DOMICÍLIO TRIBUTÁRIO E SUAS IMPLICAÇÕES



O DOMICÍLIO TRIBUTÁRIO E SUAS IMPLICAÇÕES:


1 - INTRODUÇÃO


De início, impende ressaltar que não se pode olvidar que o espírito do legislador constituinte ao concretizar a proteção da casa como asilo inviolável do individuo, estava protegendo a vida íntima e a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, pensa-se que a melhor interpretação é a de que o vocábulo “casa” refere-se tão-somente ao domicílio da pessoa física, não podendo ser estendido ao domicílio da pessoa jurídica e tão pouco aos escritórios de contabilidade das empresas.
Porém, esta não é a opinião do mestre Prof. Alexandre de Moraes, que corroborando com o entendimento esposado pelo STF, confere interpretação extensiva ao texto constitucional, para abranger na proteção domiciliar, qualquer escritório de índole profissional.
Outra não é a tese esposada por nomes como, Ives Gandra Martins e Sacha Calmon Navarro Coelho.
Ousamos discordar da posição adotada pelos doutos juristas, esposando o entendimento de que é exagerada a equiparação. Em sentido diametralmente oposto nos colocamos para defender que tal equiparação é uma afronta aos princípios da razoabilidade e do bom senso, que devem permear todo o sistema jurídico do país.
A pertinência do tema justifica-se, ainda, no contexto atual, em que se proliferam as empresas de fachada, criadas exclusivamente para efetivação dos crimes relacionados à corrupção, que é o principal câncer da República, além dos crimes relacionados à ordem tributária.


2 - DOMICÍLIO TRIBUTÁRIO
Apenas para recordar, vale citar o código civil, que assim preceitua:

Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.

No que tange à pessoa jurídica de direito privado, que é a que nos interessa no presente estudo, o domicílio é o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos.
O conceito de domicílio em relação à pessoa jurídica de direito privado pelo CTN, constante do seu art. 127, não difere do constante no código civil.
A proteção dada pela CF em seu art. 5º à casa da pessoa física é que não pode ser confundida com o domicílio da pessoa jurídica.
Afinal, o domicílio civil é a residência da pessoa física, guardião da sua individualidade e da sua intimidade. Refúgio da vida privada do cidadão e lar sagrado, berço primeiro da família, que é a célula maior da sociedade, enquanto o domicílio tributário não pode ser chamado de “casa”, pois não é RESIDÊNCIA e sim centro de uma atividade empresarial de cunho econômico financeiro, com inúmeras relações jurídicas produtoras de reflexos nos campos não só econômico e financeiro, mas também social e trabalhista da vida em sociedade.
Tal importante centro de atividades necessita estar sob o poder de polícia do Estado, dependendo de autorização de funcionamento do poder público, ressalvada é claro a proteção contra eventuais abusos por parte do poder público a serem corrigidas pela mão forte do poder judiciário.
Embora seja um tema árido e de pouca investigação doutrinária, o tema DOMICÍLIO TRIBUTÁRIO apresenta uma enorme importância prática, especialmente quando da abertura das empresas, gerando uma série de polêmicas entre fisco e contribuintes.
Após a concessão da Inscrição e a obtenção de um bloco de notas fiscais por parte de pessoas inescrupulosas, quase sempre a empresa desaparece, sem deixar a menor possibilidade de cobrança dos créditos tributários pelo Estado, uma vez que seu capital social é apenas fictício e os sócios não passam de “laranjas”.
Toda e qualquer fraude, seja ela tributária ou não, que envolva uma entidade empresarial, começa quando da obtenção de sua respectiva inscrição no cadastro de contribuintes.
Uma simples vistoria física da sede da empresa pode impedir o nascimento de futuras empresas de “fachada”, isto é, empresas que passarão a existir apenas do ponto de vista formal, mas nunca do ponto de vista material ou de fato. Há necessidade da adequação física do estabelecimento ao objetivo social da empresa, não se concebendo a criação de empresas etéreas, fantasmas, sem nenhum lastro, cujo patrimônio real se resuma a uma mesa e um telefone, sob o argumento da terceirização. É neste exato momento, que se inicia a discussão, sendo muitos os argumentos contra o indeferimento da Inscrição Estadual, tais como, o conceito de estabelecimento com base no código civil, a livre iniciativa prevista na Constituição da República, a liberdade do exercício profissional, o princípio da legalidade, entre outros questionamentos e elucubrações com vistas à alteração do entendimento fiscal a respeito da liberdade de se eleger o domicílio da empresa, obtendo-se a pretendida Inscrição Estadual.
Tal tema assume relevância muito especial, no momento atual, em que se discute o propalado “custo Brasil”, em que precisamos nos modernizar e avançar no crescimento econômico, com o necessário desapego à burocracia e a busca constante da simplificação e da celeridade da administração pública, sendo um desafio real, dotar o Estado Brasileiro de uma agilidade e de uma eficiência maior.
Segundo estatísticas, mais de 50% das empresas encerram suas atividades nos primeiros 13 meses após a sua abertura.
Dentro deste universo de pessoas empreendedoras que ficaram frustradas por expectativas não confirmadas, existe uma grande quantidade de pessoas mal intencionadas, que usam empresas de fachada para viabilizar as mais variadas fraudes.
Uma nota fiscal pode ser comparada a uma folha de cheque em branco, assinado, com fundos generosos, pois pode gerar crédito de imposto para outra empresa, ou, até mesmo, gerar empenhos de despesas em prefeituras e outros órgãos públicos de maneira graciosa, sangrando os cofres públicos de maneira impiedosa.
Realmente não é fácil separar o joio do trigo. Em que pese a força dos argumentos supracitados, contra a não liberação da IE por parte do fisco, acreditamos ser perfeitamente possível conciliar a celeridade necessária, com a eficiência pretendida, sem que para isso, tenhamos que abrir mão do poder de polícia do Estado, abrindo brecha para a criação de “empresas de fachada”, que irão desencadear inúmeras formas de corrupção, fraudes e prejuízos à nação como um todo.
Senão; vejamos: O Estabelecimento, embora seja considerado, nos moldes do art. 1142 do CC, como o complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária, prescinde realmente de um conjunto material de bens, podendo ser constituído por direitos e negócios jurídicos compatíveis com a sua natureza.
Os princípios da livre iniciativa, elencados no art. 170 da CF, ao lado da livre concorrência e do tratamento favorecido às empresas de pequeno porte, prevêem também a função social da propriedade e assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
A liberdade do exercício profissional, esculpido no inciso XIII do art. 5º da CF, também ressalva o atendimento das qualificações que a lei estabelecer.
Por fim, o atendimento ao princípio da legalidade, encontra respaldo firme e seguro no CTN, o qual transcrevemos abaixo, apenas para recordar:

SEÇÃO IV

Domicílio Tributário

Art. 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal:

I - quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade;

II - quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento;

III - quanto às pessoas jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade tributante.

§ 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação.

§ 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior.(grifamos).
Ora, o parágrafo segundo, confere um poder (dever) discricionário à autoridade fiscal, pois sempre que o domicílio eleito impossibilitar ou sequer dificultar a arrecadação ou a fiscalização do tributo, DEVE tal autoridade recusar o domicílio de eleição. Tal recusa, quando da vistoria para fins de concessão ou não da Inscrição Estadual, importa em indeferimento do processo, até que o contribuinte apresente um objetivo social compatível com o domicílio apresentado, ou pelo contrário, apresente um local fisicamente compatível com o seu objetivo social, pois não se nos afigura possível, que uma indústria siderúrgica vá funcionar numa sala de 30 metros quadrados no décimo andar de um prédio, na área central de Belo Horizonte.
Acrescente-se ainda, que o mero escritório administrativo de contatos comerciais, não irá necessitar de Inscrição Estadual para o seu normal funcionamento. Afinal de contas, uma empresa pode ter sua sede em um endereço e escritórios de representação em diversos outros endereços sem que haja mudança do seu domicílio tributário.
A legítima preocupação com redução da burocracia não pode servir de falso argumento para se atacar a vistoria prévia a cargo da autoridade fiscal, quando da abertura de uma empresa. O Excesso de papéis e documentos prejudica apenas o empresário honesto, pois, carimbos, documentos, declarações, atestados, comprovantes, alvarás e entrevistas é o “ponto forte” de todo e qualquer estelionatário.
O único momento em que o Fisco pode agir preventivamente é no momento da concessão da Inscrição Estadual. Após a abertura da empresa o Fisco só pode agir após a fraude concluída.
Isto, óbvio, quando se trata de empresa de fachada, uma vez que, quando ocorre de fato a instalação da empresa, o poder de polícia de fiscalizar as atividades, registros contábeis, livros e etc..., ainda permanece irretocável. Entretanto, lamentavelmente, pouca ou nenhuma importância se tem dado ao controle cadastral. O cadastro de contribuintes é mal-tratado por todas as esferas de governo, ao contrário de uma empresa privada, onde o cadastro de clientes é tratado como a “menina dos olhos” da sua gerência.
Agir preventivamente é muito mais econômico do ponto de vista financeiro e muito mais eficiente do ponto de vista administrativo.
Impedir que uma empresa de fachada de ser criada é muito mais fácil do que buscar a reparação posterior.
Aliás, a reparação posterior, na maioria das vezes, não é possível, pois são empresas em nome de sócios sem nenhum lastro econômico, o que torna impossível uma execução judicial, por ausência de bens patrimoniais.
São comuns sócios fantasmas com CPF’s falsos, empregados rurais analfabetos que sequer sabem que seus nomes estão sendo usados, entre outras fraudes e simulações usadas, por meio da orientação de profissionais competentes da área, tais como, advogados, contadores, etc.


3 - ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL


Quase sempre que a doutrina e a jurisprudência tratam do assunto, refere-se somente à proteção do domicílio, dando uma exagerada equiparação do domicílio tributário ao domicílio residencial, dando guarida ao abuso de direito, pois enquanto o domicílio residencial é "o seu lugar no mundo", o domicílio tributário deve atender a inúmeros compromissos negociais. Tal preocupação, aflige todas as entidades sindicais ligadas ao Fisco em todo o país, conforme informativo abaixo transcrito, in verbis:

“Sindicato critica entendimento do STF sobre domicílio tributário”

Em meados de abril, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal considerou em processo que nem a polícia judiciária, nem o Ministério Público, nem a administração tributária, nem quaisquer outros agentes públicos podem ingressar em domicílio alheio sem ordem judicial, ou sem o consentimento de seu titular, “com o objetivo de proceder a qualquer tipo de diligência probatória ou apreender objetos que possam interessar ao poder público”.
A decisão, que tem como relator o ministro Celso de Mello, acabou por favorecer o contador português Luiz Felipe da Conceição Rodrigues, que teve deferido o pedido de habeas corpus, assim como anulados os processos penais contra ele, desde a denúncia.
O ministro Celso de Mello considerou que as provas contra o empresário e contador foram obtidas com transgressão à garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Para o representante do STF, a proteção constitucional reservada ao domicílio abrange também o local onde alguém exerce atividade profissional.
Para a presidente da DEN, Maria Lucia Fattorelli, "é altamente preocupante o conteúdo do habeas corpus decidido pelo STF, alterando a definição de domicílio tributário inserida no Código Tributário Nacional. A expressão do relator, de que a administração tributária não tem o direito de ingressar em escritórios de contabilidade sem mandado judicial, também fere o disposto na atual legislação e não observa nossas prerrogativas", explica.

