COBRANÇA DA ÁGUA: INVESTIMENTO PARA O FUTURO SUSTENTÁVEL DOS RECURSOS HÍDRICOS



COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA: INVESTIMENTO PARA UM FUTURO SUSTENTÁVEL DOS RECURSOS HÍDRICOS

1 INTRODUÇÃO

Os impactos negativos que causamos ao meio ambiente em que vivemos são conseqüências inerentes a nossa própria condição de existência. Atuamos na transformação dos recursos disponíveis na natureza em bens que nos são necessários, ou ao menos hoje julgamos necessários.
Mas o abuso desmedido da exploração dos recursos naturais vem gerando reflexos negativos cada vez maiores (poluição, escassez de água e outras catástrofes), de proporções ainda não possíveis de serem calculadas, tornando nossa preocupação com o meio ambiente tão intensa e jamais antes vista.
A água é o elemento natural mais presente em nossas vidas, seja na sua utilização nos produtos de que necessitamos, seja na própria composição do nosso corpo. É, portanto, impossível haver vida onde não a água não se faça presente de alguma forma.
Os Recursos hídricos, em especial, se não forem devidamente geridos, quer pelos agentes públicos, quer pela sociedade em geral, estarão comprometidos para as gerações vindouras, sendo imperiosa uma atenção maior na presente questão.
Dessa forma, em muitos países, e agora no Brasil, buscou-se implantar instrumentos econômicos cada vez mais eficazes, como ferramentas de controle e gestão para melhor racionamento do uso da água, almejando, com isso, uma alteração de comportamento dos usuários no que se refere ao consumo e ao descarte desse precioso elemento da natureza. E um dos mais importantes avanços foi, sem dúvida, a cobrança pelo uso da água, a qual, se efetivamente posta em prática no Brasil como está sendo em alguns países da Europa, como a França, por exemplo, certamente contribuirá na manutenção da oferta de água de boa qualidade para todos, e indiretamente promoverá o bem-estar de uma infinidade de pessoas, pela infra-estrutura que proporcionará.
Essa cobrança, baseada na contribuição da sociedade e instituída de acordo com as características de cada bacia hidrográfica, visa à obtenção de recursos para serem utilizados, exclusivamente, na recuperação, manutenção e gerenciamento do sistema hídrico da própria bacia, com a participação ativa da comunidade, que se espera possa conscientizar-se do valor que a água possui, como bem público, pelo seu caráter finito, e assim possa manejar melhor o uso desta, garantindo às gerações vindouras a disponibilidade deste recurso, integrando o homem com a natureza em perfeita harmonia.

2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

2.1 A DISTRIBUIÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL E NO MUNDO

Na natureza, a água pode ser encontrada de diversas formas: na superfície, disposta em rios e lagos; no ar, através de vapor d´água; e, ainda, no subsolo, armazenada em rochas permeáveis e de aspecto esponjoso, capazes de armazenar água, chamadas de aqüíferos.
Segundo informações da ONG paulistana Universidade da Água [1], como a maior parte de toda a água do Planeta corresponde aos mares e oceanos, sendo, portanto, salgada e imprópria para o consumo (na ampla acepção do termo), apenas 2,5% de toda a água superficial existente na Terra é doce, e apenas 0,006% representa a água existente nos rios e lagos, em virtude da grande parcela encontrar-se armazenada nos pólos geográficos terrestres, em calotas polares e glaciares, ou nas montanhas em forma de neve. Conforme dados da EMBRAPA, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária [2], o Brasil tem o privilégio de dispor de 15% de toda a água doce do planeta, o que representa um “reservatório nacional” abastecido de 17 trilhões de metros cúbicos de água, mais da metade de toda a água disponível para consumo existente no continente sul-americano. Isso graças às grandes bacias hidrográficas existentes no país, como a amazônica, do São Francisco e do Paraná. Já a disponibilidade brasileira de água está na faixa de 180.000 metros cúbicos de água por segundo.
Entretanto, o lado infeliz da história mostra-nos um país campeão em desperdício. Um terço de toda a água tratada no mundo que é jogada indevidamente fora ocorre no Brasil, como aponta a Secretaria de Recursos Hídricos, do Ministério do Meio Ambiente.
Como se não bastasse, a distribuição de água no Brasil ocorre de forma nitidamente irregular, pois somente a região amazônica concentra 70% de toda a água superficial do país [3] , ao passo que a maior fatia da demanda ocorre no sul e sudeste.
Tema de importância literalmente vital, a água, elemento que compõe aproximadamente 70% do nosso corpo e ainda se encontra em abundância no território brasileiro, vem sofrendo, cada dia de forma mais intensa, com as diversas formas de poluição. Corre o risco, portanto, num futuro muito próximo, de escassear a ponto de tornar-se o bem mais precioso da humanidade. Isto sem levar-se em conta o próprio processo de escassez natural, devido a condições climáticas e hidrogeológicas.

2.2 A ÁGUA COMO BEM FINITO

Tem-se, no cenário mundial, uma situação notória verdadeiramente preocupante: de um lado, os níveis de poluição e outros processos degradativos dos recursos hídricos não diminuem; de outro, a demanda pela água é crescente, em razão das maneiras cada vez mais diversas de sua utilização, seja no consumo pessoal, como geradora de energia ou nos processos industriais.
Com base nessas afirmações e previsões, a água, até então considerada como um recurso natural renovável, passa a ser entendida de forma pacífica pelos estudiosos do assunto como um recurso finito, em razão da impossibilidade de atender, de forma perpétua, à população global e às demandas industriais. No lembrar de MARIA LUIZA MACHADO GRANZIERA, “muitos países compreenderam ter entrado em uma outra era, na qual a água, antes considerada um recurso ilimitado, deve ter um uso racional e ser protegido contra a poluição” [4].
Essa concepção passou a ser melhor difundida a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em 1972, na cidade de Estocolmo, Suécia, que fez chamar a atenção dos países sobre o desenvolvimento econômico e uso irracional de recursos naturais.
Em 1992, na Conferência Internacional de Dublin, Irlanda, segundo maior encontro a discutir sobre recursos hídricos, que reuniu inúmeros países, ONG´s e especialistas da área ambiental para tratar de temas preocupantes para o século XXI, dispondo em sua declaração final:
“a escassez e o desperdício de água doce representa uma séria e crescente ameaça para o desenvolvimento sustentável e proteção do ambiente. A saúde e o bem-estar do homem, a garantia dos alimentos, o desenvolvimento industrial e os ecossistemas dos quais eles dependem estarão todos em risco, se os recursos de água e solos não forem geridos, na presente década, de forma bem mais efetiva do que tem sido no passado.”

