O poder da linguagem em São Bernardo e Vidas Secas



O PODER DA LINGUAGEM EM SÃO BERNARDO E VIDAS SECAS

Vania Rodrigues dos Santos*
Universidade Presbiteriana Mackenzie

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo estudar o trabalho com a linguagem que o autor Graciliano Ramos desenvolve nas obras São Bernardo e Vidas Secas. Segundo Antonio Cândido, o escritor alagoano realizou uma “progressiva pesquisa da alma humana”; através do suporte da linguagem literária. Assim, os usos da linguagem sertaneja e o homem que habita os distantes sertões são analisados, mostrando o entrecruzamento dialógico com temas universais da literatura, como a análise do homem em seu meio. Além de legitimar a literatura regional, Graciliano Ramos acabar por revelar um Brasil paradoxalmente falho e rico culturalmente.

Palavras-chave: Graciliano Ramos, linguagem, literatura regionalista.

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* Este artigo foi o último capítulo da dissertação O poder da linguagem nas sociedades gracilianas, apresentada para a banca da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em fevereiro de 2008.
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O PODER DA LINGUAGEM EM SÃO BERNARDO E VIDAS SECAS


1. APRESENTAÇÃO:


Segundo Assis Brasil (1969), Graciliano Ramos mostrava “as personagens por dentro”, sendo a análise da personalidade humana uma constante em suas obras. A linguagem em uma de suas manifestações, o diálogo - símbolo da comunicabilidade entre os homens -, assume diferentes funções em diferentes romances do autor:

Em Caetés (1933), João Valério é um “caeté polido” pelas leis sociais e utiliza-se do diálogo como instrumento de sociabilidade.

Em São Bernardo (1934), Paulo Honório tem em seu interior um “caeté vivo” que usa o diálogo como instrumento de dominação, com suas réplicas breves e essenciais.

Em Angústia (1936), Luís da Silva precisa ajustar-se às normas convencionais e ao mesmo tempo seu “caeté interno” se revolta contra tais regras – culminando na morte de Julião Tavares. O diálogo usado por Luís transcende: o mundo e as pessoas são de uma “realidade fantasmal“, nas palavras de Antonio Cândido (1968).

Em Vidas Secas (1938), a falta de um diálogo concreto entre Fabiano e sua família posiciona-os em caráter excepcional: podem ser considerados “selvagens” por não partilharem da linguagem urbana culta, embora pressintam o poder que ela outorga a seus usuários.

Diante de tais caracterizações que levam em consideração o arranjo da linguagem, focalizar-se-ão São Bernardo e Vidas Secas, obras nas quais, em nossa leitura, torna-se instigante discutir os usos sociais da linguagem.
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2. O PODER DA LINGUAGEM EM SÃO BERNARDO

Como a linguagem pode ser vista em São Bernardo? Ao ler a segunda obra graciliana, pode-se observar a linguagem através de vários focos. A sociedade em que Paulo Honório se situa proporciona diversas interpretações sobre o poder da linguagem. Testar-se-á discutir, aqui, algumas delas.

Nas sociedades ocidentais, saber ler e escrever são necessidades básicas para se ter completo acesso a todos os domínios da linguagem, ou seja, para interpretar e enxergar novas perspectivas de mundo. Como o pedagogo Paulo Freire afirma, seria “sinônimo de libertação do homem”1. Em São Bernardo, a necessidade da leitura e escrita para a classe menos privilegiada é questionada:

... No almoço, que teve champanhe, o dr. Magalhães gemeu um discurso. S.
Excia. tornou a falar na escola. Tive vontade de dar uns apartes, mas contive-me.
Escola! Que me importava que os outros soubessem ler ou fossem
analfabetos?
- Esses homens de governo têm um parafuso frouxo. Metam pessoal letrado
na apanha da mamona. Hão de ver a colheita...
(...)... De repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do governador
para certos favores que eu tencionava solicitar.
- Pois sim senhor. Quando V. Excia. Vier aqui outra vez, encontrará essa
gente aprendendo cartilha. (RAMOS, 1997, pp. 42-43).

Paulo Honório, um latifundiário em formação, recebe o governador em sua fazenda. A idéia de uma escola, em primeira instância, não lhe agrada; pois, para ele, os matutos saberem ler, não lhe aumentaria o lucro: “Metam pessoal letrado na apanha da mamona. Hão de ver a colheita...”. Passado alguns instantes, o fazendeiro percebe que a presença de uma escola seria vantajosa, já que “poderia trazer a benevolência do governador para certos favores”. Revela-se, mais uma vez, a visão de que “roceiros” não precisavam do estudo, já que isto não daria lucro aos seus patrões. Além disso, pode-se perceber que ao permitir a escola em sua fazenda, teríamos uma nova hipótese: Paulo Honório poderia “moldá-los” a seu gosto. Como pessoa autoritária que era, manipularia o mestre-escola Padilha para ensinar os matutos a adquirirem as habilidades de leitura e escrita; mas, não a saber usá-la ideologicamente. A instrução, o direito a saber usar a linguagem lendo e escrevendo, como sinônimo de evolução na vida de qualquer pessoa, também é tema questionável entre as personagens de São Bernardo:

