Guia explicativo sobre alienação



Aqui estão noções básicas sobre como funciona a alienação que vez ou outra é citada em rodas de conversa e sites de mídia alternativa. Para quem ainda está por fora de o que seja essa palavra tão comentada e repudiada, este guia explicativo dá uma mão para que compreenda. Aqui não há palavras ou estudos de um cientista social com doutorado, mas de um cidadão que está expondo suas noções aprendidas com a vida e compartilhando-as com os leitores, para que haja a propagação da compreensão do problema pelo máximo possível de pessoas e, quem sabe, a abertura de debates e propostas de solução.

ÍNDICE

Definição de alienação
Conformismo
Individualismo, “mestre” da alienação
Um Brasil alienado
Alienação cultural
Então diversão é alienação?
Mais sobre alienação e conformismo: uma dinâmica síncrona
Gente interessada na alienação
Falhas na educação
Como o jornalismo manipulado ajuda a alienar
Cidadania contra a alienação e o conformismo

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DEFINIÇÃO DE ALIENAÇÃO

Alienação, segundo os dicionários, na definição mais primária, é o estado de separação ou alheação da pessoa de alguma coisa que lhe pertencia ou a que pertencia e a transferência dessa coisa para outra pessoa ou entidade. Por exemplo, carro alienado é aquele cujo dono, por não estar quitado, ainda não tem sua posse garantida e que ainda está vinculado à concessionária. Uma pessoa tem alienação psiquiátrica quando não tem controle sobre seu equilíbrio mental. Se alguém está alienado da sociedade, é porque se sente separado dos problemas coletivos e transfere sua responsabilidade sócio-política aos outros, ora governo e autoridades, ora ONGs, ora qualquer outra pessoa que assuma tal responsabilidade. Sendo alienado, você não participa diretamente da edificação da integridade social do país, mesmo que esteja participando da dinâmica econômico-financeira da região e da nação como um empregado ou empresário e pagando impostos, formas apenas indiretas de participação social.

A alienação social, política e cultural ocorre quando o sujeito vive alheio, na maioria das vezes por indução cultural constante, aos problemas inerentes à sociedade, à política e também aos aspectos culturais de implicações questionáveis. Um alienado na prática não está nem aí se a violência explode no seu bairro – exceto quando é ele mesmo assaltado –, se os ônibus da cidade estão com a passagem cara e vivem superlotados nas horas de rush, se animais e ecossistemas são trucidados por seus hábitos alimentares e consumistas ou se a corrupção está galopando em Brasília ou na assembléia legislativa de seu estado. Nada disso lhe interessa genuinamente a não ser para nutrir quinze minutos de conversa com os amigos ou parentes. O que realmente vale para tal pessoa são as vitórias de seu time de futebol no Campeonato Brasileiro, os últimos capítulos da novela, os momentos sensuais do reality-show, o megahit musical da moda, a calourada do próximo fim de semana, a vaquejada “imperdível”, o rodízio de carnes sangrentas da churrascaria do bairro... No caso dos alienados religiosos, o que vale é o futuro após a morte num maravilhoso e paradisíaco mundo do além, mesmo que isso seja obtido com reclusão e auto-segregação social num ato de se alhear da realidade. O alienado médio das cidades brasileiras ainda dedica uns minutos de suas conversas com seus pais, irmãos, filhos, parentes, amigos, colegas e conhecidos para esses assuntos, mas não sai da conversa particular. É o sujeito que admite que o país, o estado, a cidade, o bairro têm problemas mas não demonstra nenhuma disposição legítima para lutar ou participar de alguma iniciativa popular contra estes. Existem ainda aqueles, que podem ser considerados sobre-alienados, que simplesmente ignoram a problemática coletiva na prática e em situações normais conversa apenas sobre temas pessoais ou banais, sem dedicar nem um segundo a questões públicas.
Essa alienação é: cultural, porque envolve uma gama de aspectos culturais hedonistas em detrimento de opções, digamos, mais edificantes, como a literatura e a troca de idéias com o próximo; política, porque o alienado diz estufando o peito que odeia política e não quer se meter em nada que denote atos políticos, mesmo sendo estes os norteadores de qualquer sociedade e dos mais diferentes aspectos da vida de qualquer ser humano; e social, porque há a não-preocupação, numa inválida e antiética isenção, com os problemas sociais das pessoas desde de sua comunidade até do universo populacional de seu país.