A partir daí, esse conceito se inseriu nos principais diplomas legais da maioria dos países. No Brasil, a Agenda 21, principal documento resultante da Conferência ECO-92 do Rio de Janeiro, realizada meses após a de Dublin, o acatou expressamente, conforme redação de seu princípio nº 1: “A água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para a sustentação da vida, do desenvolvimento e do meio ambiente.”

2.3 HISTÓRICO DA PREVISÃO DA COBRANÇA DA ÁGUA E UTILIZAÇÃO SUSTENTÁVEL DOS RECURSOS HÍDRICOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O primeiro diploma legal a prever a conservação de recursos hídricos ou no seu melhor gerenciamento surgiu no Brasil em 1934, quando da promulgação do Código das Águas, através do Decreto 24.463. Ainda assim, a gestão dos recursos hídricos não sofreu muitas modificações. Ressalta GRANZIERA que “a não obediência ao Código de Águas e a falta de normas adequadas à evolução ocorrida criaram não só situações de irregularidade, como também e principalmente geraram um enorme desconhecimento quanto ao próprio Direito de Águas, no sentido mais básico que essa afirmação possa ter, ou seja, que a água se encontra sob tutela jurídica”[5].
Décadas depois, o tema ganhou maior relevância, quando o homem passou a entender a importância desse recurso e a sentir diretamente os efeitos da falta d´água.
Ironicamente, portanto, foi necessário, durante vários anos, que os recursos hídricos fossem utilizados de maneira desordenada, para que fosse elaborado um sistema nacional de gerenciamento dos recursos hídricos.
Em 1968, com a promulgação da Carta Européia da Água, redigida na França, mencionou-se, de forma pioneira, sobre a água como recurso natural limitado e sujeito à controle, para se garantir seu uso sustentável[6].
No ano de 1969, o Tratado da Bacia do Prata, envolvendo Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, assinado em Brasília, dispôs em seu preâmbulo como um dos seus objetivos a preservação dos recursos hídricos “para as futuras gerações, através da utilização racional desses recursos”. Apesar de sua especificidade por abordar somente a bacia hidrográfica do Prata, é possível considera-lo como o “pontapé” inicial no estabelecimento de políticas comuns na América Latina para melhor gerenciamento dos recursos hídricos, com a mútua cooperação entre os envolvidos. Por meio dele, estabeleceram-se outros dois pactos: a Declaração de Assunção, em junho de 1971, e o Tratado Brasil-Argentina, em maio de 1980. Para GRANZIERA, “é justamente essa cooperação que as partes devem buscar, em todos os níveis da negociação que venha a ocorrer. Nota-se aqui, na prática, o princípio segundo o qual a água é bem comum que impõe a cooperação internacional”[7].
Em 1972, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, Suécia, reunindo 113 países, além de 250 organizações não-governamentais e organismos da ONU, foi um marco na história em matéria de reflexão sobre o futuro ambiental. Seu resultado foi a elaboração da Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, e no que tange aos recursos hídricos, recomendou-se a utilização de instrumentos capazes de combater o uso irracional da água e diminuir os níveis de poluição.
No Brasil, a Lei 6.938/81, que instituiu o Código Ambiental, já expressava em seu artigo 4º, inciso VII, a imposição de uma contribuição ao usuário pela utilização de recursos ambientais com finalidade econômica[8].
Sempre tratado nas constituições federais do Brasil, a partir de 1934, foi com o advento da Carta Magna de 1988 que os recursos hídricos ganharam maior importância, em decorrência, principalmente, da Conferência Internacional de Estocolmo. Diz a nossa última Constituição Federal, em seu artigo 21, inciso XIX, competir à União definir os critérios de outorga dos direitos de uso de recursos hídricos, ou seja, observa-se que a água já não se encontrava mais, desde então, disponível para que fosse utilizada de qualquer modo.
Já no artigo 225 da Constituição de 1988, inseriu-se a obrigação de se promover o desenvolvimento sustentável do meio ambiente, logo, dos recursos hídricos, conforme redação de seu caput: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Anos após, como um dos eventos preparatórios da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (RIO-92), a Conferência de Dublin, na Irlanda, realizada em janeiro de 1992, já registrava, em sua declaração final, sobre a ameaça à sobrevivência da humanidade em razão da escassez e do desperdício de água.
Esta Conferência estabeleceu as diretrizes a serem tomadas em relação aos recursos hídricos, através dos seguintes princípios, os quais foram acolhidos plenamente na Agenda 21, principal documento programático resultante da Conferência RIO-92, em especial :
“Princípio nº 1 – A água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para a sustentação da vida, do desenvolvimento e do meio ambiente.”
“Princípio nº 2 – O desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados na participação dos usuários, dos planejadores e dos políticos, em todos os níveis.”
“Princípio nº 4 – A água tem valor econômico em todos os seus usos competitivos e deve ser reconhecida como um bem econômico.”
“Princípio nº 16 – “As autoridades nacionais devem esforçar-se para promover a internalização dos custos de proteção do meio ambiente e o uso dos instrumentos econômicos, levando-se em conta o conceito de que o poluidor deve, em princípio, assumir o custo da poluição, tendo em vista o interesse público, sem desvirtuar o comércio e os investimentos internacionais”.

