A construção de uma civilização superior, em Nietzsche



Resumo: Apresentar Nietszche como o filósofo do questionamento da moral, citando e comentando alguns dos temas por ele abordados onde se explicita a necessidade de busca constante em que deve estar o homem ao longo de toda sua vida. Apropriar-se do questionamento do filósofo acerca de alguns temas de seu tempo e que são freqüentemente apresentados à nossa consciência e os quais somos impelidos a investigar initerruptamente, buscando respostas a cada dia mais apropriadas à nossa condição humana.
Palavras-Chave: Moral nobre, moral escrava, civilização superior, liberdade, valores morais.

Introdução
O propósito deste artigo é fazer uma abordagem genérica de um tema debatido por Nietzsche em suas obras. Procuramos analisar brevemente alguns temas mais específicos em que o autor aprofundou-se, observando o conjunto de sua obra visualizando a preocupação, as vezes excessiva do autor em derrubar conceitos estabelecidos, mesmo não tendo uma proposta clara sobre novos princípios a serem considerados no lugar daqueles a serem superados.
Este texto pretende dar conta de uma análise do tema supracitado, baseando-se na exegese de dois aforismos da obra Humano, demasiado humano, ambos pertencentes ao capítulo 8, intitulado “Uma olhadela ao Estado”.
“Uma civilização superior só pode surgir onde haja duas castas diferentes (...) a casta do trabalho forçado e a casta do trabalho livre.” (§ 439, Civilização e casta, p. 266, Humano, demasiado humano, 8º capítulo, Ed. Relógio d’água, tradução de Paulo Osório de Castro, 1997, Portugal).

“(...) os escravos vivem (...) com mais segurança e felicidade que o operário moderno, (...) o trabalho do escravo é muito pouco trabalho em comparação com o do ‘trabalhador’.” (Op. cit. § 457, Escravos e trabalhadores, p. 276)



1. Sobre a Escravidão

No contexto em que vivemos, defender a escravidão suscita uma reação adversa em nossos ouvintes contemporâneos. Geralmente, a liberdade é o critério maior, na consideração da dignidade humana. Não importa que alguém passe fome, sede, não tenha onde morar, não tenha um trabalho, não possa estudar, dar educação, alimento e saúde à sua prole. Se ele é livre, tudo parece estar resolvido. A dignidade humana parece ter-se reduzido à questão da liberdade.
É nesse contexto que analisamos os dois aforismos nietzschianos. No primeiro, o autor defende a tese de que a liberdade não é o critério maior na construção de uma civilização superior. Para que tal tarefa possa se dar, é necessário que haja duas classes: a classe dos trabalhadores livres (ociosos) e a classe dos trabalhadores forçados (escravos). A primeira, é tida como superior, a segunda, como inferior.
A pergunta intrigante que poderíamos fazer é a seguinte: qual é o perfil dos tipos que compõem cada classe? O que determina que alguém seja partícipe da classe superior (ociosos), ou inferior (escravos)? Seria o critério do poderio econômico, riquezas materiais, bens de consumo?
Em nossa sociedade, não restaria dúvidas quanto à resposta: realmente o que nos define, enquanto partícipes de uma determinada casta ou classe social é inexoravelmente, a nossa condição econômica.
Porém, em Nietzsche, o critério para o enquadramento não é de forma alguma econômico, financeiro. O critério é o talento, a faculdade, a capacidade pessoal que um indivíduo tem.
Parece que o autor faz uma inversão quanto ao papel desempenhado pelos indivíduos que compõem as duas classes. Na ótica hodierna, tenderíamos a nos compadecer dos indivíduos escravos, e a alimentarmos um ‘certo’ rancor, com relação aos indivíduos livres. Porém, não é essa a posição de Nietzsche.
Os indivíduos livres são aqueles que mais sofrem, em virtude do fato de terem o que o filósofo denomina de “uma grande missão”. Cumpre-nos perguntar: que grande missão é essa? Embora o filósofo não explicite, arriscaríamos uma resposta: como o papel social é determinado por seus valores intrínsecos, seus talentos, e não pelos bens materiais que eles possuem, a missão desta classe é conduzir a sociedade, para uma cultura superior (o problema levantado no início do primeiro aforismo), para uma civilização superior. Seu papel é criar valores, dirigir, determinar sentidos que sejam culturalmente positivos.
Já os indivíduos escravos, ao contrário do que poderíamos pensar, não sofreriam tanto, pois a eles apenas caberia obedecer, seguir o caminho apontado pela classe livre (ociosa).
O termo ‘ocioso’, em nossa tradição lingüística, dá a idéia de alguém que não trabalha. Figura-nos, de imediato, a ilustração do capitalista, que serve-se da mais-valia do seu empregado, para viver no ‘ócio’, aproveitando a vida, enquanto que aquele mata-se de trabalhar, sem que isso baste para seu próprio sustento. O ócio que Nietzsche fala é de outra natureza. É um ócio, uma atitude na qual o indivíduo tem um “desejo indefinido”. Por este termo (‘desejo indefinido’), parece significar o cuidar das coisas e dos interesses alheios, visando o bem da civilização, e não apenas o seu próprio bem.
O escravo, por sua vez, seria determinado como quem possui um “desejo definido”, isto é, um desejo voltado para sua própria realidade, atendo-se aos seus interesses imediatos, e não aos interesses da cultura, como um todo.

