Os Rumos Da Responsabilidade Civil No Novo Código



1. Introdução

A codificação realizada no Brasil operava, antes da nossa declaração de Independência (1822), incondicionalmente similar ao corpo normativo vigente em Portugal, o qual foi integralmente transposto para nossa efetiva aplicação.

Com o advento da primeira Constituição brasileira (1824), esta trouxe como prerrogativa a necessidade da organização de um Código Civil, baseado na Justiça e equidade, onde regulasse as relações jurídicas afeitas à natureza privada nacional, uma vez que haviam matérias revogadas na transportada Constituição vigente. No entanto, após exaustivas tentativas para sua implementação, somente em dezembro 1915, o inaugural Código Civil brasileiro teve a sua aprovação.

É preciso contextualizar que as bases do direito de nosso código foram eminentemente patrimonialistas e individualistas, plagiadas do Código de Napoleão, com definidos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, os quais retratavam a franca ideologia liberal daquela sociedade agrária e conservadora. Essa tinha como preocupação antes o "ter" (o contrato, a propriedade) do que o "ser" (direitos da personalidade, a dignidade da pessoa humana). Respaldada pelo ideário iluminista teve seu apogeu na Revolução Francesa, movimento histórico que lhe atribuiu direitos e conquistas os quais se imiscuíram e projetaram-se no direito brasileiro.

No que dizia respeito à responsabilidade civil, esta também expunha seus contornos subjetivistas, cuja verificação da culpa para o saneamento das controvérsias que inauguravam o sistema judiciário era um pressuposto básico, diretamente relacionado com todo o contexto histórico de proteção exacerbada ao patrimônio individual.

2. O Código Civil Brasileiro de 1916

Como bem exposto por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:

"O código marca a tendência ideológica de seu momento, com um fator agravante: sua vocação fagocitária e totalizadora pretende atingir, com plenitude, todas as facetas da complexa e multifacetária cadeia de relações privadas" (Novo Curso de Direito Civil, p.49).

O grande lapso de tempo para elaboração do Código Civil, evidentemente trouxe conseqüências desastrosas no que dizia respeito à regulação das pretensões particulares, pois quando efetivamente começou a viger, 1916, encontrou uma sociedade com propósitos amplamente diversificados àqueles catalogados em suas obsoletas proposições.

O Código Civil já não atendida aos anseios de uma complexa sociedade que não mais se conformava em somente proteger o seu patrimônio. Suas pretensões eram mais amplas e por isso reivindicavam segurança nas resoluções de seus conflitos, intensificados na medida em que as relações de consumo se estabeleciam, trazendo consigo divergências, dentre outras, acerca das responsabilidades subjetivas imputadas, que careciam de soluções atuais urgentes, não insertas no diploma legal autorizado para tal fim.

A responsabilidade civil subjetiva, praticada desde então, teve que sofrer consideráveis mutações para satisfazer a reparação dos danos àqueles prejudicados em seus direitos. O ritmo frenético da revolução industrial fez surgir implicações trabalhistas cujas soluções não apresentavam um parâmetro equânime de Justiça ao empregado diante do empregador, o qual, em virtude de sua hipossuficiência, deixava de apresentar as provas exigidas para a configuração da culpa de seu patrão. Com isso, desatendida ficava a sua pretensão e suplantado o seu próprio direito.

Esta preocupação latente impulsionou a transformação da responsabilidade civil, que passou a não mais observar com rigorismo essa prova, facilitando o acesso à justiça, o que resultou num contingente significativo de novos processos judiciais.

3. A incompatibilidade do vigente código civil de 1916 com a insurgente sociedade:

"O código civil, bem se sabe, é fruto de doutrinas individualistas e voluntaristas que consagradas pelo Código de Napoleão e incorporadas pelas codificações do séculi XIX, inspiraram o legislador brasileiro quando, na irada do século, redigiu o nosso código civil de 1916. Aquela altura o valor fundamental era o indivíduo. O direito privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuação de sujeitos de direito notadamente o contratante e o proprietário,os quais, por sua vez, a nada aspiravam senão ao aniquilamento de todos os privilégios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade sem restrições ou8 entraves legais. Eis a filosofia do século XIX, que marcou a elaboração do tecido normativo consubstanciado no Código Civil." (Tependino, p.2, 2002).

Uma pluralidade de fatores econômicos/sociais/políticos tais como o citado processo de industrialização e os crescentes movimentos sociais a partir do século XIX, transformou àquela sociedade, apresentando-se, agora, com um novo modelo de Estado, mais amplo no que dizia respeito ao seu campo de atuação, trazendo, como conseqüência, a restrição à autonomia privada pelo dirigismo contratual. A redimensionalização do direito civil codificado fez-se inevitável.