E voltei a sentar-me. Acanhado, as orelhas num fogaréu, agarrei-me ao
Hospital de Nossa Senhora da Conceição e ao grêmio Literário e Recreativo,
que levava uma existência precária, com as estantes cheias de traças e
abrindo-se uma vez por ano para a posse da diretoria.
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1 In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
- Que utilidade tem isso?
Azevedo Gondim sentou-se, pouco a pouco serenou:
- É uma sociedade que presta bons serviços, seu Paulo.
- Lorota! O hospital, sim senhor. Mas biblioteca num lugar como este! Para quê? Para o Nogueira ler um romance de mês em mês. Uma literatura desgraçada...
Azevedo Gondim, aferrando-se a uma idéia, gira em redor dela, como peru:
- A instrução é indispensável, a instrução é uma chave, a senhora não
concorda, d. Madalena?
- Quem se habitua aos livros...
- É não habituar-se, interrompi. E não confundam instrução com leitura de
papel impresso.
- Dá no mesmo, disse Gondim.
- Qual nada!
- E como é que se consegue instrução se não for nos livros?
Por aí, vendo, ouvindo, correndo mundo. O Nogueira veio da escola sabido
como o diabo, mas não sabia inquiri uma testemunha. Hoje esqueceu o latim e
é um bom advogado. (Ibidem, pp. 90; 91)

Neste trecho, Paulo Honório conversa com Azevedo Gondim sobre como o casamento entre ele e Madalena é visto pela cidade. Para disfarçar, suas orelhas estavam em “fogaréu”, Paulo Honório começa a travar conversa com Madalena sobre o hospital e o grêmio literário e recreativo. Estabelece-se, aí, uma comparação entre as duas instituições e o fazendeiro acaba por desvalorizar o grêmio: “O hospital, sim senhor. Mas biblioteca num lugar como este! Para quê? Para o Nogueira ler um romance de mês em mês. Uma literatura desgraçada...” Para Paulo Honório, os livros não tinham utilidade prática, como o hospital. A instrução não estaria escrita nos livros, mas no conhecimento empírico; como se pode observar na resposta do proprietário de São Bernardo a Azevedo Gondim em relação à instrução, que para ele se conquista “Por aí, vendo, ouvindo, correndo mundo”. Cita, até mesmo, o advogado Nogueira que após sair da universidade não sabia nada nem mesmo inquirir uma testemunha, e com o tempo e prática esqueceu-se do latim e era um bom advogado. Renova-se a tese de que a leitura de livros, a escrita e aquisição da linguagem através dos estudos são atos
desvalorizados por aqueles que detinham o poder, como Adrião de Caetés, primeira obra do escritor, e Paulo Honório de São Bernardo.


As figuras femininas, também, se tornam ameaçadoras ao obterem o domínio da linguagem em São Bernardo.

Eu narrava o sertão. Madalena contava fatos da escola normal. Depois vinha o
arrefecimento. Infalível. A escola normal! Na opinião do Silveira, as normalistas
pintam o bode, e o Silveira conhece a instrução pública nas pontas dos dedos,
até compõe regulamentos. As moças aprendem muito na escola normal.
Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. Tenho
visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e conduzem um
marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente com as
cortinas cerradas dizem:
-Me auxilia, meu bem.
Nunca me disseram isso, mas disseram no Nogueira, imagino. Aprecem nas
cidades do interior, sorrindo, vendendo folhetos, discursos, etc. Provavelmente
empestam as capitais. Horríveis. (Ibidem, p. 135)

Ser uma normalista não era uma ocupação bem vista por alguns membros da sociedade retratada em São Bernardo, como Silveira e Paulo Honório, pois “as normalistas pintam o bode” e elas “aprendem muito na escola normal”. “Mulheres sabidas” , como o fazendeiro as denominava, não seriam aceitas, pois “chamam-se intelectuais e são horríveis.” Em seu ponto de vista, tais tipos de mulheres se demonstravam independentes, mas, “com as cortinas cerradas”, ou seja, na vida particular, sempre precisavam da ajuda de um homem. Além disso, elas “empestavam as capitais” e eram “horríveis”. Podemos observar que o verbo “empestar” possui conotações negativas tanto como “provocar peste em, infectar-se”; como no sentido figurado de “perverter moralmente, corromper, desmoralizar”. As mulheres que estudavam seriam, então, uma ameaça à ordem estabelecida pelas oligarquias rurais e machistas daquele local; “sorrindo, vendendo folhetos, discursos, etc”, elas poderiam oferecer uma nova visão às outras mulheres e influenciá-las, tornando-se perigosas.