O art. 127 do CTN, relativo ao domicílio tributário, estabelece que:

I - quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade;

II - quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento;

III - quanto às pessoas jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade tributante.

§ 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação.

§ 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior.

O diretor de Estudos Técnicos, Pedro Onofre, lembra que o artigo 195 do CTN afirma que "para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais dos comerciantes, industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los".

“Considerando o entendimento do ministro, realmente fica bastante limitada a atividade fiscal, uma vez que, caso não haja o consentimento do contribuinte, fica proibido qualquer acesso à empresa, considerando-se que a ela também se estende o dispositivo constitucional referente ao domicílio”, esclarece Pedro Onofre.
O Unafisco Sindical tem o mesmo entendimento do Ministério Público Federal, segundo o qual diligência fiscal, com apoio policial, realizada sem mandado judicial nos escritórios contábeis da empresa e sem a concordância do acusado, não transgrediu o artigo 5º, XI, da Constituição Federal, de que “a casa é asilo inviolável do indivíduo”, uma vez que o conceito de domicílio não é tão amplo para se estender até a empresa ou escritório de contabilidade, como o ministro opinou.”

É pacífico naquela Corte o entendimento de que os escritórios e locais fechados ou de acesso restrito ao público são protegidos pela referida norma constitucional, inclusive vedando o exercício do poder de polícia.
Resta claro que o problema não reside na letra da Lei, mas sim na cultura de quem a interpreta. O intérprete é o espírito da letra. É o intérprete da norma que confere força ou tibieza ao direito positivo, pois a letra sem o exegeta é morta.
O Supremo Tribunal Federal concluiu, no HC 79512, pela prevalência do domicílio, assim considerado o escritório da empresa, frente ao poder de polícia, conforme trecho da ementa a seguir transcrito com negrito inexistente no original:

EMENTA: Prova: alegação de ilicitude da prova obtida mediante apreensão de documentos por agentes fiscais, em escritórios de empresa - compreendidos no alcance da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio - e de contaminação das provas daquela derivadas: tese substancialmente correta, prejudicada no caso, entretanto, pela ausência de qualquer prova de resistência dos acusados ou de seus prepostos ao ingresso dos fiscais nas dependências da empresa ou sequer de protesto imediato contra a diligência.

Conforme o art. 5º, XI, da Constituição - afora as exceções nele taxativamente previstas ("em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro") só a "determinação judicial" autoriza, e durante o dia, a entrada de alguém - autoridade ou não - no domicílio de outrem, sem o consentimento do morador. 1.1. Em conseqüência, o poder fiscalizador da administração tributária perdeu, em favor do reforço da garantia constitucional do domicílio, a prerrogativa da auto-executoriedade. 1.2. Daí não se extrai, de logo, a inconstitucionalidade superveniente ou a revogação dos preceitos infraconstitucionais de regimes precedentes que autorizam a agentes fiscais de tributos a proceder à busca domiciliar e à apreensão de papéis; essa legislação, contudo, que, sob a Carta precedente, continha em si a autorização à entrada forçada no domicílio do contribuinte, reduz-se, sob a Constituição vigente, a uma simples norma de competência para, uma vez no interior da dependência domiciliar, efetivar as diligências legalmente permitidas: o ingresso, porém, sempre que necessário vencer a oposição do morador, passou a depender de autorização judicial prévia. (....)