CONFORMISMO

É o vício comportamental de uma pessoa que, orientada por um pensamento de se achar resignado, sem forças, condições ou disposição para infligir qualquer boa ação coletiva que influencie sua comunidade, cidade, estado ou país, se mostra acostumada, acomodada, conformada com a situação em sua volta. Embora os problemas coletivos não precisem mais estar tão próximos presencialmente do indivíduo, tendo em vista a existência da mídia tradicional e da internet e sua facilidade em divulgar relatos e opiniões sobre os tais, o sujeito prefere tentar conviver acostumadamente com todo o mal.

É uma questão que inspira um pouco mais de cuidado quando pensamos em alienação e conformismo como sendo “irmãos”. Todo mundo, mesmo os maiores militantes, tem um pouco de conformismo, sendo que em níveis ou âmbitos diferentes dependendo dos assuntos e questões. Alguém pode ser, por exemplo, um ativista ambiental incansável e determinado mas estar conformado com os problemas viários de sua cidade, ou, na esfera pessoal, um trabalhador com grande força de vontade de subir na empresa que o emprega mas um conformista sentimental, que não procura mais por uma paquera interessante em qualquer lugar. Além disso, muitos que desejam ser cidadãos práticos e ativos vivem incessantemente ansiosos para aderir a algum grupo ativista que apareça ou a alguma oportunidade de ir à rua protestar contra algo, mas jamais encontram algo válido, nem mesmo conseguem organizar algo com as pessoas mais próximas. É o caso em que o ciclo vicioso da alienação e da indisposição conformista das pessoas ao redor desestimula o cidadão e este termina se rendendo a um estado resignado.



INDIVIDUALISMO, “MESTRE” DA ALIENAÇÃO

Sabemos que a alienação tem um velho e astuto “mestre”: o individualismo. Este, ao lado do materialismo e consumismo, tornou-se a característica mais importante da cultura capitalista urbana atual desde o século 20. As metas vitais das pessoas são: ter um emprego altamente remunerado, adquirir o máximo possível de riquezas materiais – produtos como TVs de cristal líquido, carros poderosos e itens de luxo variados – e viver uma boa vida pelo gasto de muito dinheiro nos dias de lazer (individualismo consumista). Não é preciso dizer aqui que é um comportamento alheio aos 60% mais pobres da população, que se contenta em viver uma vida de trabalho duro e custeio das necessidades básicas e sonhar um dia ganhar em alguma loteria, ser rico e ter acesso aos desejos capitalistas das classes média e alta. Tudo em prol de si mesmo, ou no máximo da família e dos amigos, uma vida centrada em sua pessoa e ignorando tudo o que há em seu redor mais distante.

Por definição, o individualista só pensa em si mesmo, em sua vida pessoal, em suas metas individuais de vida, mesmo se não tem força de vontade para cumpri-las. É costume seu não incluir causas públicas e coletivas em seus anseios praticáveis, ignorar seu atributo de cidadão. No máximo sonha e discute vagamente um “mundo melhor” que ele mesmo não faz nada para edificar. Se o planeta se tornasse de fato esse lugar sonhadamente melhor, é certeza que dele o individualista de sonhos vagos não participaria.

Ele se torna automaticamente um alienado porque transfere a cidadania e responsabilidade social que deveria exercer para outros, como governo, polícia, empresas e ONGs. Aliena-se da sociedade em que vive, é um pedaço de um quebra-cabeça de que não se interessa em participar.

Integrantes da civilização urbano-industrial capitalista contemporânea são extremamente propensos aos costumes sociais individualistas. Considerando a tendência da maioria dos seres humanos de preferir aguardar ordens superiores e assimilar idéias previamente mastigadas por pessoas dotadas de autoridade e prestígio antes de agir, em vez de pensar por si só e procurar resoluções por conta própria, e a escassez de valores provedores de coesão social e estímulo ao exercício da cidadania em prol do próximo, não é de surpreender a hegemonia do pensamento de querer o melhor só para si mesmo e para a família em detrimento da responsabilidade sobre o bem comum.



UM BRASIL ALIENADO

O Brasil tinha quase tudo para ser um país desenvolvido e na liderança de desenvolvimento de todo o Hemisfério Sul, e até tem um histórico de rebeliões, mobilizações e esboços de revoluções libertárias vindas de todas as classes sociais ao longo dos séculos. Apesar disso, esse histórico parece ter descontinuado depois do gradual enfraquecimento dos valores de coesão social por conseqüência da consolidação da mídia como um oficioso “quarto poder” nessas cerca de duas décadas de Nova República democrática. Essa nova “autoridade” terminou trazendo um controle cultural e psicológico para o povo que vivia e vive carregado de motivos para se rebelar contra as muriçocas que todos os dias o picam e o deixam doente. É esse controle que tira do povo, como numa anestesia, o incômodo dessas “muriçocas”, mesmo elas permanecendo ativas e agressivas. Essa não-reação às picadas é o que pode ser percebido como a alienação, ou pelo menos a versão mais crítica dela.