Estudar, ter acesso à leitura e escrita, portanto, não poderiam ser boas opções às camadas inferiores e excluídas da velha oligarquia da cidade de Viçosa – os matutos e as mulheres. O discurso desqualificador do acesso ao aprendizado da linguagem, monopólio da cultura dominante em São Bernardo, sempre se mostrou visível ao leitor através das falas e atitudes de suas personagens de classe mais elevada ou daqueles que as circundam. A voz daqueles considerados menores, como os matutos e as mulheres são quase imperceptíveis. Daí, a sua marginalização.

Como representante dos matutos, temos em São Bernardo, Casimiro Lopes, ajudante fiel que permanece na fazenda, que não dominava a linguagem:


Num feriado de mentira, não tendo podido encontrar gente para tirar baronesas
do açude e brocar um pedaço de capoeira, distraí-me ouvindo Padilha e
Casimiro Lopes conversarem a respeito de onças.
Não se entendem. Padilha, homem da mata e franzino, fala muito e admira as
ações violentas; Casimiro Lopes é coxo e tem um vocabulário mesquinho. Julga
o mestre-escola uma criatura superior, porque usa livros, mas para manifestar
esta opinião arregala os olhos e dá um pequeno assobio. Gagueja. No sertão
passava horas calado, e quando estava satisfeito, aboiava. Quanto a palavras,
meia dúzia delas. Ultimamente, ouvindo pessoas da cidade, tinha decorado
alguns termos, que empregava fora de propósito e deturpados. Naquele dia, por
mais que forcejasse, só conseguia dizer que as onças são bichos brabos e
arteiros.
- Pintada. Dentão grande, pezão grande, cada unha! Medonha!” (Ibidem,
pp. 54 – 55)


Temos a observação do narrador Paulo Honório em relação a dois de seus empregados: Padilha e Casimiro Lopes. Padilha é o mestre-escola e Casimiro uma espécie de capataz. O segundo nutre admiração pelo professor, pois este usa livros. Podemos observar como estes objetos de estudo fascinam àqueles que não têm acesso à cultura letrada: Casimiro acha Padilha uma “criatura superior”. O capataz, como Fabiano2 de Vidas Secas (1938), não tem o conhecimento dos ditos homens estudados e quando ia à cidade, ouvia as pessoas e decorava alguns termos “que empregava fora de propósito e deturpados”. No sertão, ou seja, em seu meio, “passava horas calado, e quando estava satisfeito, aboiava”. Casimiro, então, não era de falar muito – “Quanto a palavras, meia dúzia delas” -; e, é empregando um verbo utilizado para bois, que o narrador o rebaixa mais socialmente: aboiar é conduzir o gado de volta ao seu local; o que parecia acontecer com Casimiro quando seu expediente acabava. Para conversar com Padilha sobre as onças, não articulava um período completo e expressava-se por meio de adjetivações superlativas redundantes e exclamações: “Pintada. Dentão grande, pezão grande, cada unha! Medonha!”. Exemplo de um dos poucos matutos a articularem-se nas obras de Graciliano, Casimiro ilustra a camada social mais baixa que não teve acesso ao aprendizado da linguagem e se porta inferiormente ao seu superior Paulo Honório.

Madalena, outro ser marginalizado, é a professora portadora de ideais socialistas que acaba sendo oprimida pelo discurso onipotente de seu marido Paulo Honório:


Madalena tinha os olhos presos na vela:
- Sim, estive rezando. Rezando, propriamente, não, que rezar não sei. Falta de tempo.

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2 Em Vidas Secas temos a seguinte descrição sobre Fabiano: “Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.” (p.20)

Meu Deus! como andava aquela cabeça! Era a resposta à minha primeira
pergunta.
- Escrevia tanto que os dedos adormeciam. Letras miudinhas, para
economizar papel. Nas vésperas dos exames dormia duas, três horas por
noites. Não tinha proteção, compreende? Além de tudo a nossa casa na
Levada era úmida e fria. No inverno levava os livros para a cozinha. Podia visitar igrejas? Estudar sempre, sempre, com medo das reprovações...
Estava perturbada, via-se perfeitamente que estava perturbada. Largou outras incoerências:
- As casas dos moradores, lá embaixo, também são úmidas e frias... É uma tristeza. Estive rezando por eles. Por vocês todos. Rezando. Estive falando só.
(Ibidem, pp.165; 166 – 168)