Surgiram, desta maneira, leis extravagantes com o escopo de ampliar disciplinas do código civil, a exemplo do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), Código de Defesa do Consumidor(1991), Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977), Reconhecimento dos filhos adulterinos (Lei 883/1949) dentre outros, atuais e adequadas à realização de satisfações pessoais, com o escopo de regular setores não disciplinados no Código, embora vigesse o princípio da superioridade do Código Civil, diante de todos esses institutos.

O professor GUSTAVO TEPENDINO, em sua obra Temas do Direito Civil, com muita propriedade, assim classificou esse período:

"Pode-se registrar assim uma segunda fase no percurso interpretativo do Código Civil, em que se revela a perda de seu caráter de exclusividade na regulação das relações patrimoniais privadas. A disciplina codificada deixa de representar o direito exclusivo, tornando-se o direito comum, aplicável aos negócios jurídicos em geral. Ao seu lado situava-se a legislação extravagante que, por ser destinada a regular novos institutos, surgidos com a evolução econômica, apresentava características de especialização, formando por isso mesmo um direito especial paralelo ao do direito comum, estabelecido pelo Código Civil."

Muito embora as relações sociais efervescessem, a responsabilidade inserida naquela codificação civil fora abordada de forma sucinta, onde a culpa era seu pilar e fundamento (responsabilidade subjetiva).

4. A Constituição de 1988 e os reflexos de constitucionalização do direito civil

A Constituição Federal de 1988 ao incorporar a concepção de Estado Democrático de Direito trouxe em seu bojo a inserção de relevantes princípios, a exemplo da dignidade da pessoa humana, art. 1º, além de normas que restringiam a autonomia privada, bem como a introdução de deveres sociais às suas atividades econômicas.

Para que não se ferissem esses princípios e normas constitucionais, que representam a lei maior de um sistema normativo, o Código Civil, assim como as suas leis especiais, agora um vasto arcabouço descentralizado, deveriam ser conjuntamente interpretados à luz dos preceitos fundamentais da Carta Magna.

Era preciso que estes sistemas paralelos se unificassem e a Constituição de 1988, expressão escrita da vontade estatal, constitucionalizou o direito civil com seus princípios informadores da valorização existencial da pessoa humana, fazendo com que este revisse os seus parâmetros e valores, deslocando-o do pólo outrora eminentemente individualista, para a igualdade substancial.

José Giordani, assim definiu esse período:

"Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 erigiu como fundamento da República a dignidade da pessoa humana. Tal opção colocou a pessoa como centro das preocupações do ordenamento jurídico, de modo que todo o sistema que tem na Constituição a sua orientação e o seu fundamento se direciona para a sua proteção. As normas constitucionais (compostas de princípios e regras) centradas nessa perspectiva conferem unidade sistemática a todo o ordenamento jurídico."

Estávamos em um novo momento político, e o estado democrático de direito instalado despontava com o firme propósito de assegurar os direitos do homem e do cidadão. Neste contexto não havia mais que se falar em direito público direito privado, visto que a Constituição, soberana a todo o ordenamento jurídico, elegeu a dignidade da pessoa humana ao seu mais alto patamar, devendo, por isso, receber a proteção do direito.

Com o poder de síntese que lhe é peculiar, Cristiano Chaves, para nosso melhor entendimento, desenhou esse novo panorama na obra Redescobrindo as fronteiras do Direito Civil - uma viagem na proteção da dignidade da pessoa humana:

"Bem-vindos ao novo direito civil, construído a partir da legalidade constitucional, cujo olhar se volta para a proteção da pessoa humana, e não mais para o seu patrimônio."

O posicionamento subjetivista do Código Civil de 1916 não mais se sustentava, pois as novas situações ensejadas pelo progresso científico e pela explosão demográfica demonstravam sinais de falência, exigindo uma nova concepção de responsabilidade civil.

Muitas situações careciam de soluções satisfatórias no que dizia respeito à reparação à vítima, a qual, nem sempre conseguia reunir provas convincentes ao Juízo acerca da veracidade dos fatos. A reformulação do código civil, desta maneira, tornou-se imperiosa, exigindo fosse feita nova releitura de seus preceitos à luz dos princípios da Constituição Federal.

Houve transformações significativas no que se refere à ampliação da justiça social.

A responsabilidade civil oriunda do descumprimento de uma obrigação tendo como finalidade precípua mais a prevenção do que a reparação do dano sofrido, em virtude dos constantes e novos fatos sociais, deu ensejo a soluções onde a responsabilidade civil subjetiva com culpa presumida (embora não suplantando a original responsabilidade subjetiva) deixava de atender uma parcela significativa da sociedade que clamava justiça a seus danos pessoais.

