O Corpo Liberto - (do Livro: ‘contos, Encantos E Desencontros’)



"A poucos é dado o diadema da liberdade plena. Os espíritos errantes são a maior repulsa à sociedade organizada, por enfrentarem os seus ditames sem pudor ou medo; por aceitarem a única regra de que viver é preciso, da forma e intensidade que o momento exige."

Existiu um homem, a quem chamaremos apenas Corpo, que enfrentou todas as normas, todos os desígnios sociais, todo o tolhimento familiar, e se foi. Abandonou furtivamente a mansarda ígnea de seu passado e decidiu realizar o sentido pleno de uma palavra absolutamente simples, mas que os homens teimam, insistentemente, em tornar por demais complicada: viver. Viver da forma mais completa e livre como a poucos, muito poucos é dado fazer.

"É preciso singrar todas as estradas", e assim foi feito.

Não havia, decerto, cidades ou vilas por onde o Corpo não tivesse passado, ainda que não na presença física, mas por sua afamada história que percorria, deliciava, aterrorizava e enfeitiçava os escravos da quietude fleumática.

Era o pesadelo dos pais e o mais belo devaneio da filhas – e de algumas de suas mães, quiçá das mães de suas mães também.

Era, tão somente, a roupa velha que trajava, a embriaguez descalça e o descansar no orvalho. Era o suicídio dos poetas e o vociferar do descontentamento ético.

Era a desavença em algum bar profano, que chegava mesmo às vias de fato, e a voz a apaziguar contendas.

Vivia jogado em ruas torpes, submundo citadino, e também em lares doces no aconchego compassivo do interior rural. Aprendia ofícios, desprezava trabalhos. Amava de todas as formas e tantos amores quanto possíveis. Amava, essencialmente, a vida, em todas as suas faces e matizes. Amava cada respiro, cada suspiro, cada suor e cada cataclismo provenientes de seu corpo, provenientes de corpos alheios, provenientes de um só corpo quando se mesclava ao seu, um alheio. Corpos por vezes plenos e ternos, que chegavam a colocar em xeque a sua postura nômade e escorregadia; outros, lascivos, sujos, (até nojentos), que o insuflavam ao vinho e à fuga. O certo é que nunca, em nenhuma hipótese, abstinha-se de amar.

Se preciso fosse comer, biscateava em recôndito qualquer o seu alimento. Se preciso fosse sonhar, sorvia o mais puro absinto e delirava nos mais inocentes contos que sua mente pudesse conceber. Se preciso fosse cair em desespero, pelo fato de, apesar de tudo, pertencer à raça humana, lançava-se incontinente rumo ao desconhecido, esquecendo-se de onde havia estado, não remoendo qualquer desprazer momentâneo, auscultando o seu instinto cigano que jamais se rendeu ao descanso que, para muitos, perfaz-se em uma bênção – não para ele, o Corpo.

Poderia partir para o pior dos mundos, o mais obscuro e infernal deles, que ao Corpo seria diáfano e paradisíaco somente pelo fato de ser novo.

Mas não nos enganemos, caros amigos, pois momentos houve em que a memória lhe fincava dardos venenosos no coração posto que os homens, por mais que se sejam animais, sentem-se, muitas e muitas vezes, como plantas que necessitam de raízes para permanecer fincados à terra e dela retirar a sua energia vital. Porém, o Corpo deslizava do Zênite ao Nadir num piscar de olhos, num vislumbrar onírico, numa embriaguez de espírito,.numa necessidade desconhecida e tenaz que o fazia estar sempre pronto a desbravar as florestas da inovação com a ansiedade pueril e descuidada dos impulsos juvenis.

Desse modo permaneceu durante muito tempo. Tempo demais para uma só vida. Um tempo que não deve ser contado para não submeter à loucura os relógios da simplicidade rotineira pertencentes aos espíritos comuns. E assim foi ele... até a chegada na cidade mágica, último refúgio dos sonhadores, destino último do trem da vida: A cidade mágica. Caminhava lentamente ao seu encontro com anelo indescritível. Devagar, devagar... ia se chegando a ela.

Ah! Ali, enfim, poderia terminar seus dias em paz, aos pés de ninfas cheirando à almíscar e de papoulas que entorpeciam o ar num estupendo aroma de felicidade surreal e duradoura, inefavelmente etérea, infalivelmente eterna.

Correu o lenço umedecido pela ainda bela fronte do Corpo. Suspiros lhe vinham ao peito e, em meio aos derradeiros delírios febris, a taverneira, que já o vira antes em algum sítio desconhecido qualquer, murmurou: "pobres dos pássaros humanos que tão jovens vêm a fenecer; a necessidade de voar é uma enfermidade louca que acomete alguns espíritos levianos e desiguais; morra, pois, aos cuidados de uma taverneira promíscua, que a mulher que haveria de enraizar-te ao peito, acorrentar-te o coração e te cuidar o sangue não existe neste mundo; do contrário, encontrá-la-ia em algum canto do universo que ousaste, como poucos, dissecar. Tal ninfa provavelmente está, agora, aguardando-te junto a uma fonte cristalina. Maravilhosa fonte que atravessa um campo puro a alicerçar uma cabana rústica. E esta te servirá, para todo o sempre, de refúgio para descansar a tua vida errante."

O Corpo arfou, febril, e lançou um último suspiro, arqueando a boca como que parecendo rir. Em seguida, morreu em paz. Amém.


Autor: Luiz Francisco Ballalai Poli


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