Neste trecho, Madalena encontra-se na noite antecedente de sua morte. Paulo Honório está nervoso com sua esposa e encontra-a na igreja. Conversam, mas ela mostra-se distante, recordando fatos passados e conectando-os ao presente vivenciado na fazenda: lembra da época em que estudava e era pobre, pois tinha que escrever “letras miudinhas, para economizar papel” e dormia apenas “duas, três horas por noite”; lembrando-se, ainda, de que sua casa era “úmida e fria” e que “levava os livros para a cozinha”, talvez, para aquecer-se. Casa semelhante aos empregados de Paulo Honório, que “também são úmidas e frias... É uma tristeza...”, diz a professora. Pode-se notar que além de mulher estudiosa, Madalena pode ser classificada como participante da classe média baixa que teve acesso ao conhecimento enciclopédico. Paulo Honório, no entanto, apesar de ter uma origem também humilde, não compartilhava da mesma ideologia da mulher que valorizava o esforço e a busca pelo conhecimento. Tendo sido normalista e pertencido a uma classe social mais baixa, Madalena, ainda, não demonstrava apego a nenhuma religião. Ela dizia não ter tempo para a igreja, pois, tinha que “estudar sempre”. É interessante a menção deste fato pelo narrador que colocava em dúvida a religião de Madalena, por considerá-la uma mulher quase “intelectual”: “Madalena, propriamente, não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros.” (p.135).

Entrei apressado, atravessei o corredor do lado direito e no meu quarto dei com
algumas pessoas soltando exclamações. Arredei-as e estaquei: Madalena
estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da
boca. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração,
parado. Parado.
No soalho havia manchas de líquido e cacos de vidro. (Ibidem, pp.165; 166 –
168)

A segunda transcrição apresenta a opção de Madalena pela autodestruição: ela não é mais uma mulher de classe baixa, pois se casou com um fazendeiro; mantém seus ideais socialistas, mas se vê impotente frente ao meio em que vive. Restam apenas no soalho “manchas de líquido e cacos de vidro” de um relacionamento acabado pelos ciúmes e desentendimentos ideológicos. Dominar a linguagem, saber ler e escrever, não lhe foram suficientes em vida. É assim que a linguagem autêntica de Madalena, com seu ideário humanista, foi silenciada. Como Cândido afirmou em “Os bichos do Subterrâneo” (1978)

“Paulo Honório está habituado às relações de domínio e vê em tudo, quase obsessivamente, a resistência da presa ao apresador; não percebe a dignidade da esposa nem a essência do seu próprio sentimento. Tiraniza-a sob a forma de um ciúme agressivo e degradante; Madalena se suicida, cansada de lutar, deixando-o só e, tarde demais, clarividente.” (p.103)

O fazendeiro, acostumado a exercer domínio sobre tudo e todos, perde Madalena e, na seqüência, a fazenda, os negócios e os animais, ou seja, todo o universo que tentou dominar com mão de ferro. Sua linguagem autoritária e conseqüentes atitudes, assim, anularam tudo o que conquistou. Ironicamente, é através da linguagem que ele vai tentar se refazer, escrevendo sobre sua vida, seus feitos, suas glórias e declínios. Um fazendeiro “versado em estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil” que tem uma nova empreitada: dominar a linguagem e fazer sua própria narrativa. É Paulo Honório que vai domar a linguagem e apresentar seu “drama íntimo”. Sobre a nova ação de Paulo Honório, João Luiz Lafetá (2004) diz

Paulo Honório nasce de cada ato, mas cada ato nasce por sua vez de Paulo Honório. Nós o vemos através das ações, mas, por outro lado, é ele quem deflagra todos as ações. Esse caráter compacto e dinâmico esta ligação íntima entre o homem e o ato (espelhada pela linguagem direta, brutal, econômica, pelo ritmo dos dois capítulos), esta interação entre o ser e o fazer vão compor a construção do romance, que parece correr fluentemente diante de nós, em direção a um objetivo marcado. (p.76).

Numa espécie de renascimento, Paulo Honório “nasce de cada ato” ao escrever sua história. Como ele tem um “objetivo marcado”, leva o leitor a sua vida, através de uma “linguagem direta, brutal, econômica, pelo ritmo rápido”, principalmente, como Lafetá declara, nos dois primeiros capítulos em que se vê frente à nova tarefa, após tentativas frustradas com outras pessoas. Sua linguagem, então, refletirá o fazendeiro dominante, bruto e dinâmico que fora ao ter um objetivo em mente: não só contar sua história, mas, também mostrar a bondade de Madalena, vítima de sua linguagem hierárquica. Assim, notamos que por meio do arranjo da linguagem, Paulo Honório mostra o poder da linguagem: ela tanto pode oferecer oportunidades às pessoas progredirem, como pode destruí-las.

Se o acesso à leitura e escrita e o valor das mesmas como domínio da linguagem são colocados em discussão, também é discutida a linguagem “cheia de empáfia”, “academicista” em textos literários.

- Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está
safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!
Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua
pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como
fala.
- Não pode! Perguntei com assombro. E por quê?
Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.
- Foi assim que sempre se fez. A literatura é literatura, seu Paulo. A gente
discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com
tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.
(RAMOS, 1997, p. 07)

Logo no primeiro capítulo, Paulo Honório está querendo produzir seu livro e pede ajuda a Azevedo Gondim, redator do jornal da cidade, O Cruzeiro. O resultado está expresso no uso dos adjetivos “pernóstico, safado, idiota” que Paulo Honório usa. Sendo Gondim um redator, o fazendeiro acredita que este poderia escrever sua história de um modo atraente e coerente com o que ele gostaria que fosse escrito. Para ele, Gondim era “uma espécie de folha de papel destinada a receber as idéias confusas que fervilhavam na cabeça” (pp. 06, 07). Contudo, Paulo Honório classificou a linguagem de Gondim distante da realidade, pois “Há lá ninguém que fale dessa forma!”. O redator defende-se afirmando “que um artista não pode escrever como fala”, como se a literatura fosse um tipo especial de linguagem que somente os “leitores eleitos” pudessem entender. A literatura seria aquela que provoca admiração pelo modo como é expressa não pelo seu conteúdo, como Marinho (2000) afirma: “É uma linguagem que tem no desentendimento, na incompreensão, a base do seu sucesso.” (p.46). Temos uma crítica, então, ao “beletrismo”, que usa uma linguagem diferenciada e torna o entendimento dificultoso. Parece que Graciliano quer incutir à reflexão sobre o que é literatura, qual a sua utilidade e linguagem. O autor parece “atacar” os literatos que escrevem de forma “empolada” e nada têm a dizer. Em outras palavras, tem-se em Graciliano Ramos uma espécie de combate ao “artificialismo da linguagem literária”. Marisa Lajolo (1991) afirma que “cabe à geração de Graciliano Ramos a batalha pela legitimação da linguagem sertaneja”; e, neste trecho observado parece que o autor está lutando por esta causa – a legitimação da linguagem sertaneja.

São Bernardo, desta forma, pode ser considerado um livro que versa sobre o questionamento e papel da linguagem na vida social, o uso da linguagem literária e a análise do acesso ao estudo em diferentes camadas sociais do sertanejo.

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3. O PODER DA LINGUAGEM EM VIDAS SECAS

Após registrar nas primeiras obras a linguagem dos cidadãos de classes mais favorecidas, Graciliano parece focalizar a linguagem dos chamados matutos que não tinham acesso ao aprendizado da leitura e escrita sem deixar à parte a linguagem padrão, a norma escrita, como sinônimo de poder. Em Vidas Secas, o narrador – agora em terceira pessoa - utiliza-se do discurso indireto livre, apresentando ao leitor um pouco do que seria a estrutura da linguagem dos que não têm acesso à cultura. Segundo Marinho (2000): “O uso do discurso indireto livre para citar a fala dos sertanejos justifica-se, entre outros, fatores, pelo precário uso que fazem da linguagem”(p.57). Parece que Graciliano, em concordância com o que a estudiosa disse, quer realmente mostrar ao leitor – através da voz de um narrador – o discurso dos excluídos social e ideologicamente, como Fabiano e família: o homem rústico representado como dono de seu pensamento, mesmo sendo ele fragmentado e contraditório. Para Assis Brasil (1962), Graciliano mostra os problemas sociais do nordeste (o ciclo de miséria, da seca, os fazendeiros pobres, os políticos, a província em declínio) a partir das “psicologias pessoais” de cada personagem. Também Pinto (1962) discute a importância de tais personagens: a ação do romance não se concentra na paisagem nordestina, mas “interioriza-se na alma dos personagens”. De fato, os protagonistas acabam por revelar um mundo diferenciado: a visão daqueles que, geralmente, não teriam oportunidade de se expressarem para um público de leitores. Esta revelação é feita por meio do contato das personagens com o mundo que as cerca. Este contato é direto e, muitas vezes, eles tentarão tirar conclusões sobre o significado de suas existências. Tal contato se efetivará pelo uso do discurso indireto livre, mescla das palavras do narrador com os pensamentos das personagens:

- Você é um bicho, Fabiano.
(...)
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho,
entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as
quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era
como as catingueiras e as baraúnas. Ele, sinha Vitória, os dois filhos e a
cachorra Baleia estavam agarrados à terra. (RAMOS, 1999, pp. 18, 19)

Em um momento de otimismo, logo ao acharem a fazenda abandonada no início do romance, Fabiano conclui: “é um bicho”, forte como aquela terra em que vive e sente orgulho em fazer parte daquela natureza. Nota-se que as reflexões de Fabiano são diretamente conectadas ao seu mundo e a conclusão a que chega – “é um forte” – basta-lhe como significado de sua existência naquele momento. É, ainda, interessante observar como seu pensamento é exposto e sua linguagem nordestina é explícita no período, pelo uso do verbo “entocar-se” (regionalismo típico que significa “esconder-se”, “pôr-se em toca”) e de vocábulos que fazem parte de seu universo de vaqueiro do sertão como “quipás” (planta nativa brasileira que se desenvolve de Paraíba até o Rio de Janeiro); “mandacarus” (planta arborescente típica do Nordeste), “xiquexiques” (subarbusto muito utilizado como adubo verde); “catingueiras” (árvore cultivada pela casca, que se extrai tintura amarela, principalmente em Alagoas e no Piauí); e, “baraúnas” (árvore com uma das mais duras e incorruptíveis madeiras-de-lei, cuja casca e utilizada em curtume e extração de tintura negra).