Entretanto, o passo mais importante na construção de um modelo de desenvolvimento sustentável em relação ao uso dos recursos hídricos e a efetividade da cobrança pelo uso da água foi com a elaboração da Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997, conhecida como a Lei das Águas, após quase quinze anos de trabalhos e discussões que tiveram início no Seminário Internacional de Gestão de Recursos Hídricos, realizado em Brasília em 1993 e organizado pelo então Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica - DNAEE. Preocupada com a realidade da má distribuição de recursos hídricos e da sua efetiva escassez, a Lei das Águas instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Com os objetivos de assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados e a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, com vistas ao desenvolvimento sustentável (artigo 2º, I e II), dispôs a Lei das Águas sobre instrumentos de cobrança pela utilização desse recurso natural, estabelecendo uma concepção nova de gestão, através das bacias hidrográficas, no intuito de facilitar a gestão dos recursos hídricos entre Estados-membros e a União.
Estava criada, finalmente, uma nova ordem jurídica em relação aos recursos hídricos, munindo-se o governo de instrumentos necessários à proteção e regulação desses recursos.
A Política Nacional de Recursos Hídricos foi instituída pela Lei 9.433/97 para definir critérios e padrões a fim de planejar, regular e controlar o uso adequado da água, em complementação à Política Nacional do Meio Ambiente, regendo-se pelos seguintes fundamentos, conforme dispõe o artigo 1º:
I - a água é um bem de domínio público;
II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;
IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;
V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

Esses fundamentos, devidamente analisados, reforçam o suporte daqueles que defendem a instituição da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, como a única maneira de permitir a continuidade do crescimento econômico de forma sustentável, garantindo-se a utilização desse recurso às gerações futuras, bem como prover melhores condições de vida a uma considerável parcela da sociedade brasileira que não dispõe da utilização da água tratada ou qualquer forma de saneamento básico.

2.4 A ÁGUA COMO BEM DE DOMÍNIO PÚBLICO

A partir do momento em que á água foi entendida como um bem natural finito, desabrocha, de forma ainda mais evidente, o interesse de toda a sociedade em sua preservação e uso controlado. Para isso, o Estado torna-se o único sujeito com aptidão para se dizer responsável pela gestão desse recurso, em razão da particularidade desse bem ambiental limitado. Para o professor CARLOS FREDERICO MARÉS[9], os bens ambientais, “independentemente de serem públicos ou privados, revestem-se de um interesse que os faz ter um caráter público diferente. A diferença está em que, seja a propriedade pública ou particular, os direitos sobre estes bens são exercidos com limitações e restrições, tendo em vista o interesse público, coletivo, nela existente”.
No inciso I do artigo 1º da Lei de Recursos Hídricos, a água é considerada como bem de domínio público. Percebe-se, entretanto, como bem defende PAULO CELSO ANTONIO PACHECO FIORILLO[10], um equívoco do legislador, sendo inconstitucional assim considerá-la, pois não se quer dizer que a água seja entendida como bem dominical do Estado, passível de alienação, como vinha previsto no Decreto 24.643 de 1934 (Código das Águas), em seu artigo 1º: “as águas públicas podem ser de uso comum ou dominicais”.
É que com o advento da Constituição de 1988, em seu artigo 225, e com a Lei 9.433 de 1997, a parte final do artigo 1º do mencionado decreto encontra-se revogada, e hoje as águas públicas são apenas de uso comum do povo. De acordo com FIORILLO[11], o artigo 20 da Constituição Federal assume nova conotação. Ao estabelecer os bens da União de cunho ambientais, como os rios, lagos e ilhas fluviais, não lhe confere a propriedade, mas tão somente a gerência desses bens.
O Código Civil Brasileiro de 1916, aliás, reza, em seu art. 66, que “são bens públicos: I- os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;”
Como bem ilustra FIORILLO[12], “não cabe, portanto, exclusivamente a uma pessoa ou grupo, tampouco se atribui a quem quer que seja sua titularidade”.
Aos usuários cabe apenas sua fruição, não sendo passível, de qualquer forma, submetê-la como se fora um objeto negocial, a fim de garantir a continuidade de seu uso, como adiante assevera o antes mencionado autor: “esse bem atribui à coletividade apenas seu uso, e ainda assim o uso que importe assegurar às próximas gerações as mesmas condições que as presentes desfrutam”.
A respeito das consequências da conceituação da água como bem de uso comum do povo, assevera MACHADO[13]que “o uso da água não pode significar a poluição ou a agressão desse bem; o uso da água não pode esgotar o próprio bem utilizado e a concessão ou a autorização (ou qualquer tipo de outorga) do uso da água deve ser motivada ou fundamentada pelo gestor público”.
Revela-se, portanto, a preocupação do Estado em não abrir espaços para interpretações maliciosas que visem garantir o uso desenfreado dos recursos hídricos, pelo simples fato de se deter uma concessão ou outorga de uso. Evita-se, assim, a entrega de uma “carta branca” àqueles que são usuários de grandes volumes de água e são, por conseqüência, os poluidores em potencial.

2.5 A ÁGUA COMO UM RECURSO NATURAL DOTADO DE VALOR ECONÔMICO

Com a notícia da possibilidade de sua escassez, é que aparece, em relação à água, uma nova concepção sobre o seu valor. Nesse aspecto, então, reside o grande problema da cobrança pelo uso da água: a instituição da cobrança não quer dar a entender que, ao pagar, o usuário possa fazer uso indiscriminado da água. Este é o entendimento de MACHADO, expondo que se atribuindo valor econômico à água “não se pode e nem deve levar a condutas que permitam que alguém, através do pagamento de um preço, possa usar a água a seu bel-prazer[14]”. O artigo 19, I, alíneas a e b, da Lei 9.433/97 foi muito claro ao dizer que a “cobrança pelo uso dos recursos hídricos objetiva reconhecer a água como um bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor”.