2. Sobre a Liberdade

No segundo aforismo, o autor irá tecer uma argumentação para defender a estrutura que ele apresenta e propugna (homem escravo/homem livre), diante da qual nos sentimos tendentes a abandonar nossa aparentemente irredutível convicção contra a escravidão.
Nietzsche faz-nos enxergar que o ideal moderno de ‘liberdade’ não passa de um embuste, mediante o qual a sociedade vende uma imagem de igualdade que, no fundo, não é senão um esquema implacável de aprisionamento, de estancamento social. Nesta situação, a liberdade é a maior das vaidades humanas. O indivíduo, como falamos no início deste texto, prescinde de todas as condições básicas de uma existência nobre, tais como segurança, alojamento, diversão, alimentação, estudo, saúde. Ele pode-se ver apartado de todas estas questões e ainda é capaz de defender a sociedade em que vive. Porém, se ao menos fazer a menção de retirar-lhe a liberdade, ele se revolta, se volta contra a sociedade.
O que percebemos? Na verdade, o escravo, objeto da reflexão do autor, é muito mais digno do que o homem livre, moderno, o operário, o funcionário, o empregado: “(...) o trabalho do escravo é muito pouco trabalho em comparação com o do ‘trabalhador’”.
Diante da argumentação nietzschiana, não podemos nos defender. Como combater suas evidências? Não somos, nós mesmos, vítimas de tal perversidade social, que nos faz acreditar sermos livres mas que, ao final, nos relega a uma condição bem pior do que a do escravo apontado por Nietzsche, que ao menos tem as condições básicas para que um indivíduo pudesse se considerar sendo humano, ter uma qualidade de vida nobre.
O ideal que a política moderna nos vende, ela não pode nos dar: segurança, dignidade. Porém, ela coloca isso como ponto fundamental/dogmático, tabu. Na verdade, até entre as sociedades escravocatas, tinha-se mais dignidade. A humanidade transformou a liberdade em um dogma, mas tirou do homem sua dignidade.
Cada um de nós, homens livres, vivemos em função de nossos desejos particulares, sabedores que somos de quão difícil é conquistá-los. Não temos tempo algum para um ideal de civilização superior, visto que nossas ações mal são produtivas o suficiente para que possam garantir nossa subsistência, quanto mais, gerar uma ‘civilização superior’.
Embalados por este ritmo, por este sonho dogmático, de estarmos voltados apenas para nós mesmos, perdemos um referencial social, e passamos a um referencial puramente individual o qual, diga-se de passagem, jamais será atingido, pois a sociedade na qual estamos inseridos cria mecanismos perversos para o impedir. Vivemos alienados em função da felicidade. E o que é pior, da felicidade egoísta. Esse é o primeiro ponto em que o autor insiste que abandonemos: “O ponto de vista da repartição da felicidade não é essencial, quando se trata de dar origem a uma civilização superior”. Não importa que todos sejam felizes. O homem superior não se submete nem se integra à definição da vida feliz do maior número. Sua felicidade é fazer aquilo que lhe ordena sua vocação interior.
Para se criar uma sociedade superior, é necessário que não tenhamos a estrutura que temos hoje, onde “cegos conduzem cegos”. A estrutura que Nietzsche propugna é uma estrutura onde a nata da inteligência, os gênios, os homens mais nobres, conduzam o processo, não em seu nome, mas em prol de uma cultura superior, em prol do todo.