Nas demandas judiciais apresentadas de então, a vítima não havia mais que provar a culpa do ofensor, invertendo-se a este o ônus da prova. No entanto, rapidamente houve o esgotamento da nova sistemática, uma vez que não havia dificuldade por parte daquele que possuía maior poder econômico em livrar-se da prova da própria culpa. A reparação do dano sofrido, diante do novo sistema, mais uma vez deixava a desejar. A afirmação de que o código civil de 1916 não mais se impunha como regulador de uma ordem social privada era incontestável, urgindo uma nova codificação, a qual, sob a hermenêutica principiológica da Constituição Federal, deveria submeter-se a hierarquia formal de seus preceitos. Desta maneira, surgiu a constitucionalização do direito civil.

5. O Código Civil de 2002

O novo Código Civil, publicado no Diário Oficial da União em 11 de janeiro de 2002, era modestamente inovador, visto não haver descartado sua tendência patrimonialista e individualista. No entanto trouxe consigno matérias inéditas tais como a inserção da função social ao patrimônio privado e, sobretudo, a individualização sistemática de capítulo disciplinando a Responsabilidade Civil. Inclusa estava a responsabilidade civil objetiva baseada na teoria do risco, onde o autor da conduta o qual produziu o dano ficava obrigado a repará-lo, independentemente de comprovação de culpa.

Nesse novo modelo havia casos, a critério do poder discricionário do Juízo, em que essa responsabilidade, a princípio subjetiva, merecia uma reforma ex-officio, transformando-se em objetiva, sempre que atendesse aos anseios de justiça social e estivesse fundamentada no risco que a atividade oferecia.

Segundo Cavaliere, a teoria do risco assim se apresenta:

"todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre o culpável responsável, que é aquele que materialmente causou o dano."

Toda inovação tem suas conseqüências, e essas atingiram diretamente os empregadores, os quais se viram obrigados, indistintamente, a prestar indenizações aos empregados que os conduziam à justiça em busca da reparação do dano, sem mais a proteção do conveniente do ônus da comprovação da própria culpa.

Os empregados reclamavam seus direitos os quais o protegiam, inclusive, ao acesso seguro até o local de seu trabalho, pois, não raro, os acidentes de trânsito aconteciam. Cabia-lhes reparação.

Insta salientar que a responsabilidade objetiva posicionou-se além das relações de trabalho, a exemplo dos arts. 187 (abuso de direito), 927 (exercício de atividade de risco ou perigosa), 932 2 933 (responsabilidade pelo fato de terceiro), art. 928 (responsabilidade dos incapazes), dentro outras, como bem asseverou Giordani:

"Pela sistemática do Novo Código, contudo, instituiu-se, ao lado da responsabilidade civil subjetiva, mantida nos arts. 186,187 e 927, caput, a responsabilidade civil subjetiva genérica, baseada no risco criado, pela qual o autor da conduta que produziu o dano ficará obrigado a ressarcir a vítima, independente de comprovação de culpa. Tal preceito legal, portanto, assegura um melhor acesso à justiça, comomedida de cunho democrático, resguardando assim, a dignidade da pessoa humana."

6. Responsabilidade Civil: perspectivas futuristas

A nova modalidade de responsabilidade civil de um lado estendia a justiça no que se referia à reparação de danos, porém, trouxe um grave percalço econômico aos empregadores, os quais avolumavam, em larga escala, as suas impagáveis dívidas diante das incontáveis reparações a serem saldadas.

Necessário se fazia sanear o caos social que se estabeleceu. Atentos a todo esse movimento nossos juristas, na busca incessante da satisfação coletiva, apontavam a socialização dessas indenizações como uma solução plausível, visto que, diluídas por toda a sociedade, conseguiriam atender tanto ao excesso de onerosidade ao encargo daquele que tem o dever de indenizar quanto à segurança do mínimo necessário para quem tem direito a ser ressarcido.

Neste contexto tumultuoso sobressaíram-se os seguros, instrumento de socialização dos riscos àqueles voluntariamente por eles acolhidos. Deste então, passaram a representar solução plausível a todos que exercem atividades de risco e que, fatalmente, não dispõem de recursos para honrar as responsabilidades assumidas diante de incontáveis vítimas carecedoras de suas indenizações.

BIBLIOGRAFIA

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FARIAS. Cristiano. Novo Código Civil. Redescobrindo as Fronteiras do Direito Civil: uma viagem na proteção da dignidade humana.

FARIAS. Cristiano. Direito Civil. Teoria Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

GIORDANI. José Acir. A responsabilidade Civil Objetiva Genérica no Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Lumens Júris, 2004

QUARESMA. Cláudia Martins. Interpretação das Normas Constitucionais nas relações de Direito Civil, 2005

CALIXTO, Marcelo Junqueira. O Código Civil de 2002 e os novos paradigmas do contrato, 2005

STOLZE/PAMPLONA. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo:Saraiva,2003

CAVALIERE. Sérgio. Programa de Responsabilidade. 63. Edição. São Paulo: Malheiros,2005.

TEPENDINO Gustavo. Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de janeiro: Renovar, 2001.


Autor: Sandra Magalhães


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