2.6 COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SOBRE A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA

A gestão dos recursos hídricos será realizada, de acordo com o artigo 21, inciso XIX, da Constituição Federal, pelo Sistema Nacional de Recursos Hídricos.
Como defende MACHADO[15], a existência de um sistema hídrico nacional não elimina, entretanto, a autonomia dos Estados-membros em gerir os seus recursos hídricos. Isto porque, enquanto no artigo 22 da Carta Magna, inciso IV, diz ser privativa a competência da União para legislar sobre águas, o artigo 24 confere à União, Estados e Municípios, competência concorrente para legislar sobre assuntos referentes ao combate à poluição de recursos naturais, enquanto no artigo 23 a competência é concorrente para executar programas de proteção do meio ambiente e melhoria da qualidade de vida da sociedade[16].
Dessa forma, os Estados devem se adequar aos comandos da União, em especial à Lei das Águas, para concorrentemente, estabelecer suas normas de cobrança de recursos hídricos, levando-se em consideração a bacia hidrográfica e não os rios que têm sob seu domínio.
Igualmente aos Municípios cabe estabelecer as normas de seus interesses locais, visando suplementar as disposições federais e estaduais referentes à cobrança, descentralização e participação das comunidades.
Portanto, a cobrança pelo uso da água, que é um instrumento econômico que visa, atribuindo valor ao líquido, conscientizar as pessoas sobre seu uso de maneira sustentável, deve ser instituída em conjunto com a participação de todos os entes federativos do país e, mesmo em caso de conflito, deverá prevalecer, conforme assevera a professora ANA CLÁUDIA BENTO GRAF[17], as normas que conferem tratamento mais restrito ao meio ambiente, por serem mais protetoras, em atendimento ao direito fundamental de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à qualidade de vida, nos termos do art. 225 da Constituição Federal.

3 A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA

A Política Nacional de Recursos Hídricos, no seu artigo 5º, inciso IV, definiu como o seu instrumento mais importante a cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Já no artigo 19, dispôs a Lei o porquê da cobrança: “A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I- reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II- incentivar a racionalização do uso da água; III- obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos”.
ANTUNES ressalta que “a cobrança, portanto, está plenamente inserida no contexto das mais modernas técnicas do Direito Ambiental e é socialmente justa.”[18]
A preocupação do legislador apresenta-se clara ao fazer com que a instituição da cobrança não venha somente a tornar-se um meio arrecadatório para o Estado, mas principalmente visa a conscientizar toda uma sociedade, até então despreocupada, a respeito da problemática que envolve o contínuo processo de escassez da água - mais ou menos acelerado, dependendo de diversos fatores, naturais e humanos -, e mais que isso, conseguir recursos capazes de fomentar programas que promovam a redução da pobreza, oferecendo melhores condições de saúde e bem-estar àqueles que sofrem, por exemplo, com a falta de um mero saneamento básico.
Entretanto, quem estão sujeitos à cobrança pelo uso da água?
Analisando o artigo 20 da Lei 9.433/97, a cobrança será feita apenas sobre o uso sujeito à outorga, que, em linhas gerais, representa uma autorização que concedida pelo Poder Público para que alguém explore economicamente algum bem, em prazos e condições pré-estabelecidas.
A outorga, apresentando-se como outro instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos, além da cobrança, objetiva, de acordo com o preceito contido no artigo 11 da Lei das Águas, assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água. Esta, por fim, será concedida somente nos seguintes casos: utilização que envolva captação direta da água em rios, lagos ou aqüíferos, geralmente nos processos industriais e abastecimento público; lançamento de resíduos diretamente em corpos d´água; geração de energia elétrica ou qualquer outro uso que altere o regime, qualidade ou quantidade de um corpo d´água.
Dessa forma, e segundo o que dispõe o parágrafo primeiro do artigo 12 da Lei das Águas, não estão sujeitos à outorga o uso da água em pequenas comunidades, ou que for considerado insignificante, seja para fins de acumulação, lançamento de resíduos ou captação.


3.1 PRINCÍPIOS DO POLUIDOR-PAGADOR E USUÁRIO-PAGADOR

A cobrança pelo uso da água fundamenta-se nos princípios do poluidor-pagador e usuário-pagador, princípios estes já adotados por vários países após a Conferência de Estocolmo, na Suécia, em 1972, em que se procurou adotar medidas no sentido de diminuir os efeitos negativos que o ser humano causa à natureza.
O princípio do poluidor-pagador (Polluter-Pays Principle), portanto, objetivando medidas para baixar os índices de poluição, ao relacionar o preço dos bens com os recursos naturais utilizados na cadeia produtiva, preceitua, de forma sucinta, que ao produtor deverá ser imputado todos os custos necessários à prevenção e ao combate à poluição no seu âmbito, ou seja, deve ele suportar os custos das medidas antipoluentes necessárias ao retorno do status quo da produção.
Também previsto na Lei 6.938 de 1981, em seu artigo 4º, VII, o princípio do poluidor-pagador surge ao asseverar o texto legal “a imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e;ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais”.
Será, portanto, uma medida que penalizará rigorosamente aqueles que estão poluindo, para que sejam desestimulados a continuar gerando mais e mais poluição.
A adoção desse princípio, segundo ANTONIO HERMAN BENJAMIN[19], “é fazer com que os custos das medidas de poluição do meio-ambiente – as externalidades ambientais (conjunto de efeitos indesejáveis inerentes à produção) – repercutam nos custos finais de produtos e serviços cuja produção seja na origem da atividade poluidora”.
E por isso, o princípio do poluidor-pagador não se reveste apenas desse caráter repressivo de penalização. Ao fundo, o que desejou o legislador foi promover o desestímulo à atividades poluidoras, através da adoção de medidas preventivas.
Já o princípio do usuário-pagador, de concepção mais moderna, estabelece que os recursos naturais devem estar sujeitos à aplicação de instrumentos econômicos para que o seu uso e aproveitamento se processem em benefício da coletividade, definindo valor econômico ao bem natural. A apropriação desses recursos por parte de um ou de vários entes privados ou públicos deve favorecer à coletividade o direito a uma compensação financeira.
É importante salientar que o princípio usuário-pagador estabelece a possibilidade de cobrança por todas essas formas de uso e aproveitamento, sem questionar se essa cobrança é necessária ou desejável. Caberá à sociedade arcar com um custo extra, apenas pelo fato de dispor de água. Nesse sentido, de forma interessante, ANA CLAUDIA BENTO GRAF dispõe que “no que tange à cobrança da água, provavelmente a maioria das pessoas desconhece que o valor pago ao fim de cada mês à companhia de saneamento refere-se ao tratamento e à distribuição da água e à coleta de esgoto, e não ao uso do líquido em si, que ainda é de graça.”[20]
Assim, além da cobrança pelo tratamento e distribuição da água, conforme aplicada hoje em dia, é prevista uma cobrança extra, cujos recursos deverão ser empregados única e exclusivamente em obras capazes de reverter o processo degradativo dos rios e cobrir uma área cada vez maior dotada de completa infra-estrutura no que tange ao saneamento básico.