Eis uns exemplos estrangeiros. A Argentina ainda não é “primeiro mundo”, mas, ao menor sinal de aumento da violência ou de ameaça de crise financeira nacional, como aconteceu anos atrás, massas populares vão às ruas, e com seu patriotismo e civismo fazem história, fazem notícias que ecoam nos jornais do mundo inteiro, vide os panelaços contra a crise econômica e os protestos contra a violência na capital Buenos Aires. Não é aquele civismo tolo de apenas cantar hino, venerar a bandeira e torcer para a seleção nacional de futebol, mas sim o civismo prático, o sentimento patriota que impele a protestar, manifestar-se, fazer valer os direitos dos cidadãos e a integridade de seu país. Em 2001, os argentinos derrubaram dois presidentes em pouco tempo e, com muito suor, se livrariam de medidas opressoras como o “corralito”, a limitação das movimentações financeiras populares. O governo seguinte, para não cair também, teve que suar para ajeitar a economia e abolir a opressão financeira que sufocava as pessoas. É vendo isso que vem a certeza de que a Argentina, por mais inveja e “freguesia” que tenha em relação ao futebol brasileiro, aplica no Brasil grandes goleadas em outro campo, o cívico-cidadão. Na França, em 2006, milhares de jovens foram às ruas e conseguiram com todo seu fervor derrubar uma proposta de lei que diminuía os direitos do primeiro emprego, manifestando insatisfação com algo que não havia sido democraticamente debatido. E na antiga Iugoslávia, em 1999, o povo foi protestar pedindo a renúncia do ditador Slobodan Milosevic e foi vitorioso, livrando a Europa de sua última ditadura.

Já no Brasil, há uma tendência velada de que em alguns anos a situação beire o realmente insuportável em âmbitos como os da segurança, saúde e transporte públicos. Além disso, há um leque de “sufocos” não tão emergenciais, mas ainda assim em situação quase crítica, como a escalada da violência urbana, as reincidências de corrupção no Distrito Federal, a perpetuação da má distribuição de renda e a degradação ambiental. Sob o olhar de um cidadão consciente, seria mais do que hora de ir para a rua e exigir a contenção desses problemas sérios, exigir a “dedetização” contra as “muriçocas” que picam e adoecem a nação. Mas não é o que acontece. A verdade é que poucos se prestam a manifestar em público insatisfação com a situação, enquanto a grande massa continua paralisada, metade hipnotizada pelas músicas da moda, pelos campeonatos estaduais e nacionais de futebol e nas novidades “quentes” das novelas, metade ansiosa por soluções e providências mas resignada e inepta perante seu próprio poder de exigi-las.



ALIENAÇÃO CULTURAL

Pobres, médios e ricos parecem seguir uma mesma tendência, um mesmo padrão de alienação vindo da atual cultura de massa, ou, se preferir, a porção mais popular e universalizada, vide o que vem da TV, dos rádios e das diversões presenciais. Há algumas diferenças que dependem do dinheiro disponível da família, mas não são suficientes para tornar distinto o poder da alienação pela diversão perante cada classe sócio-econômica.

A pessoa pobre, ao contrário das outras classes, não tem tanta condição de ir com freqüência a shows, baladas, festivais e eventos como vaquejadas e rodeios, costuma contentar-se com a TV, o rádio, o bar, o futebol, o “pagodão” e as revistas de fofocas e novelas, além do carnaval, das festas juninas e, para muitos, a igreja. O médio já tem uma condição boa de ir àquela balada, aos “forrozões” de vários fins de semana seguidos ou à praia badalada do litoral distante. Já o rico faz tudo que o médio pode, com a diferença de que compra um camarote, freqüenta baladas mais caras e sofisticadas e/ou usa um carro mais possante para viajar.

O que há de comum é a escassez de opções culturais que despertem a consciência, o esclarecimento, o “aprendizado com diversão”, a cidadania e a exteriorização dos desejos sociais. O que a pessoa aprende de positivo quando ouve um “hit” que a induz a se alcoolizar ou a brincar de encoxar o vento? O que ela aprende quando assiste à novela, fora assimilar a mais nova modinha sem graça ou a nova gíria trazidas pelos personagens da trama? Qual o conteúdo construtivo de uma revista de celebridades? Reparemos que a maioria das pessoas, sem distinção de classe econômica, não inclui em seus gostos a leitura que não seja tematizada em religião ou auto-ajuda. O comum entre as diversões das classes é a consolidação de uma cultura de massa hedonista e individualista que traz prazeres momentâneos e despreza as preocupações sociais e a auto-edificação imaterial.