Não somente Fabiano mantém um contato direto com o seu mundo e põe-se a refletir: o menino mais velho também pode ser mencionado como sujeito ativo na sua expressão nordestina:

O menino mais velho estava descontente. Não podendo perceber as feições do pai, cerrava os olhos ara entendê-lo bem. Mas surgira uma dúvida. Fabiano modificava a história e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto. Estirou-se e bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras. Altercaria com o irmão procurando interpreta-las. Brigaria por causa das palavras – e a sua convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante, o herói tinha-se tornado humano e contraditório. (Ibidem, p.68)

Retirado do capítulo “Inverno”, o fragmento apresenta o menino mais velho a escutar “as lorotas do pai”, uma briga em que Fabiano saíra vencedor. Em uma parte obscura da narrativa, o pai pôs-se a contar a história novamente. O menino percebeu a mentira e se decepciona. É interessante como o narrador usa uma linguagem diferente da que poderia ser utilizada por uma criança que não freqüentava a escola: como ela notou que o pai reduziu a “verossimilhança” da história? ; como ela pode pensar que apareceu uma “variante” na história? Também é notável o raciocínio do menino que vê a incoerência do pai e prefere uma ação que pudesse ter utilidade. Ele se relaciona diretamente com seu mundo e prevê uma conclusão para sua existência naquele instante: repetir palavras e procurar significados, ação esta muito explorada pela personagem em seu universo infantil.

Graciliano Ramos, assim, aproxima as personagens da linguagem dos letrados, dando ao ser sertanejo autonomia de pensamento e expressão. Contudo, também coloca em dúvida a validade do conhecimento, do domínio da linguagem, na vida prática. É o caso da personagem Tomás da bolandeira. Seu Tomás da bolandeira era o representante mais próximo de Fabiano que tinha um nível maior de conhecimento e que, de certa forma, infundia respeito entre os sertanejos:

Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás da bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se.
(...)
Em horas de maluqueira Fabiano desejava imita-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo. (Ibidem, p.22)

Seu Tomás tinha respeito entre os matutos, pois tinha um domínio maior da linguagem. Podemos observar a importância que estes lhe atribuíam pelo seguinte
período: “Fabiano e outros semelhantes descobriam-se”. O verbo descobrir tem como um de seus significados o ato de “deixar (-se) à vista, pôr (-se) à mostra”, e os sertanejos que eram semelhantes a Fabiano eram introspectivos, pois, não falavam muito por saber que as palavras eram “perigosas”. Quando seu Tomás da bolandeira chegava, todos mostravam respeito e deixavam-se ver por ele porque detia maior poder sobre os outros por dizer “palavras difíceis”; e que, por conseqüência, os sertanejos “tirariam o chapéu”. Em horas em que fugia da normalidade exigida por seu meio, ou seja, “em horas de maluqueira”, em que poderia sonhar, Fabiano queria imitar seu Tomás, queria ser como ele. Porém, quando percebia a sua condição chegava à constatação: “ele não tinha nascido para falar certo”. No episódio com o soldado amarelo, a reflexão pode ir adiante:

Fabiano tenta iniciar uma conversa com o representante do governo, procurando usar as palavras de Seu Tomás, mesmo que tais palavras não façam sentido na situação: Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira:
-Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.(Ibidem, p. 27)

Seu Tomás inspirava respeito, mas sua importância era relativizada pelo próprio Fabiano: ainda que consciente da importância dos estudos, ele não deixaria de analisar que de nada valeria a instrução quando a seca chegasse: seu Tomás seria castigado como todos os outros pela natureza, mesmo tendo acesso a uma modalidade de linguagem socialmente prestigiada:

Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porquê? Só porque lia demais.
Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: - ‘seu Tomás, vosmecê não regula.
Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se
estrepa, igualzinho aos outros.’ Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão
bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado
o couro às varas, que pessoa como ele não podia agüentar verão
puxado. (Ibidem, pp. 21, 22)

Acesso e domínio da palavra, então, não seriam as únicas ferramentas para a mudança de vida para os sertanejos, já que não evitariam a dor, o sofrimento e até mesmo a morte, no pensamento de Fabiano. Além de seu Tomás da bolandeira como exemplo de sertanejo que transitava com facilidade em diferentes padrões de linguagem, temos Sinhá Terta, a benzedeira:

Para que um pobre da laia dele usar conversa de gente rica? Sinhá Terta
é que tinha uma ponta de língua terrível. Era: falava quase tão bem como
as pessoas da cidade. Se ele soubesse falar como sinhá Terta,
procuraria serviço noutra fazenda, haveria de arranjar-se. Não sabia. Nas
horas de aperto dava para gaguejar,e embaraçava-se como um menino,
coçava os cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados.(Ibidem,
p.97)

Fabiano desejava falar como sinhá Terta, pois, ela “falava quase tão bem como as pessoas da cidade”. Fabiano acreditava que sabendo usar uma linguagem mais apurada, teria um emprego em uma fazenda em que não o “esfolariam”, ou seja, não o enganariam. Não possuindo domínio da linguagem, Fabiano gaguejava “e embaraçava-se como um menino, coçava os cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no”.Na verdade, em seu pensamento, aqueles que possuíam domínio da linguagem e eram seus superiores eram uns “safados” que desejavam tirar-lhe vantagens por sua ignorância, por não ter o conhecimento de sinhá Terta e seu Tomás da bolandeira. A desconfiança depositada nos patrões de Fabiano, por sua condição lingüística, é temática freqüentemente explorada em Vidas Secas:

Na palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas com o amo o prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira falar em juros e prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado. Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente só serviam para encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas. Às vezes decorava algumas e empregava-as fora de propósito. Depois esquecia-as. Para que um pobre da laia dele usar conversa de gente rica? (Ibidem, pp. 96-97)

Os denominados “homens sabidos” sempre queriam aproveitar-se de sua dificuldade em compreender as “palavras difíceis” que “evidentemente só serviam para encobrir ladroeiras”. E, apesar de conceituá-las como palavras de efeito negativo as considerava “bonitas”. Seu desejo de saber era grande, mas, Fabiano sabia que “um pobre da laia dele” não poderia usar um discurso como os que a “gente rica” utilizava. Dominar a palavra – significando, talvez, trânsito por diferentes linguagens – seria um meio de superar a condição em que viviam a família de Fabiano e sinhá Vitória, evoluindo e traçando novos objetivos e perspectivas. Porém, somente dominá-la não garantiria a sobrevivência, seria preciso saber utilizá-la em seu meio, dando-lhe utilidade prática em suas vidas. Esta poderia ser uma das temáticas existentes na apresentação da linguagem dos “roceiros” nesta obra: a necessidade de estudo, das habilidades da leitura e da escrita, pode ser verdadeira, mas não é suficiente.

É interessante notar, ainda, o diálogo estruturado entre os membros da família de Fabiano. A linguagem usada no meio familiar é fragmentada.

Não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto.(Ibidem, pp. 63; 64)

Fabiano e sua mulher sinhá Vitória conversam no fragmento destacado. Contudo, não é uma conversa que obedeça às normas concebidas como tais: “eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências”. O discurso era “ambíguo”, ou seja, poderia levar ao equívoco, a mais de uma interpretação. Contudo, este tipo de etapa da comunicação não era relevante: “na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro”. Os seus recursos de expressão eram poucos e uma sucessão de imagens era formada sem uma conexão lógica, sem que eles pudessem “dominá-las”. Falavam alto, expressavam uma “interjeição gutural”, repetiam palavras desarmonicamente para tentarem ser mais bem compreendidos. Apesar de não seguirem moldes do que é concebido como um diálogo, Fabiano e sinhá Vitória estabeleciam um certo grau de comunicabilidade e compreensão; mesmo sendo sua linguagem fragmentada e sem coesão nem coerência.

A ausência de nomes dos filhos parece despersonaliza-los, parecendo sugerir a marginalização a que estão sujeitos na sociedade. Porém, esta despersonalização não pode ser considerada real: os capítulos desenvolvidos exclusivamente a eles e aqueles relacionados as suas pessoas, mostram a importância que tinham para a composição da história: são meninos conscientes da importância do conhecimento e domínio das palavras. No capítulo “Festa”, os meninos se deparam com um ambiente urbano e se assombram com as coisas que lá existem, desconhecendo seus nomes: tem-se a importância da palavra como enriquecimento de seus mundos infantis.


Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. (...) Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que esse exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes.Puseram-se a discutir a questão intricada. Como podiam homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem. (Ibidem, pp. 83, 84)

Acostumados ao ambiente da roça, os meninos espantam-se ao depararem-se com a quantidade de objetos existentes na cidade. O universo amplia-se e o questionamento surge: tudo aquilo possuía um nome? “Como podiam homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos.” Atribuem às “preciosidades” dos altares da igreja, que deveriam ter nomes, grande admiração e espanto pelo mistério que poderiam conter: “Não tinham sido feitas por gente”, é o pensamento que lhes ocorre. E, eles percebem, mais uma vez, que ter conhecimento das palavras e das coisas da cidade é necessário e assustador.