3.2 A DESCENTRALIZAÇÃO NA COBRANÇA DOS RECURSOS HÍDRICOS.
3.2.1 As Bacias Hidrográficas, os Comitês de Bacia Hidrográfica e as Agências de Água

Prevista na Lei 9.433/97, os recursos hídricos serão geridos de forma descentralizada e participativa, através das bacias hidrográficas.
A bacia hidrográfica pode ser conceituada, de forma clara e precisa, segundo o Dicionário Ambiental da ONG Universidade da Água[21], que aduz:
Conjunto de terras drenadas por um rio principal e seus afluentes. A noção de bacias hidrográfica inclui naturalmente a existência de cabeceiras ou nascentes, divisores d'água, cursos d'água principais, afluentes, subafluentes, etc. Em todas as bacias hidrográficas deve existir uma hierarquização na rede hídrica e a água se escoa normalmente dos pontos mais altos para os mais baixos. O conceito de bacia hidrográfica deve incluir também noção de dinamismo, por causa das modificações que ocorrem nas linhas divisórias de água sob o efeito dos agentes erosivos, alargando ou diminuindo a área da bacia.

Para ANTUNES[22], a Política Nacional de Recursos Hídricos rompe com a antiga e errônea concepção de que os problemas referentes aos Recursos Hídricos podem ser enfrentados em desconsideração das realidades geográficas, sendo a gestão por bacias o fundamento para se atingir um padrão aceitável dos recursos hídricos.
Com razão. Em virtude da extensão continental do território brasileiro, é praticamente impossível gerenciar os recursos hídricos de maneira centralizada, devido às características específicas de cada bacia, englobando as comunidades que ali vivem, suas condições econômicas e sociais.
Sobre a descentralização, ANTUNES nos ensina que “a adoção da gestão por bacias é um passo fundamental para que se consiga um padrão ambientalmente aceitável para os nossos recursos hídricos. Igualmente relevante é a adoção do critério de que a gestão dos recursos hídricos é um elemento de interesse de toda a sociedade e que, portanto, somente em ações conjuntas é que se conseguirá obter resultados favoráveis.”[23]
Dessa forma, mostra-se necessário a implantação de políticas conjuntas entre diferentes municípios ou Estados, passando a vigorar um meio-termo na administração da bacia hidrográfica, pois nem o poder público, tampouco o setor privado, deterá o controle total sobre aquele conjunto hídrico.
Para regulamentar a cobrança pelo uso da água, o governo criou, no ano de 2000, através da Lei 9.984, a Agência Nacional de Águas, autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, que tem como um de seus objetivos implantar Comitês de Bacias Hidrográficas, para em conjunto com estes, aprovar o plano de recursos hídricos da bacia hidrográfica e acompanhar a sua execução, bem como decidir sobre os valores e formas de aplicação dessa cobrança, levando-se em consideração os aspectos de cada bacia.
Os Comitês de Bacia Hidrográfica nada mais são que órgãos formados por uma ou mais bacias hidrográficas contíguas, ou apenas parte de uma delas, as chamadas sub-bacias.
Compõem-se os Comitês por representantes da União, do (s) Estado (s) onde se localizar (em) a (s) bacia (s), ou o Distrito Federal, se for o caso, e ainda de representantes dos municípios envolvidos, dos usuários e entidades civis que atuem na gestão de recursos hídricos naquela região.
Os objetivos dos Comitês são gerenciar as bacias hidrográficas que o compõem, dirimindo conflitos, fixando a divisão dos recursos obtidos com a cobrança e propondo sugestões às instâncias superiores relativas à política de recursos hídricos.
Já as Agências de Água, segundo dispõe o artigo 41 da Lei 9.984/2000, “exercerão a função de secretarias executivas dos comitês de bacias hidrográficas”, tendo por missão desenvolver atividades de cunho técnico especializado, a fim de efetivar as deliberações dos comitês, encaminhando-lhes a classificação dos corpos d´água nas classes de uso e propondo-lhes os valores a serem cobrados e aplicados após sua arrecadação.
Percebe-se, portanto, que sem o trabalho conjunto entre a Agência de Águas, a cobrança pelo uso da água e, por conseqüência, a gestão sustentável dos recursos hídricos não logrará êxito, pois é através da agência que se obterá todo os dados e suporte técnico de que necessita o Conselho de Bacia.