4 - ABUSO DE DIREITO


A primeira vista, para que o abuso de direito se faça presente nos termos do que preceitua o Código Civil de 2002, necessário seria a existência de uma conduta que exceda um direito correspondente a determinada pessoa, a fim de que esta atue no exercício irregular de um direito, conforme transcrito:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Não obstante o fato de encontrar-se inserido no plano da antijuridicidade, como também de ter sido incluído no Código Civil de 2002 no Título pertinente ao ato ilícito, o ato abusivo não pode ser confundido com o ato ilícito. Com efeito, entendemos que o abuso de direito se apresenta como uma categoria autônoma da antijuridicidade.
As teorias que negam a autonomia do ato abusivo se fundamentam na equiparação deste com o ilícito, em razão de ambos produzirem os mesmos efeitos, qual seja a responsabilização civil do agente. Todavia, discordamos de tal posicionamento, pois, todo e qualquer ato jurídico que desrespeite os valores da eticidade e da socialidade, ainda que não sejam considerados ilícitos por falta de previsão legal, pode ser qualificado como abusivo, ensejando a correspondente responsabilização.
Embora não seja objeto do nosso estudo específico, não podemos deixar de dizer que o ato abusivo é mais amplo do que simples ilícito, na medida em que prescinde de previsão legal, tratando-se de uma cláusula geral das mais ricas do nosso ordenamento jurídico. Uma cláusula aberta, consubstanciada pelo conceito da boa-fé, a ser integrada pelos princípios constitucionais e supra-constitucionais, que exigirá do julgador uma dose extra de bom senso e de razoabilidade.
Ademais, convém salientar que o abuso de direito não está condicionado à violação de limites formais ou concretas proibições normativas. Sua doutrina vai muito mais além dessa realidade, pois, os seus limites são ditados pelos princípios que regem o ordenamento jurídico, o que, mais uma vez implica o reconhecimento de sua autonomia jurídica.
A doutrina do abuso de direito está em sintonia com a atual tendência da racionalidade jurídica, a qual não mais se coaduna com a idéia da completude do ordenamento e sim com a consagração dos princípios como valores fundamentais do sistema jurídico nacional, os quais, em sua maioria, se encontram constitucionalizados. Vale destacar, em especial, para o estudo do abuso do direito, a incidência dos princípios da socialidade e eticidade, ambos consagrados pelo Código Civil de 2002.
Não se admite mais que, bizantinamente, o direito positivado possa prever exaustivamente todas as condutas anti-sociais ou indesejáveis. Tal função será melhor desempenhada pelos princípios, visto que os mesmos passaram a assumir um maior grau de normatividade, permitindo uma constante adequação do ordenamento jurídico às exigências dos tempos atuais, de forma célere e dinâmica.
A teoria do abuso de direito apesar de não representar uma inovação para o sistema jurídico nacional, visto que, o revogado Código Civil de 1916 já a reconhecia de forma indireta, apenas recebera sua positivação pelo ordenamento com o advento do Código Civil de 2002.
De acordo com o inciso I do art. 160 do Código Civil de 1916, não deveriam ser constituídos atos ilícitos os que fossem praticados no exercício regular de um direito reconhecido. A contrario sensu, podemos abstrair da redação do aludido dispositivo que os atos porventura praticados no exercício irregular de um direito seriam considerados como ilícitos.
Observe que a norma materializada pelo art. 187, supramencionado se trata de uma norma geral a ser integrada e complementada pelos princípios gerais do direito.
Esta é uma prática salutar, na medida em que os princípios se perpetuam, ao passo que as normas que procuram prever hipóteses casuísticas, com o passar do tempo ficam ultrapassadas, sobretudo no mundo moderno em que a efervescência dos fenômenos sociais provoca grandes e rápidas mudanças na sociedade.
O abuso, portanto, não mais aparece relacionado ao exercício irregular de um direito ou prerrogativa individual, posto que irá assumir função limitadora destes, mediante a imposição de limites éticos. Tais limites, por sua vez, serão estabelecidos em conformidade com o princípio da boa-fé objetiva, os bons costumes e a função social e econômica dos direitos.
Outrossim, por não se tratar de ato ilícito, a noção de ato abusivo extrapola a teoria da responsabilidade civil. O ato abusivo, dessa maneira, comporta sanções diretas e/ou indiretas. Quando o ato abusivo é reconhecido judicialmente, além do dever de indenizar, pode decorrer também a nulidade do ato, consoante preconiza o art. 166, inciso VI do Código Civil, sempre que a questão for pertinente à fraude de lei imperativa.
Conforme podemos perceber, no campo prático de incidência da teoria ora estudada, a linha de diferenciação entre o abuso de direito e o ilícito é bastante tênue, o que faz complicar ainda mais o papel do operador do direito na aplicação da doutrina do abuso de direito.
Em resumo, conclui-se que o dispositivo que inseriu a teoria do abuso de direito no Código Civil de 2002, tratou-se de norma destinada a promover a relativização dos direitos e prerrogativas individuais, de forma a coibir o exercício abusivo dos mesmos pelos seus sujeitos, preservando-se com isso os interesses coletivos e o bem estar social. Portanto, todo e qualquer ato jurídico que desrespeite tais valores, ainda que não sejam considerados ilícitos por falta de previsão legal, pode ser qualificado como abusivo, ensejando a correspondente responsabilização.
Não se pode olvidar também, que o exercício de um direito, a partir do momento em que ultrapassa o limite do razoável exercício de um direito e passa para o campo do abuso, vai de encontro ao princípio maior da dignidade da pessoa humana, ferindo a outra parte da relação jurídica.
Não há, destarte, direito absoluto em nosso ordenamento jurídico, devendo todo exercício de direitos e prerrogativas respeitar os fins sociais e econômicos, os bons costumes e, principalmente, a boa-fé.
No campo tributário, sempre que se usar um direito qualquer para o acobertamento de uma fraude, estar-se-á diante de um verdadeiro abuso de direito.
O argumento de violação de domicílio para se invalidar provas obtidas pelo Estado, dentro de escritórios de contabilidade das empresas é um abuso e a guarida dada a esse escandaloso argumento, por parte do poder judiciário, fere a dignidade humana dos contribuintes honestos, que são cumpridores de suas obrigações fiscais.
Tal argumento lembra-nos a famosa “legítima defesa da honra” que livrou muitos assassinos passionais do cárcere, na década de 80.


