uma certa normalidade imperante: ri interiormente da singeleza do bilhete e dos erros gramaticais e ortográficos. Segundo, de ternura. O afeto entrevisto no bilhete, a intimidade ali exposta, a carência demonstrada e a confiança em alguém que se podia chamar de mãe me enterneceu. E, confesso que sou bobo mesmo para estas coisas de sentimento...

Fiquei a me perguntar quem seria esta pessoa, como era ela, se morava mesmo em Nova Friburgo, seu jeito, seus sonhos... Tratava-se de uma mulher, pela obviedade dos pedidos feitos. Se era velha ou jovem, era questão a se definir. Pelos indícios demonstrados era jovem, nem velha nem criança, pois a escrita era bem organizada, o bilhete foi encontrado perto de uma Escola e o pedido incluía sutiãs. Se fosse uma pessoa resolvida na vida não demonstraria tal dependência materna.

Por outro lado, esta jovem saíra de casa para trabalhar, para estudar? Estava em trânsito, procurando emprego, fazendo cursos? Saíra em viagem de férias, passeio com colegas? Qual era sua situação e o que a levava a recorrer à mãe para dar suporte em suas necessidades imediatas? Os vestígios também demonstravam ser uma pessoa de classe pobre não só pelo detalhe das “calças furadas”, mas pelo inusitado do pedido.

Além disso, vale destacar que ela sente saudades e não pede dinheiro. O fato de ter saudades mostra que ou não está acostumada a ausentar-se de casa ou já tem tempo que o fez e está acometida de saudade dos que preza. A questão de não solicitar dinheiro pode ser reveladora de que onde está não precise efetuar gastos; está trabalhando e aguarda seu salário (quem sabe o primeiro ordenado); precise, mas tem consciência de que a mãe não a pode suprir neste quesito. Estaria esta filha perto ou distante da mãe? É outra pergunta que se deve fazer...
Prosseguindo em minhas indagações sobre a trajetória do bilhete perdido, me pego a perguntar quem o teria perdido: se a remetente, a destinatária ou um emissário qualquer (se é que algum houve)? Mais ainda: o bilhete fora realmente perdido ou descartado (erroneamente em via pública) após ter cumprido a sua função precípua? Se foi perdido pela própria autora, ao constatar o fato, a mesma deve ter dado um jeito de dar ciência à mãe de suas necessidades, seja escrevendo outro ou utilizando-se de forma vária. Se foi perdido por outra pessoa, a questão é: a moça foi atendida em suas solicitações? E para atender o pedido, qual foi o meio? A própria mãe levou as roupas solicitadas até a presença da filha? Alguém fez isso por ela?

Bem, são muitas indagações (poderíamos ainda acrescentar uma: e o pai? Onde entra nesta história ou não faz parte dela?) que demonstram como a vida cotidiana possui certos fatos que muitas vezes passam despercebidos, mas que traduzem o afeto, o amor, o carinho, a predisposição de dar-se para o outro a fim de que o outro se realize como pessoa e possa seguir seu caminho e conquistar seus ideais. Por certo aí estão: de um lado, uma mãe batalhadora que quer ver a vida sorrindo para a filha querida; de outro, uma filha que está buscando seu lugar ao sol e que não esquece da família que foi seu berço neste mundo, não só por causa do afeto, mas, também, por estar vivenciando esta fase da vida em que se experimentam os primeiros raios da liberdade, mas ainda não se cortou de todo o cordão umbilical que nos prende ao lar. E nisto, a reafirmação da máxima de que cada ser humano não é de todo dependente nem o será independente: somos seres interdependentes!

Por fim, vale destacar que em seu bilhete, a jovem distingue o que é pedido, expressão de necessidade que almeja seja atendido; do que é afeto, expressão de carinho que brota espontânea do coração em direção àqueles que ama. A parte formal (os pedidos) ela escreve em letras minúsculas. A parte sentimental (as dedicatórias e afetos) ela grafa em letras maiúsculas. É como se ela almejasse materializar os beijos, abraços e expressões de amor apesar da distância. Destacando estes últimos ela os valoriza sobrepondo-os aos pedidos feitos. Sem contar, que é para a mãe que ela dedica a expressão mais forte que aparece no brevíssimo texto de apenas nove imprecisas linhas: “te amo”!