3.2.3 A Administração dos Recursos Arrecadados

Os recursos obtidos com a cobrança pelo uso da água deverão reverter à própria bacia hidrográfica arrecadante. Afinal, O artigo 22, da Lei das Águas dispõe:
“Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de seus recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia em que forem gerados.
I- No financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos;
II- no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
§ 1º A aplicação nas despesas previstas no inciso I deste artigo é limitada a sete e meio por cento do total arrecadado.
§ 2º Os valores previstos no caput deste artigo poderão ser aplicados a fundo perdido em projetos e obras que alterem, de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e o regime de vazão de um corpo de água”.

Os incisos do citado artigo mostram que o objetivo dessa aplicação é financiar estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos, bem como suprir despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Portanto, deverá haver uma fiscalização do próprio Comitê de Bacia, especialmente através da categoria representativa da comunidade, a fim de garantir a correta aplicação desses recursos, para que não sejam desviados para os cofres públicos sem a contraprestação, o que caracterizaria a cobrança como verdadeiro imposto.

3.3. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DO VALOR DA COBRANÇA

A cobrança pelo uso da água não poderia ser instituída sem antes ser esclarecida, de maneira minuciosa, a forma como será fixada o valor desse preço público. Não é justo que alguém, por exemplo, que devolva à natureza 1 litro de esgoto residencial pague o mesmo que alguém que devolva a mesma quantia de água contaminada com perigosos agentes químicos de uma indústria. Além disso, principalmente em regiões industriais, onde a água geralmente é captada diretamente do rio e o tratamento é realizado pela própria empresa, há um custo maior por aquela que capta a água em um ponto posterior do rio que aquela que capta o líquido logo no início, em razão da seqüência de poluentes despejadas ao longo do curso d´água, devendo aspectos como esse também ser levado em consideração na fixação do preço.
De maneira geral, o artigo 21 da Lei das Águas dispõe sobre os critérios que levam ao valor da cobrança:
Para a fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros: I- nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação; II- nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxicidade do afluente.
Desta forma, portanto, o legislador deixou para regulamentação posterior a definição dos valores a serem cobrados, e este atraso vinha contribuindo para a não aplicação do instrumento em todo o território nacional desde a Lei 9.433/97.
Em 2000, com a instituição da Agência Nacional de Águas, através da Lei 9.984, a questão foi regulamentada, cabendo à autarquia, nos termos do seu artigo 4º, inciso VI, “elaborar estudos técnicos para subsidiar a definição, pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, dos valores a serem cobrados pelo uso de recursos hídricos de domínio da União, com base nos mecanismos e quantitativos sugeridos pelos Comitês de Bacia Hidrográfica, na forma do inciso VI do artigo 38 da Lei n. 9.433, de 1997”.
Em 2002, foi editada a Resolução 21, criando-se a Câmara Técnica Permanente de Cobrança pelo Uso de Recursos Hídricos. Dentre suas tarefas, destacam-se as de propor critérios gerais de cobrança e diretrizes para a otimização dos procedimentos entre as instituições responsáveis pela cobrança, e analisar as ferramentas e valores de cobrança sugeridos pelos Comitês de Bacia Hidrográfica.

3.4 A PARTICIPAÇÃO DECISIVA DA SOCIEDADE

Questão fundamental que se estabelece em relação à cobrança pelo uso da água e a fixação do preço público é em relação à ativa participação da sociedade, não só como fiscal dos planos de recursos hídricos a se estabelecerem, mas principalmente, como sujeito ativo fundamental para expor à Câmara Técnica Permanente de Cobrança pelo uso de Recursos Hídricos e ao próprio Comitê de Bacia Hidrográfica as necessidades, as prioridades e demais opiniões da própria comunidade que deverão ser levados em consideração nos critérios de cobrança a serem estabelecidos.
A agenda 21, em especial seu Capítulo 18.20, ressalta a importância da participação da sociedade para o sucesso do gerenciamento dos recursos hídricos, através do comprometimento do governo com essa efetivação, a ser realizado por programas de conscientização, formação de gerentes dos recursos hídricos em todos os níveis, formação adequada dos profissionais necessários e partilha de conhecimento e tecnologia adequados.
Como o Comitê de Bacia Hidrográfica deve ter representantes da sociedade civil, não se pode deixar essa parte enfraquecida, para que seja de certa forma manipulada pelos interesses dominantes, tornando-se letra morta os objetivos traçados na Lei das Águas de 1997.
O Poder Judiciário e o Ministério Público ocupam um espaço muito importante na preservação da participação popular na atuação junto aos Comitês, através das audiências públicas, bem como pela defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, missão institucional do Ministério Público.