5 - PODER DE POLÍCIA


Não há possibilidade de exercício ilimitado dos direitos fundamentais sem prejuízo ao sistema jurídico, ou seja, não existe direito fundamental absoluto. Os princípios constitucionais devem ser relativizados, quando em confronto com outros princípios existentes no mesmo corpo.
O poder de polícia, como sendo o poder/dever de regular as liberdades individuais em prol do interesse coletivo é a primeira conseqüência do poder de império do Estado, em que cada indivíduo abre mão da sua soberania pessoal, a favor de um ente estatal, que irá regular a vida em sociedade, com vistas ao atendimento do interesse público.
São atributos do poder de polícia: A Discricionariedade; a Coercibilidade e a Auto-Executoriedade.
Da Discricionariedade decorre o juízo de oportunidade e conveniência da prática do ato administrativo, que deve ser da competência exclusiva da Administração Pública. Isto é, não pode nem o Judiciário e nem o Legislativo, interferir sobre a conveniência ou não da prática de determinada ação por parte do órgão competente para a prática de determinado ato administrativo.
Da coercibilidade decorre a autorização legal para o uso da força necessária, com os meios adequados para fazer valer o cumprimento da Lei.
De nada adiantaria conferir uma missão, ou uma atribuição legal a um agente público, sem a garantia das prerrogativas necessárias ao exercício do cargo detentor daquela atribuição legal.
Finalmente, a Auto-Executoriedade, nada mais é que o poder de agir por parte da administração pública, sem a necessidade de se recorrer ao Judiciário, solicitando autorização expressa para a prática do ato necessário ao exercício das atribuições legais de determinado órgão.
A propósito, vale lembrar o disposto no art. 195 do CTN, que tem força de Lei Complementar, tendo sido recepcionado pela Magna Carta de 1988, por em nada contrariá-la, mas antes sim, preservar os princípios da função social da propriedade e os ditames do Estado de Direito, em que a Lei deve imperar de maneira impessoal e imparcial, a despeito das classes sociais atingidas em seus interesses; senão vejamos, in verbis:
Art. 195. Para os efeitos da legislação tributária, não tem aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais dos comerciantes, industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los.

Como se percebe facilmente, o Fisco de uma maneira geral incomoda muito mais a classe detentora do poder econômico do que a maior parcela da população, que não é detentora nem do capital e nem da renda, além de parcos salários percebidos mês a mês.
A imparcialidade como pilar fundamental da Justiça, infelizmente, nem sempre está presente nos julgamentos de pessoas ocupantes das posições mais altas dentro da sociedade. Sem querer tapar o sol com a peneira, esta é uma realidade indisfarçável aos olhos de observadores mais atentos.
Retirar o poder de polícia da autoridade fiscal em nome do interesse público, traz à memória quantas atrocidades já foram cometidas em nome de Deus.
Em nome do interesse público, encobrem-se casuísmos de toda ordem, colocando os fracos a serviço dos fortes, os pobres a serviço dos ricos, com uma hipocrisia milenar.
Comparando os três atributos a um organismo vivo, poder-se-ia dizer que, a discricionariedade seria a vontade, a coercibilidade seria a força do caminhar e a auto-executoriedade seria a escolha da direção para onde ir. Se faltar um dos três atributos, de nada serviria os dois restantes.


6 - RELATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


A CF. quando trata dos direitos e garantias fundamentais, prevê no seu art. 5º, inciso XI, o seguinte:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

É de cediço conhecimento que não há direito individual que seja absoluto. Caso contrário, seria prestigiar o infrator em detrimento do interesse público. Este sim, é um interesse quase absoluto, não podendo o Estado ser enfraquecido, para privilégio de uns poucos em razão, quase sempre, da sua posição social mais bem abarcada economicamente.
Uma coisa é a garantia do direito e outra coisa é a garantia do abuso do direito. Esta deve ser evitada a todo custo. Usar a proteção constitucional para a casa como sendo o asilo inviolável do cidadão é um direito sagrado; mas usar esta garantia para vender drogas ilícitas dentro de casa é uma conduta a ser reprimida pelo Estado, com toda a força de que se dispõe. Em se tratando de crimes contra a ordem tributária a analogia é a mesma. Isto já se admitindo a absurdeza da equiparação do domicílio tributário, ou o escritório de contabilidade, com a “casa” prevista no texto constitucional.
Conforme já dito e repisado, enquanto a casa é o espaço de cada um no mundo, o domicílio tributário, ou o escritório a ele equiparado, é o guardião das provas elementares da conduta lícita ou ilícita de uma propriedade empresarial, sendo despiciendo dizer que as garantias de sua inviolabilidade não podem barrar as prerrogativas da função de fiscalização dos próprios auditores que detêm a obrigação de efetivar a fiscalização, com fulcro no poder de polícia do Estado.
Aliás, diga-se de passagem, quanto mais eficiente a fiscalização por parte do Estado, melhor para o empresário honesto, pois estará mais protegido da concorrência desleal daqueles que, ao fraudar a lei, conseguem oferecer preços mais vantajosos ao mercado.
Seria uma descabida inversão de valores e uma negativa injustificada do poder de polícia do Estado, pretender que o fisco vá ao judiciário para desenvolver o seu trabalho, quando precisar adentrar ao escritório da empresa, ao invés de reconhecer que o contribuinte lesado poderá recorrer às vias ordinárias, para buscar reparação do seu direito. Isto tornaria o art. 195 do CTN em letra morta.
Não se trata apenas de verificar livros e documentos oficiais, com análise normal da contabilidade de empresas sérias, que nada tem para esconder.
Trata-se de usar o elemento surpresa, para apreensão do “caixa dois”, de apreender dados secretos e escondidos, corpo de delito, materialização de prova de fraudes de toda ordem, contra o erário das três esferas de governo. Documentos que comprovam sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, corrupção, notas superfaturadas para prefeituras pobres, cujos prefeitos inescrupulosos, deixam de comprar esparadrapo para o posto de saúde municipal, desviando verbas para a compra de cavalos de raça, carros e mansões, com o dinheiro suado do sofrido povo brasileiro, nos mais diversos rincões deste país.