De tudo isso que pude refletir acerca desse bilhete supostamente perdido, algumas considerações me foram mais incisivas no me fazer pensar:

1ª) Sempre há uma mãe a quem recorrer. A gente pode fazer da vida o que quiser. Pode até abandonar o lar e deixar para trás família e amigos. Pode até ser ingrato para com aqueles que nos amam e sempre nos ajudaram. Mas, se no meio do deserto, no auge do desespero e da necessidade, o orgulho ceder, haverá sempre uma mãe a quem recorrer... Mãe é mãe e é igual em todo lugar. Mãe sempre quer o melhor para o filho. Mãe é esta figura especial que se esmera em fazer o melhor para tornar a vida dos filhos mais saudável e eficaz. Mãe é o tipo de gente que abre mão de suas prerrogativas, de seus interesses pessoais, para satisfazer as necessidades dos filhos. Pode mandar o bilhetinho que, se chegar às suas mãos, ela vai ler. E fará o possível e o impossível para atender ao pedido do filho amado...

2º) Sempre há um amigo para dele se ter saudades. Ninguém é tão insensível ao ponto de não ter um amigo; um sequer. Interessante que a moça, além de sentir saudades da mãe sente saudades de uma tal de Ingrid para quem manda recomendações. Quem seria esta Ingrid? Sua irmã, uma prima, alguma amiga? Mesmo que seja parente é amiga, pois fez parte de suas lembranças e do seu interesse em destinar um pouco de afeto. Para Ingrid ela dedica beijos e abraços e uma declaração de saudades. Amigo é algo que não se esquece. Amigo é aquele que deixa marcas. Que fez ou faz parte da nossa vida e a gente dele se torna inseparável. Mesmo que o futuro nos remeta para bem longe, as emoções do ser e ter amigo nos acompanham, e sinalizam que a amizade verdadeira é um dos itens que fazem a vida valer a pena.

3º) Lar é um lugar que a gente conhece seus cantos e suas gentes. O mundo moderno nos empurra para fora de casa, mas a constituição humana nos leva de volta ao lar. Confessemos! O conceito de lar está perdido nos tempos hodiernos. Muitos têm visto o lar como sinônimo de prisão. Mas, a verdade dos fatos, é que o lar é promotor de libertação. A realização plena do “eu” só se dá quando somos acolhidos por um lar que promove a educação do corpo e do espírito, para sermos úteis à sociedade e ao Reino de Deus. No seu brevíssimo bilhete, a moça citou pessoas (mãe e amiga), lugares (quarto), móveis (armário), objetos (casacos, blusas etc) demonstrando com isto a sua familiaridade com o ambiente da casa e seus habitantes. Lar é um lugar nosso! É o lugar do eterno retorno, pois sabemos que podemos sair para qualquer fato da vida (trabalho, estudo, lazer) e, mesmo que não sejamos bem-sucedidos numa de nossas empreitadas, no lar haverá sempre um lugar e um alguém para nos acolher.

4º) A vida nos impõe distâncias que a verdade dos sentimentos gostaria de encurtar. A realidade da vida nem sempre se apresenta como almejamos. Ter que sair de casa para “ganhar a vida”, conquistar um lugar ao Sol, é um fato do qual não podemos nos esquivar. Isto não desmerece a figura importante do lar, pois nascemos em um, nos desenvolvemos nele, e, no tempo aprazado, constituímos o nosso próprio, se não temos a vocação para o celibato. Não obstante, nosso lar de origem será sempre objeto de um sentimento que o idioma Português expressa com propriedade: saudade! As distâncias que a vida nos impõe precisam ser encurtadas pondo atenção às vozes do coração que nos indicam este desejo de estar mais próximo de alguém, expressar afeto, demonstrar interesse.

Espero que a moça em tela tenha sido atendida em suas necessidades. Entendo que será muito difícil ela ler este texto um dia, e descobrir que tudo isso que falei trata de sua pessoa. Porém, espero mais ainda que o episódio da perda do bilhete, que ensejou estes pensamentos, não tenha sido inútil. Agora, só depende do leitor!
Autor: Josué Ebenézer de Sousa Soares


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