3.5 A QUESTÃO DA EFETIVIDADE DA INSTITUIÇÃO DA COBRANÇA E OS EXEMPLOS NO BRASIL E NO MUNDO

Parece que a solução para a questão da água e recursos hídricos foi encontrada. Na teoria, pode-se afirmar a esse respeito. Entretanto, muito há que ser feito para que a cobrança seja instituída em todo o território nacional, passando-se a produzir os resultados almejados na Constituição Federal e na Lei 9.433/97, quais sejam, a proteção dos recursos hídricos e a promoção do desenvolvimento sustentável.
Primeiramente, nos dizeres de ONISHI e NAPOLITANO[24], será necessário fazer a revisão do cadastro de usuários, criando-se uma fonte de dados primários, indispensáveis para o planejamento e gestão, tanto da demanda, como da oferta de água, numa determinada bacia hidrográfica.
Esse, sem dúvida, é o passo fundamental para tornar possível dimensionar valores da cobrança, pois é através de um cadastro que se obterá informações sobre cada contribuinte, o uso que faz da água e quantidades médias utilizadas ou poluídas.
A partir daí, surgem outras questões que devem também ser analisadas, como a forma de participação da sociedade nos comitês, de fundamental importância, para que sejam democraticamente escolhidos representantes dos interesses reais da comunidade. Além disso, tem-se que estabelecer os percentuais a serem aplicados em cada setor determinado na bacia hidrográfica.
Enfim, inúmeros trabalhos devem ser realizados para tornar clara essa política de cobrança, diminuindo as controvérsias existentes em diversos setores que temem a utilização dessa ferramenta econômica, para que não seja um meio de apenas engordar os cofres públicos, como se fornecesse uma resposta enganosa à população em relação à proteção dos recursos hídricos, o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida àqueles que necessitam.
No Brasil, segundo informações de CARLOS JOSÉ SALDANHA MACHADO[25], desde os anos 90 são feitos estudos para a implementação da cobrança nas bacias hidrográficas do alto Tietê, do Piracicaba e da Baixada Santista, no Estado de São Paulo, do alto Iguaçu, no Paraná, e do Paraíba do Sul, envolvendo os três maiores Estados da região Sudeste .
Além de São Paulo, o Estado do Ceará também já possui um sistema descentralizado de planejamento que pode ser considerado avançado, com a instituição da cobrança pelo uso da água. LUIZ GABRIEL TODT DE AZEVEDO e ALEXANDRE MOREIRA BALTAR[26], sobre as conseqüências positivas da aplicação dos preceitos contidos na Lei das Águas nestes Estados, constatam reflexos no fortalecimento no gerenciamento dos recursos, ampliação da participação dos usuários, investimentos em programas de educação para conservação da água, aumentando o nível de conscientização da comunidade sobre os problemas do setor hídrico.
Recentemente, no Rio de Janeiro, a Lei 4.247, de 16.12.2003, dispondo sobre a cobrança pela utilização dos recursos hídricos, já vem sendo aplicada. Entretanto, a Confederação Nacional das Indústrias já ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade[27], em razão da mencionada lei não ter instituído um sistema integrado de cobrança, nos moldes preconizados pela Lei das Águas, através de bacias hidrográficas e participação ativa de diversos setores, tampouco ter definido os critérios para instituição do preço público a ser pago, mas tão somente utilizado os mesmos da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul.
E por fim, no Paraná, a partir de fevereiro de 2007, a cobrança também será implementada, inicialmente na Bacia do Rio Jordão, na região de Guarapuava, segundo informações da Superintendência de Desenvolvimento de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental (Suderhsa), responsável pelo gerenciamento do plano estadual de recursos hídricos.

4 CONCLUSÃO

Depreende-se que a água, especialmente aquela que necessitamos, a doce, virou tema estratégico a ser tratado internacionalmente. Sua escassez e demanda invocaram o engajamento de diversos países e a conseqüente adoção de instrumentos eficazes para combater seu desperdício e poluição, assegurar sua contínua existência e promover o tão sonhado desenvolvimento sustentável. Dentre eles, encontra-se a cobrança pelo uso da água.
No Brasil, o gerenciamento dos recursos hídricos conforme preconiza a Lei 9.433/97 e pelo que dispõe a Agência Nacional de Águas parece muito interessante no que tange à sua inteligência na preservação desses recursos. Entretanto, a gestão ainda não se encontra efetivada de forma ampla, salvo algumas regiões, pois existem muitos obstáculos para a implementação de uma gestão descentralizada, participativa e cristalina. Com isso, a eficácia da cobrança pelo uso da água ainda é dúvida existente para muitos setores, que temem tornar-se esse pagamento mais um mero imposto, sem a devida contraprestação para as próprias bacias hidrográficas, o que em muito contribuirá para o desenvolvimento social e econômico da região em que for aplicada.
Mesmo assim, apesar das dúvidas e divergências, parece não haver melhor saída. A cobrança é uma realidade e tornou-se indispensável se quisermos garantir às futuras gerações a utilização de água de qualidade e um meio ambiente saudável e protegido.
Aliás, vários são os exemplos em que o pagamento de um preço pelos usuários de determinado serviço promove uma significativa melhoria na sua qualidade. Um deles é o pedágio, independentemente do valor do preço que não cabe aqui discutir.
Isso faz-nos remeter à idéia de que o Estado Brasileiro não tem capacidade, no estágio atual, para administrar toda a sua casa, por diversos fatores, como falta de pessoal, desvio de verbas e até o próprio desconhecimento. Por isso a gestão descentralizada e participativa dos setores produtivos e comunitários tende a ser a melhor opção, juntamente com a cobrança, pois assim haverá recursos específicos, mais difíceis de se “perderem”, para serem aplicados.
Colocar em prática a cobrança pelo uso da água significará a criação de milhares de postos de trabalho, nos mais variados setores, especialmente no de obras e administrativo, em um país que detém uma elevadíssima taxa de desemprego. E isso sem aumentar a folha de pagamento do governo, eis que a manutenção salarial de todo o quadro funcional correspondente a cada bacia hidrográfica poderá ser feita com parte dos próprios recursos obtidos com a cobrança.
Para finalmente concluir, deixamos o seguinte comentário, proferido pelo jornalista Silvestre Gorgulho, criador do Jornal A Folha do Meio Ambiente, sobre a cobrança dos recursos hídricos:
“Será que a melhor coisa que se fez na gestão dos recursos hídricos no Brasil - os usuários pagam pelo uso da água e vão receber de volta o dinheiro arrecadado em investimento sustentável na sua bacia hidrográfica, vai acabar? Será que o contingenciamento dos recursos arrecadados pelos comitês de Bacia vai ajudar a fazer o superávit do Tesouro e só pagar os juros dos banqueiros? Gostaria, sinceramente, de não ver um retrocesso destes no meu País.”[28]