7 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS


Pode-se asseverar, com irremediável acerto, que princípio é o alicerce do direito (a razão de ser da própria regra), ou “mandamento nuclear de um sistema”, utilizando o conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello , para quem princípio é, por definição,

...mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico...

Princípio seria o espírito da norma, ou seja, a razão de sua existência e o fundamento da sua criação.
Servem os princípios tanto para justificar a existência da norma quanto para balizar a sua interpretação.
Qualquer interpretação que seja divorciada do princípio de criação da norma está longe de ser uma aplicação do direito, constituindo sim em um arbítrio empírico sem nenhum fundamento sistemático.
Os princípios estão entrelaçados entre si como elos de uma mesma corrente, mantendo um sentido sistemático a dar uma estrutura lógica a um ordenamento.


7.1 - Princípio da Razoabilidade


Tal princípio, não raras vezes espandongado e vilipendiado, deveria ser as luzes dos pés do hermeneuta.
Será este princípio quem indicará o caminho das pedras a fim de que o exegeta possa conferir materialização aos valores supremos da dignidade da pessoa humana, com o conseqüente aperfeiçoamento do Estado Social de Direito.
Ou se percorre o caminho da RAZOABILIDADE, ou se cai no abismo profundo da injustiça.
Trata-se de um princípio implícito na Constituição Federal, que permeia todo o sistema jurídico brasileiro, com especial relevância no Direito Administrativo.
De fácil intuição, mas de difícil delimitação, a razoabilidade pode ser concebida como uma constante aferição da compatibilidade entre os meios necessários com os fins almejados, constituindo-se numa via de mão dupla que, de um lado, proíbe excessos por parte da Administração Pública e, de outro, não pode criar ambiente adequado para a proliferação do abuso de direito.
Muitos autores não fazem distinção entre a razoabilidade e a proporcionalidade, misturando com freqüência os dois conceitos. Entretanto, parece-nos claro que a razoabilidade está para a escolha da medida, enquanto que a proporcionalidade está para a quantidade do sacrifício imposto. Isto é, aquela é qualitativa, enquanto esta é quantitativa.
Impende ressaltar, que a razoabilidade não pode, em hipótese alguma, ser lançada como instrumento de substituição da vontade da lei pela vontade do julgador; muito embora, estarmos assistindo ultimamente à vontade do julgador, pura e simples, sem nenhuma afeição pela razoabilidade.
Aliás, não podemos deixar de falar da íntima relação entre a razoabilidade e o bom senso. Isto não se aprende na escola, mas se depreende com a observação atenta e o espírito comprometido com aquilo que ordinariamente acontece na vida cotidiana das pessoas.
O fenômeno social precede a todas as leis. Assim não se concebe um juiz divorciado da realidade. É preciso estar atento a todas as conseqüências decorrentes de uma decisão. O julgamento preso tão-somente à letra fria da Lei prescinde da figura do Juiz, pois basta a figura robotizada de um magistrado, que jamais virá a ser um Juiz na plenitude do termo.
No nosso modesto entendimento, da RAZOABILIDADE dependem a real existência do Estado Democrático de Direito e o fundamento da dignidade da pessoa humana, tão expressivamente insculpidos logo no Art. 1º da CF.
Tudo isso sem falar no propalado princípio da Isonomia ou Igualdade, sem o qual não há o que se falar em justiça, uma vez que não há maior injustiça que tratar igualmente os desiguais.
Assim a RAZOABILIDADE é como um espírito a dar vida ao Estado Democrático de Direito, à Dignidade da pessoa humana e, finalmente, à tão almejada Igualdade.
Na lição de José Afonso da Silva :

...o direito de igualdade não tem merecido tantos discursos como a liberdade. As discussões, os debates doutrinários e até as lutas em torno desta obnubilaram aquela. É que a (igualdade) constitui o signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra. Por isso é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa.

Nos julgamentos afetos ao direito tributário, na maioria das vezes, tais palavras ressoam irretocáveis. É comum notícias de que alguém passou um ano preso por furtar um tablete de 200g de margarina. Entretanto, as provas obtidas por meios ilícitos têm servido de pretexto para “aliviar” a situação dos corruptos e dos que cometem o crime do “colarinho branco”.
O princípio da razoabilidade não se encontra previsto expressamente no texto constitucional e nem precisaria ser, posto que derivado da razão, como sendo a faculdade intelectual e lingüística que distingue o ser humano dos outros animais, perpassando esta concepção por toda a história da filosofia, originada no aristotelismo e adotada pela ciência moderna na designação taxonômica, ou classificatória da espécie humana.
Assim, podemos asseverar, que a razoabilidade pode ser depreendida não do texto, ou da letra, mas da própria natureza humana, sendo portanto não depreendido, mas originário, inspirador e legitimador da própria dignidade da pessoa humana.
Encontramos na doutrina uma grande divergência de opiniões sobre a localização, no texto constitucional, do respaldo implícito deste princípio.
Entretanto, de uma maneira bem menos original, poderíamos simplesmente dizer que a razoabilidade encontra respaldo constitucional no art. 5º, inciso LIV, que se refere ao devido processo legal, que deve ser entendido sob o ponto de vista instrumental e substancial, estando a razoabilidade no seu sentido substancial.
Encerrando, vale lembrar que este princípio pode ser resumido como sendo nada mais, nada menos, que a proibição do excesso.