3. A Transvalorização dos Valores

O fundamento da teoria do projeto genealógico de Nietzsche nos permite compreender o processo de transvalorização de todos os valores morais e a recuperação da multiplicidade de valores o qual determinam uma perspectiva para além da moral através das ‘vontades de potências’ imanentes ao homem.
Ao analisarmos o conceito de genealogia nietzschiana como sendo a origem, e também como diferença ou distância na procedência, o resultado obtido será a compreensão das interferências históricas gerando sempre novas interpretações, e com isso será verificado que o mais importante para um genealogista da moral não é somente o fato documentado, mas o complexo desenvolvimento dos valores considerandos tal perspectiva o tema do valor apresenta um duplo sentido, são eles: os valores possuem avaliações nas quais lhe dão origem e valor, e as avaliações ao criá-los supõem valores a partir dos quais analisam.
A partir dessa visão, Nietzsche, rejeita o binômio metafísico e o sentido em si dos valores platônicos, pois estes encaminham a vida a decadência. A análise da refutação do platonismo é realizada através da inversão e superação da oposição dos valores, na qual propõe novas possibilidades de vida e uma multiplicidade de valores. Nesse sentido, o valor é símbolo de uma modificação, não entrando em questão o verdadeiro ou o falso, mas o valor dos valores e o potencial de proporcionar um aumento de vida ou não. Ao tomarmos como base os valores instituídos proporcionando uma vida ascendente ou decadente obtemos o modo de proceder dos indivíduos, desse modo, temos a moral como uma teoria das relações de dominação, na qual constatamos dois tipos fundamentais de moral: a moral dos escravos e moral dos senhores, no qual resulta numa relação de ação e reação, a primeira por parte dos senhores e a segunda advinda dos escravos. A partir disso obteremos a multiplicidade dos valores, pois, no sentido nietzschiano, não existem os valores em si, mas a pluralidade dos mesmos. A conceitualização de ‘bom’ e ‘mal’ irá depender de qual visão está sendo valorada, pois o que é bom para a moral do senhor poderá ser ruim para a do escravo. Assim, o mesmo “fato” valorado poderá ter múltiplos sentidos, não sendo absolutamente bom ou mal, mas dependendo da visão que se tem. De tal modo, há uma modificação do sentido de valor e uma pluralidade no mesmo.Ao abordar a multiplicidade dos valores será constatado que a realidade tem um caráter dinâmico, em incessante mudança, isto é, a realidade do mundo não é una, mas múltipla, e resgatando o pensamento heraclítiano de que o ser é devir, teremos como conseqüência o homem como vontades de potências, como uma pluralidade de impulsos, cada um com sua perspectiva própria.
Enfim, a filosofia nietzschiana “se coloca apenas por isso, além do bem e do mal”.[1] Eis o que é, em última instância, uma perspectiva para além de bem e mal e para além de verdade e erro.


[1] NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.,§4, p.




Conclusão


Tentar fazer uma restrospectiva do pensamento de um filósofo que buscou ao longo de sua vida derrubar todos os conceitos estabelecidos, mesmo não tendo nenhuma fórmula especial a oferecer, é uma tarefa árdua. Mas quem de nós não se perguntou se queremos ser bonzinhos e admiráveis aos olhos da sociedade mesmo que isto nos custe um comportamento falso ao longo de toda a vida? Ou se quisermos construir tudo aquilo que desejamos mesmo que isso venha a destruir normas e interesses alheios? Mas o que é ser verdadeiramente nobre? Em Nietzsche não há dúvidas. Temos que subverter essa ordem moral onde os valores foram sendo transformados historicamente em defeitos foram a serem superados e os defeitos foram colocados como as virtudes a serem seguidas. Essa é a transvaloração de todos os valores.


Referência Bibliográfica

NIETZSCHE, Friedrich Humano demasiado humano, Ed. Relógio d’água, tradução de Paulo Osório de Castro, 1997, Portugal.
¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬_________________.A Genealogia da Moral. São Paulo: Moraes, 2001.
_________________. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo, Martins Fontes. 1985.
PASCHOAL, Antônio Edmilson. A Genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003.
Autor: Marcia Rosa


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