Mesmo que a previsão exposta acima, infelizmente, venha a se realizar, de alguma forma, pois vivemos num país no qual a política cede cada vez mais frente a interesses exclusivos de pequenos grupos dominantes, em detrimento do bem comum, mantemo-nos sonhadores, esperando que todo esse sistema de gestão seja posto em prática, tão somente da maneira preceituada pela legislação, como deve ser.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
EMBRAPA. Atlas do meio ambiente do Brasil. Terra Viva, 1992.
BRASIL. Decreto 24.463, de 10 de julho de 1.934. Institui o Código de Águas.
BRASIL. Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1.997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal.
BRASIL. Lei 9.984, de 17 de julho de 2.000. Dispõe sobre a criação da Agência Nacional de Águas - ANA, entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, e dá outras providências.
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO. (1992: Rio de Janeiro). Agenda 21. Curitiba: IPARDES, 2001.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
FREITAS, Vladimir Passos. Direito Ambiental em Evolução. Vol. 3, Curitiba: Juruá, 2002.
GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito das Águas: Disciplina Jurídica das águas Doces. São Paulo: Atlas, 2001.
GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direto de águas e meio ambiente. São Paulo: Ícone, 1993.
INTERFACES DA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS: DESAFIOS DA LEI DAS ÁGUAS DE 1997. Héctor Raúl Muñoz (org.). 2 ed. Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos, 2000.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MAGNOLI, Demetrio. ARAUJO, Regina. Geografia: paisagem e território: geografia geral e do Brasil. São Paulo: Moderna, 1993.
MARÉS DE SOUZA FILHO. Carlos Frederico. Bens Culturais e Proteção Jurídica. Porto Alegre: UE, 1997.
ESMPU-Escola Superior do Ministério Público da União. Meio Ambiente: Grandes Eventos. Brasília, 2004.
PETERS, Edson Luiz. LARA, Paulo Tarso. Legislação Ambiental Federal. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2002.
Revista CEJ/Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários. Ano IV, dezembro de 2000.
Revista de Direito Administrativo 185/41-62, jul-set., 1991.
Revista de Direito Ambiental 25. RT, São Paulo, 2003.
Revista New Scientist, edição de 07 de setembro de 2002.
SOUZA, Renato Santos. Entendendo a questão ambiental: temas de economia, política e gestão do meio ambiente. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio-Ambiente: Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.
Vamos Cuidar do Brasil: Deliberações da Conferência Nacional do Meio Ambiente e da Conferência Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente. Ministério do Meio
Ambiente, 2003.

Notas:
[1]Disponível em: . Acesso em 12 de dezembro de 2007.
[2]EMBRAPA. Atlas do meio ambiente do Brasil. Terra Viva, 1992.
[3]Disponível em: . Acesso em 10 de dezembro de 2007.
[4]GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direto de águas e meio ambiente. São Paulo: Ícone, 1993, p. 17.
[5]GRANZIERA, Maria Luiza Machado. A Cobrança pelo Uso da Água. In: Revista CEJ/Conselho da Justiça Federal, cit., p. 71-74.
[6]Conforme redação dos artigos 2º e 10 do diploma legal:
“Art. 2º. Os recursos hídricos não são inesgotáveis. É necessário preserva-los, controla-los e, se possível, aumenta-los.
Art. 10. A água é um patrimônio comum, cujo valor deve ser reconhecido por todos. Cada um tem o dever de a economizar e a utilizar com cuidado”.
[7]GRANZIERA. Direto de águas..., op. cit., p. 73.[8]“Art 4º - A Política Nacional do Meio Ambiente visará:
(...)
VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.”
[9]MARÉS DE SOUZA FILHO. Carlos Frederico. Bens Culturais e Proteção Jurídica. Porto Alegre: UE, 1997. p. 16.
[10]FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 121 e 132.
[11]Id.
[12]Ibid., p. 55.
[13]MACHADO, op. cit., p. 423.
[14]Ibid., p. 428.
[15]Ibid., p. 472.
[16]Conforme redação de seus artigos, verbis:
Art. 23.É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
VI- Proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
IX- Promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
VI- florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição.
[17]GRAF, Ana Cláudia Bento. Água, Bem mais Precioso do Milênio: o Papel dos Estados. In: Revista CEJ/Conselho da Justiça Federal, cit. p. 30-39.
[18]ANTUNES, op. cit., p. 600.
[19]BENJAMIN, Antonio Herman V. O princípio poluidor-pagador e a reparação do dano ambiental. Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. Apud: Annelise Monteiro Steigleder. In: Revista de Direito Ambiental 25. RT: São Paulo, p. 228.
[20]GRAF, op. cit., p. 30-39.
[21]Disponível em: . Acesso em 27 de agosto de 2005.
[22]ANTUNES, op. cit., p. 596.
[23]Id.
[24]ONISHI, Emilio Yooiti, e NAPOLITANO, Maria Christina. Política de Recursos Hídricos e Indústrias: A Questão da Cobrança – responsabilidade ambiental compartilhada e atendimento a interesses patrimoniais individuais, coletivos e difusos. In: Interfaces da Gestão dos Recursos Hídricos, cit., p. 341-358.
[25]MACHADO, Carlos José Saldanha. O Preço da Água. In: Revista Ciência Hoje, vol. 32, nº 192.
[26]AZEVEDO, Luiz Gabriel Todt de. BALTAR, Alexandre Moreira. Nota Técnica sobre a Atuação do Banco Mundial no Gerenciamento de Recursos Hídricos no Brasil. In: Interfaces da Gestão dos Recursos Hídricos, cit., p. 58-71.
[27]ADIN 3336, cujo relator é o Min. Menezes Direito, aguardando julgamento.
[28]Disponível em: . Acesso em 15 de janeiro de 2008.
Autor: helder wilhan blaskievicz


Artigos Relacionados


EstratÉgias E Subsidios Para A SensibilizaÇÃo Da Sociedade Para O Uso Racional Da Água

Qual A Importância Dos Recursos Hídricos?

CobranÇa Da Água: Investimento Para O Futuro SustentÁvel Dos Recursos HÍdricos

22 De Março - Dia Mundial Da Água

Gerenciamento De Recursos Hídricos

Água Nossa De Cada Dia

A ImportÂncia Da Bacia HidrogrÁfica Como Unidade De Planejamento Para GestÃo Ambiental Integrada