Folclore: uma polarização da memória histórica, coletiva e imaginários sociais.



Este artigo tem por finalidade estabelecer a relevância do folclore enquanto estudo e conhecimento de um povo, expressos em lendas, crenças, canções e costumes (Do inglês folk, povo, e lore, conhecimento). Essa definição nos remete ao profundo associativismo com as memórias: histórica, coletiva e imaginários sociais, pois a Memória Histórica busca narrar de forma legitimada e racionalizada os fatos da humanidade, organizando-os de maneira documental. Segundo os mesmos princípios de veracidade, a Memória Coletiva abarca todo o conjunto de lembranças culturais e sociais “relevantes” para essa mesma coletividade, cabendo ao imaginário social através do próprio inconsciente coletivo, preservar, inovar e acreditar em costumes, recentemente estabelecidos.

Palavras-Chave: Folclore; Memória Coletiva; Imaginários Sociais; Identidade Cultural.

Introdução

Estamos passando por um período de valorização da memória histórica brasileira, onde há um interesse cada vez maior pelo resgate da cidadania e dos valores culturais do passado. Diante de tal processo valorativo espera-se o reconhecimento da memória coletiva como fonte histórica, geralmente fato não tão entendido pelo pensamento positivista, pois este se baseia principalmente na documentação desprezando o fato histórico revelado pelo mito ou pela consciência expressada no folclore.
Segundo teorias da história, estas devem necessariamente possuir (pelo menos) uma filosofia da história, isto é, uma interpretação do processo histórico segundo um fim previamente estabelecido, ainda que em um tempo não programado, como salienta RUSSEN (2001) com vistas a se averiguar o sentido e as leis que diagnosticariam e proporcionariam o movimento de transformações e permanências entre as sociedades passadas e as presentes.
Essa filosofia pode se adentrar a princípio em pressupostos factíveis a interpretação a partir da análise do fenômeno em sintonia com expressões do imaginário popular e também no inconsciente das massas. Ou seja, essa “filosofia da história” pode ultrapassar em muito a simples “práxis histórica”, ou a prática histórica desvelada da genealogia de fatos e acontecimentos descritos em documentos ou a partir de um estilo que diz enfatizar uma forma específica dos historiadores se expressarem ao público num nível de articulação possível entre o lugar social de onde falam, com a metodogia científica que posssuem.
Assim, temos o folclore como uma forma de acesso à história a partir de outra visão, referendando uma postura que seja mais filosófica do que propriamente uma abordagem positivista. Na verdade, “enquanto a literatura histórica trata de produções individuais e se destina basicamente, a uma elite individual, a produção folclórica procura abarcar toda massa popular de uma região”. (Quadros, 1976, pág.245).
A literatura popular, bem como a música, não se individualizou, ao contrário, embora possa ser conhecida a autoria, se coletivizaram e passaram a fazer parte da MEMÓRIA COLETIVA de um povo, percorrendo vastas regiões para servirem de traço de união com o mito.
Na verdade, a afirmação do pensamento positivista no domínio da história trouxe muitos benefícios para o desenvolvimento da pesquisa e elevou o historiador à categoria de cientista do passado, por outro lado, ela também ajudou a restringir o seu universo de averiguação e a edificar um grande número de “certezas” que durante o século XX acabaram por dificultar a abertura do campo historiográfico para novos caminhos mais amplos do que propriamente aquele em que tal processo resultou assim, objetivou-se uma análise excessivamente fria e positiva na abordagem histórica, deixando de lado outras interpretações que poderiam enriquecer a descrição e interpretação do fenômeno onde muitas dessas “verdades ortodoxas” hoje sofrem revisão conceitual e analítica.