E, finalmente, Baleia: a cachorra da família que possui ironicamente um nome de um mamífero aquático em pleno sertão brasileiro. Tal denominação, comum na cultura popular nordestina, ocorre pela preocupação da família em seu animal de estimação não se contaminar pela hidrofobia, doença comum em cães. A cadela, descrita através de características psicológicas humanas, também tem tolhido seu esforço de comunicação, por mais que se esforce para dialogar com sua dona:

Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas sinhá Vitória não queria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários. (Ibidem, p.39)

Podemos notar que o narrador atribui à cadelinha ações e sentimentos como retirar-se “prudentemente”, observar “maravilhada” , “aprovar” com a cauda, “desejar” expressar admiração, “imitar” gente, afastar-se “humilhada” e ter “sentimentos revolucionários”, que podem surpreender o leitor: apesar de não saber falar, a cachorra possuía uma linguagem própria e significativa.

Vidas Secas revela uma família de retirantes pela linguagem. Os lampejos de uma linguagem estruturalmente coerente e coesiva são as tentativas diversas espalhadas pelo romance: os fragmentos oracionais, os pensamentos expostos pelo discurso indireto livre vão se encaixando como em um quebra-cabeça, na medida em que os capítulos vão se desenrolando. A “anemia da linguagem” vai aos poucos desaparecendo: no capítulo inicial, “Mudança”, temos uma família que marcha em quase total silêncio, procurando por vida; durante a vivência de fatos cotidianos, a consciência lingüística e social, os sonhos, as descobertas e as decepções vão tomando forma em gestos, expressões e pensamentos; no capítulo intermediário, “Inverno”, as palavras se encontram, não formando um todo comunicativo, mas, há a tentativa deste. Por fim, em “Fuga”, a linguagem se expande: a conversa entre Fabiano e sinhá Vitória concretiza o domínio tão distante da linguagem e “as palavras de sinhá Vitória encantavam” o marido. Aqueles que eram somente “bípedes”, “indivíduos parados”, relatados na carta de Graciliano Ramos a Heloísa3, “quatro sombras” sem vida, se transformaram numa verdadeira família a partir do uso da linguagem em plena força comunicativa: planejam e sonham com o futuro, habilitados a serem “gente” no mundo.








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3 In: RAMOS, Graciliano Ramos. Cartas. Record, 3ª ed., RJ: 1982.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise da linguagem em São Bernardo e Vidas Secas, pode-se afirmar que o ser humano e não a natureza regional é o foco das obras, provocando uma reflexão ontológica e original: focaliza-se, legitima-se e consagra-se a linguagem sertaneja; ou melhor, o “olho torto” de Graciliano enxerga novos horizontes: a dualidade psicológica do homem (o bem e o mal do caeté Paulo Honório); a marginalização que a sociedade faz; e, a circularidade a que estão submetidos os marginalizados (Fabiano e família) tornam-se temas universais que se particularizam, porém, pelo arranjo da linguagem graciliana.


Graciliano estiliza a linguagem nordestina em sua ficção, tornando literário o que por muito tempo foi visto como popular; e, como tal, desqualificado. Além disso, a realidade e a ficção mesclam-se denunciando um Brasil sertanejo paradoxalmente falho e rico culturalmente. Ao ler suas obras, é como se ser o Menino de Cabeça Pelada4, Raimundo, que sai de seu mundo imperfeito, mergulha num mundo de ficção e volta para as suas obrigações, com lembranças e lições de Tatipirun.

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4 In: RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Record, 26ªed., RJ: 1986.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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JUNIOR, Benjamin Abdala. 50 anos sem Graciliano. Revista Princípios, 68/2003.

ASSIS, Brasil. Graciliano Ramos. – ensaio. Organização Simões Editora, RJ: 1962.

RAMOS, Graciliano Ramos. Alexandre e outros heróis. Record, 26ª ed., RJ: 1986.

RAMOS, Graciliano Ramos. Caetés. Martins, 10ª ed., SP: 1972.

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RAMOS, Graciliano Ramos Vidas Secas. Record, 77ª ed., RJ/SP: 1999.

LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In: A dimensão da noite. Duas Cidades, RJ: 2004.

LAJOLO, Marisa. “Machado, Graciliano e Rubem Fonseca: diferentes itinerários do escritor brasileiro”. In: Towards Socio Criticism (Selected proceedings of the conference “Luso Brazilian Literatures, a socio-critical approach”). Arizona State University. Center for Latin American Studies.

MARINHO, Maria Celino. A imagem da linguagem na obra de Graciliano Ramos.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12ª ed., RJ: Paz e Terra, 1983.

PINTO, Rolando Morel. Graciliano Ramos: autor e ator. Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Assis, 1962.

Disponível em: Site oficial da família de Graciliano
Ramos. Acesso em junho de 2007.
Autor: Vania Rodrigues dos Santos


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