ENTÃO DIVERSÃO É ALIENAÇÃO?

Essa dúvida exclamada pode preocupar aquele que lê sobre diversões que alimentam a alienação e por isso deve ser esclarecido esse possível mal-entendido. Quem é aquele que, depois de um dia de estudos intensos e/ou trabalho árduo, vai se negar a assistir a um programa dedicado ao entretenimento na TV ou a ir pro show das bandas do estilo musical que ele tanto curte, com o pretexto de que “isso é alienação”? É odioso também a pessoa estar ouvindo, por exemplo, alguma boy-band americana e ser importunado por um discurso de que está servindo a um capitalismo predatório, ao “sistema”, à alienação e outros radicalismos. O ser humano, mesmo o mais engajado, precisa imprescindivelmente de prazer, distração, entretenimento e lazer. Não é desejável, considerando a sopa cultural brasileira, que as novelas saiam do ar, que ritmos mal-tematizados sejam extintos ou que músicas sem conteúdo sejam proibidas. O que deve ser feito sim é que a população reserve um pouco de si para a preocupação social e política, ainda que tomando um pouco de seu tempo livre para exercer cidadania voluntária. Diversão para as massas sim, alimentação da alienação não. As pessoas podem ouvir os Mamonas Assassinas que quiserem, mas não devem centrar sua vida totalmente na dualidade ocupação-lazer em detrimento de tudo que há em seu redor. Seria ideal também que houvesse um compromisso dos músicos, empresários de TV, cartolas de futebol e outros organizadores de diversões populares em exercer apenas o provimento de lazer e descontração e moderar os riscos de indução cultural à alienação, imbecilização e auto-corrosão do povo, mas sem censura ou hostilidade contra os gostos das pessoas. É razoável que haja gente que pense nas músicas dos Mamonas e no prazer do sexo mas também pense, em outro momento, nas ruas esburacadas e na política. De forma alguma o povo brasileiro deve abandonar o lado sadio de sua cultura de diversão e se tornar sério demais e concentrado apenas nas causas coletivas. O autocontrole rígido de formas de entretenimento faria o povo se tornar chato e desanimado.



MAIS SOBRE ALIENAÇÃO E CONFORMISMO: UMA DINÂMICA SÍNCRONA

Há alienação desde a Antiguidade, quando as religiões teocráticas ensinavam ao povo que ele foi predestinado à servidão e o rei era um ente divino. Se na época foi a religião a comandante da alienação popular, hoje é ela ainda em grande parte das igrejas, num método teológico diferente, mais a mídia e as políticas públicas de valorização da cultura mais popular, vide carnaval, futebol e subsídios a alguns shows e eventos de qualidade questionável, como vaquejadas.

É possível dizer que há quatro fatores determinantes do pensamento alienado hoje: a mídia, as diversões presenciais de massa, o pensamento capitalista-individualista-materialista de vida e, às vezes, a doutrinação religiosa de muitas igrejas. Depois do processo de alienar, a conseqüência é que temos um povo que se preocupa muito com sua sorte individual e não pensa no coletivo com o mesmo vigor. Vale mais o salário do mês, a aprovação na disciplina acadêmica moderadamente complicada, o show imperdível de rock, os últimos capítulos da novela do horário nobre, etc. do que os alagamentos que castigam o bairro, a superlotação dos ônibus da cidade, a má gestão vinda de tal prefeitura do município da pessoa, a corrupção no Congresso Nacional, o preconceito sofrido pelos ateus e afro-religiosos, etc.

Alienados, como não se preocupam se o lado coletivo está ruim, vivem conformados, acomodados, acostumados com as mazelas públicas. Muitas pessoas, uma porção significativa da população, felizmente são mais esclarecidas sobre os interesses populares que não são atendidos pelo Poder Público. No entanto, vêem a mídia criticar e condenar o método de protestar nas ruas e também não vêem a disposição de ninguém ao seu redor – leia-se amigos e parentes – para ir à rua manifestar-se. Pouca gente arrisca ir sozinha para manifestações com medo de arrastão ou de apanhar da polícia. Alguns baderneiros se lançam nos protestos já para bater nos policiais ou destruir o patrimônio público, e isso prejudica seriamente o reconhecimento do método mobilizador de protesto de rua. Visto tudo isso, muito poucos aceitam participar de passeatas e realizam mobilizações de volume humano insuficiente para chamar a atenção do Poder Público. Numa seqüência de haver a população que não quer protestar mais os protestos pequenos que pouco ou nada conseguem, vai se formando um ciclo vicioso: a população é inepta, as pessoas não-alienadas frustram-se e terminam somando-se à população inepta, que lhes traz frustração e conformação. É um sobe-e-desce igual à convecção do ar: a indignação esquenta a pessoa e sua vontade de protestar sobe ao céu, mas a frieza da maioria da população esfria tudo isso e essa vontade vai lá para baixo até o próximo evento que incite comoção.