7.2 – Princípio da Dignidade da Pessoa Humana


Apenas para recordar, vale citar o primeiro artigo da nossa CF:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

O Estado, enquanto ente jurídico, é colocado como servo da dignidade da pessoa humana e o princípio da razoabilidade quando a serviço da dignidade também se reveste dessa importância, como o mandatário que se reveste dos poderes do mandante.
Mediante o estudo dos mais renomados mestres, percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana “constitui, em verdade uma norma legitimadora de toda a ordem estatal e comunitária, demonstrando, em ultima análise, que a nossa Constituição é, acima de tudo, a Constituição da pessoa humana por excelência” .
A importância deste princípio é tamanha que estudos demonstram que, quando o interesse público vier a se chocar com o princípio da dignidade da pessoa humana, este deverá preponderar sobre aquele. É que, como é cediço, para solucionar um conflito entre princípios, deve-se aplicar o princípio da proporcionalidade, ou seja, os dois postulados devem coexistir mediante concessões recíprocas, vindo a maior cota de sacrifícios do princípio de menor estatura no contexto sob enfoque.
Nesse sentido, os princípios do interesse público e da dignidade da pessoa humana devem se harmonizar. Cada qual deverá manter o seu cerne, porém com suas eficácias restringidas, sendo o princípio do interesse público o que se torna menos eficaz nessa circunstância.
Na realização desse processo dialético de conciliação de princípios, incumbe ao agente público analisar as especificidades do caso concreto, a fim de obter a noção exata sobre quais direitos e deveres serão respeitados de modo preponderante e quais terão de ser flexibilizados.


7.3 – Princípio da Segurança Jurídica


O Princípio da Segurança Jurídica encontra-se intrinsecamente ligado ao Estado Democrático de Direito, sendo um de seus princípios basilares. Como corolário de estabilidade e princípio fundamental abrange, em suas diversas manifestações, a proteção da pessoa contra atos de violação de seus direitos tidos por fundamentais.
Dentre as suas várias facetas, tem-se que o centro da segurança jurídica encontra-se, primordialmente, na proteção da pessoa contra medidas jurídicas, administrativas e legislativas que retrocedam às garantias sociais progressivas.
Possui conexão íntima com os direitos fundamentais e com determinados princípios que dão funcionalidade ao ordenamento jurídico brasileiro, como por exemplo, a irretroatividade da lei, o devido processo legal, o direito adquirido, dignidade da pessoa humana, entre outros.
Como a Constituição Federal é a base da segurança jurídica, os meios de efetivação deste princípio deverão nela constar, como o auxílio das demais espécies normativas do ordenamento jurídico.
Por ter como sua fonte a lei, esta, ao ser elaborada pelos representantes eleitos do povo, não raras vezes costuma sofrer determinadas distorções. Nesse momento vislumbra-se a elevada importância do aplicador do direito, a quem incumbe afastar os possíveis desvirtuamentos legislativos, utilizando-se do melhor método hermenêutico na subsunção da norma à situação fática em busca da esperada justiça.
Em suma, a segurança jurídica é um princípio do Estado Democrático de Direito, que consiste na estabilidade da ordem jurídica constitucional, objetivando precipuamente refletir nas relações intersubjetivas o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos, futuros e pretéritos, da regulação das condutas sociais.
A relação deste princípio com o tema em questão é que, na medida que se permite que o manto da segurança legal seja usado para dar segurança não ao cidadão cumpridor dos seus deveres, mas ao fraudador, para burlar a sociedade em segurança, usando não o direito, mas o abuso do direito; está se desvirtuando o objetivo da própria lei, invertendo valores e subjugando a sociedade em prol daqueles pouco apegados aos valores morais e éticos que servem de sustentáculo de uma nação.


7.4 – Princípio da Legalidade


Este princípio, juntamente com o controle da administração pelo poder judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade .
Ainda que em benefício da coletividade, a restrição a direitos só é admitida pela lei, posto que a lei, pelo menos em tese, é sempre nascida da coletividade, seja de forma direta ou indireta.
Este princípio, pois, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. E embora este não se confunda com a lei, não há negar-se, todavia, ser esta uma das suas expressões basilares. É nela que os indivíduos encontram o fundamento das suas prerrogativas, assim como a fonte de seus deveres. É, pois, princípio genérico de nosso Direito, esculpido como direito fundamental no texto constitucional, pelo inciso II do art. 5º, que reza que ninguém será obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de Lei.
A estrutura pública foi reconhecida pelo próprio Jesus Cristo quando disse “Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” (Mateus 22.21). Quando levaram uma pecadora perante o Senhor, evitando o confronto, sem descumprir a lei, ele proferiu: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra” (João 8.7). Com isso, demonstrou buscar o consenso e a paz social com sabedoria. Observe que levaram apenas a mulher e não o homem.
Para que haja paz social, todos devem cumprir as leis, que são influenciadas pelos valores de quem as elabora e as vota.
É da natureza humana ser egoísta e os privilégios nascem dessa natureza do homem, que deseja sempre os privilégios para si mesmo, deixando a dureza da lei apenas para os outros menos afortunados.
No direito tributário, a tributação sempre tende a pesar mais no bolso do pobre do que no bolso da classe dominante, que alia poder econômico ao poder político.
O princípio da legalidade somente estará cabalmente satisfeito se a lei for legítima.
Não basta ser lei apenas do ponto de vista formal. Além de ser genérica, abstrata e impessoal, ela necessita ser LEGÍTIMA do ponto de vista material ou substancial.
Todas as ditaduras são legais na medida em que elaboram leis, mas não serão legítimas jamais, posto que ilegítimas no seu nascimento.
Modernamente, outro requisito se faz presente, que é o atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana.
A Lei que não atender a esse princípio será ilegítima, padecendo da legitimidade necessária à sua força coercitiva.
Também não aproveita o velho brocardo de que “É legal, mas não é moral”. A lei que não for moral também não será legitima e, consequentemente, deverá ser declarada inconstitucional por ofensa ao princípio da dignidade.