Ainda hoje, mesmo que velada, implícita ou inconsciente, muitos dos dogmas criados pelo positivismo continuam sendo conduzidos, não apenas nos níveis escolares secundários, mas também nas academias em que reina o discurso “renovador”, notadamente o de origem marxista que interpreta a história a partir de um fenômeno dialético de luta de classes.
Um desses dogmas, e talvez o maior, configura-se na fetichização do documento, preferidamente o escrito e o primário. Se o documento, não necessariamente o escrito, é indispensável a uma das etapas da construção do saber histórico, ele não é suficiente (ou mesmo auto-suficiente), como pensam alguns. Quase sempre o documento impões “verdades” eurocêntricas, desprezando o imaginário popular e a versão dos agentes envolvidos no fato histórico, como destaca SAID (2005,pág.14).
“[...] o problema com esta idéia de cultura é que ela faz com que a pessoa não só venere sua cultura, mas também a veja como divorciada, pois transcende do mundo cotidiano. Muitos humanistas de profissão são, em virtude disso, incapazes de estabelecer a conexão entre, de um lado, a longa e sórdida crueldade de práticas, como a escravidão, a opressão racial e colonialista, o domínio imperial e, de outro, a poesia, a ficção, a filosofia”.
Ora, existe um outro campo fértil de pesquisa histórica que está ligado ao embasamento da tradição, da expressão folclórica, onde ocorrem manifestações de memória coletiva que podem significar caminhos elevados para o esclarecimento de fatos correlatos, a partir da “explicação de outro”. Esta abordagem histórica teve início com o escritor Aleixo Carpentier, em “O Reino deste Mundo”. O romance O Reino inaugura essa tendência, inserindo a necessidade da história como parte do esforço de descolonização, que se realiza contra uma mentalidade perpetuada pelas elites locais.
O que move esse novo romance é a vontade de problematizar o discurso racionalista do Ocidente, para contemplar nossa realidade de várias faces. Essa consciência cria a “literatura de resistência” – expressão de Edward Said- (2001) forte e revolucionária, visando mudar a identidade forjada e resgatar nossa história. Consideramos como SAID (2001) que esta “descolonização cultural” pode se dar também pela intervenção do imaginário popular e a consciência coletiva ligada ao mito e também à simbologia religiosa expressada no sincretismo entre a religião Católica e os cultos afro-brasileiros. A| expressão folclórica, nesse sentido, traz uma visão do passado em tempo real através do enaltecimento do imaginário coletivo. As cavalhadas, como folguedo popular, trazido pelos portugueses e que consiste de uma espécie de torneio a cavalo, em que os cavaleiros simulam a luta entre cristãos e muçulmanos na Ibéria medieval, é um exemplo de cultura histórica repassada pela tradição e pelo imaginário social coletivo, agregado à crenças, mitos e memória coletiva formada pela tradição oral.
Para investigar o significado da memória coletiva, faz-se necessário conciliar pesquisa histórica científica com mitos e símbolos tradicionais da cultura popular; ao analisar criticamente os documentos históricos, além dos dados auferidos pela pesquisa de campo, da tradição histórica oral e do imaginário coletivo, pois uma análise histórica da manifestação folclórica só é possível ser concretizada a partir da contribuição da Imaginação Social, Coletiva da comunidade, a qual ocorre o evento, a isso chamamos de identidade cultural.
Partindo dessa premissa, a Memória Social tem sido sempre enaltecida onde o coletivo se destaca. Todavia, os imaginários sociais tornam-se extremamente relevantes em qualquer análise histórica, pois direcionam o modo como a sociedade concebe todo o legado cultural ao reconstruí-lo, e rememorá-lo ao longo dos tempos.

Referências Bibliográficas


CARPENTIER, Aleijo. O Reino deste Mundo. São Paulo: Cia das Letras,2000.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo: Cia das Letras, 2001.
RUSSEN, Jorn. Razão Histórica: Editora UNB, 2001.
QUADROS, J. Literatura Brasileira- Folclore SP: Editora Somar, 1976.
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social: Enciclopédia Einaldi, 1985.
Autor: Cecília Valadão


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