8 – CONCLUSÃO


É incompatível com a Existência do Estado de Direito, onde o direito deve imperar de maneira soberana e absoluta, que as liberdades individuais e o exercício dos direitos individuais sejam irrestritos e superiores ao princípio maior do interesse público.
Realmente, falar-se em relatividade dos direitos fundamentais, mais parece uma cortina de fumaça com o escopo de desviar o foco principal daquilo que não quer que seja visto, pois não se trata de relatividade, ou da preponderância de princípios, mas pura e simplesmente da ausência de previsão constitucional da proteção ao domicílio das empresas.
Também, da mesma forma, sob o pálio da interpretação extensiva, não podemos vilipendiar o princípio da razoabilidade, partindo de premissas aparentemente verdadeiras para se chegar a conclusões verdadeiramente absurdas.
As regras sobre domicílio tributário previstas no art.127 do CTN, tem por escopo facilitar a arrecadação e a fiscalização dos tributos e não a dificultá-la. Além disso, a Constituição cidadã de 1988, somente será garantidora do pleno exercício de todos os direitos nela consubstanciados, quando o Estado estiver dotado de um Fisco forte o bastante, para viabilizar a Justiça Fiscal (na via interventiva), instrumentalizando então, a Justiça Social (na via distributiva).
Se o Tributo é o modo de redistribuição da renda existente na sociedade moderna e a ação social do Estado é o meio. O Fisco é o instrumento de que dispõe o Estado para esta tarefa hercúlea, pois o principal problema econômico do mundo é a má distribuição da renda, que tende a se concentrar sempre nas mãos de uma pequena parcela da população.
Destarte, não é exagero asseverar que, assim como os trilhos de uma férrea estão para a sua locomotiva, o Fisco está para o Estado. Este caráter instrumental do Fisco faz dele a condição fundamental para a própria existência do Estado. De um lado, contrariando interesses poderosos dos detentores do capital; de outro, podendo ser usado por governantes ávidos por recursos a qualquer custo.
Não sem razão, a prerrogativa, até hoje mal entendida, esculpida no inciso XVIII, do art.37 da magna carta, que reza:

- a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição (leia-se: circunscrição), precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei; (...)

Até agora, quase nada se fez para conferir concretude a este princípio constitucional da precedência administrativa, pois uma constituição para ser verdadeiramente cidadã, necessita de um Fisco forte, que venha ao encontro dos interesses da sociedade como um todo, nos termos supramencionados.
Em todas as nações organizadas do planeta, com um mais alto índice de desenvolvimento humano e econômico, encontramos sempre um fisco forte com leis tributárias severas.
É o caso de países, por exemplo, como Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica, Canadá, Japão, entre outros.
A nosso ver, no Brasil encontramos dois problemas, que são, de um lado o excesso de leis, criando um emaranhado difícil de ser entendido o que gera o enfraquecimento da norma. Paradoxalmente, quanto mais leis, mais fracas elas ficarão.
Por outro lado, encontramos o problema mais sério ainda, que é a cultura da tolerância, dos casuísmos e do coronelismo moderno, que se encontra incrustado na tibieza de nossas interpretações doutrinárias e jurisprudenciais.
Não seria exagero dizer que muitas de nossas interpretações favorecem não o direito, mas sim o abuso do direito, sendo o reflexo talvez, dos anos de ditadura que vivemos em um passado não muito distante.
Assim, inconscientemente, se exagera na proteção ao direito, como que num movimento involuntário decorrente da memória dos anos em que a ditadura impediu o livre exercício da cidadania em nosso País.
Segundo os historiadores, este é um movimento normal ao longo da história, indo-se de um extremo ao outro, para com o passar do tempo encontrar-se o ponto de equilíbrio, como se fosse o movimento natural partindo da tese à antítese, para depois encontrar-se o meio termo.
Apenas para encerrar, frisamos que “casa” refere-se à pessoa física e que o Fisco também não pode ser arbitrário, devendo o contribuinte prejudicado ser amparado pelo poder judiciário, com todo o vigor da lei. O que não pode e não deve ser admitido de maneira visceral é que haja o exagero desproporcional na proteção do particular em detrimento ao interesse público, ocasionando uma inverossímil inversão de valores e retirando do poder de polícia, a sua alma vivificante, que é a sua auto-executoriedade.
Por todo o exposto, conclui-se que não há necessidade de qualquer mudança legislativa e sim, de uma mudança de paradigma cultural.
Autor: Marcelo Lyra de Almeida


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