GENTE INTERESSADA NA ALIENAÇÃO

Todo mundo que entende de política sabe que por trás de cada um da maioria dos desmandos da elite sócio-política e da continuidade intocada dos mais diversos males coletivos está um interesse escuso. No caso da alienação e do conformismo generalizados, está um evidente propósito, vindo de alguns, de que tudo continue como está, sem reclamações legítimas.

A manutenção do povo sob esse controle cultural e intelectual permite, entre outras coisas, que políticos mal-encarados continuem fazendo o que bem querem em Brasília, empresários expandam seus empreendimentos sobre espaços naturais, os 10% mais ricos da população continuem abocanhando cerca de metade das riquezas brasileiras, os bispos de igrejas mal-intencionadas continuem acumulando fortunas com dízimos dos fiéis enganados, pecuaristas permaneçam lucrando alto sobre a morte massiva de animais sofredores e oligarquias detenham perpetuamente o tão desejado poder político. Tudo isso é muito benéfico para a manutenção do estado de riqueza e opulência dessas gentes. Do mesmo jeito que um imperador jamais quer abdicar de seu poder, a elite sócio-econômica brasileira faz de tudo para não perder sua hegemonia perante o povo.

Essa categoria de pessoas interessadas na letargia cidadã quase generalizada compreende todos aqueles que deixam evidente que se beneficiam dela e de suas implicações e gostam disso. Inclui políticos, megaempresários, magnatas da comunicação, bispos, latifundiários e outros poderosos. É relevante, no entanto, que não se deve generalizar para toda a classe rica o fato de alguns serem genuinamente interessados nisso. Há muitos sujeitos de riqueza faustosa que praticam o bem, tanto não desejam o sustento de poder pelo controle da pirâmide sócio-econômica como manifestam consciência positiva e, por boa vontade, financiam ou tutelam atividades de responsabilidade sócio-ambiental.

O que se pode fazer contra o gosto de alguns pela situação é continuar esclarecendo as pessoas, propagando a conscientização, de modo que numa época mais próxima possível haja a transformação da vontade popular de suplantar os interesses dominantes em práticas de cidadania e de consciência ativa.



FALHAS NA EDUCAÇÃO

A educação, do jeito que está hoje no Brasil, é uma poderosa aliada da alienação e do individualismo. É interessante notar diversos vícios e falhas que a fazem ser, em vez de uma ferramenta de conscientização, incitação de cidadania e edificação intelectual, um “instrumento de lâmina cega” que impõe muitos ensinamentos dispensáveis e até equivocados, não freia preconceitos e instrui os alunos a almejarem pouco além de conquistas econômicas.

É certo que muitas escolas estão começando a mudar o direcionamento objetivo de sua pedagogia de modo a formar cidadãos e não apenas servos perpétuos do mercado de trabalho, então é interessante focar na educação tradicional, a qual muitos colégios ainda teimam em utilizar.

Em português, grande parte dos ensinamentos são esquecíveis, tanto que o que mais vemos por aí são pessoas que cometem erros ortográficos freqüentemente e mal sabem redigir uma redação coesa, coerente e conscientizadora. Nas outras ciências humanas, há mais decoreba e teoria estática do que ensinamentos vívidos e de utilidade prática, incluindo a História que não prioriza a participação do povo e seu cotidiano e ainda prioriza os fatos e as personalidades políticas. As ciências exatas e naturais até cumprem razoavelmente seu papel, tanto que são a prioridade da maioria dos alunos em seus planos de futuro.

Não há nesse sistema tradicional que grande parte das escolas públicas e parte ainda significativa das particulares ainda adotam uma priorização do valor da cidadania, do uso do conhecimento para utilidades públicas, da responsabilidade social de cada indivíduo, da filosofia em si e sua importância na compreensão do mundo, da prevenção e combate de preconceitos. Também percebemos que essa mesma sociedade cujos integrantes só pensam em si mesmos foi instruída em sua maioria nessa tradição. Há uma avassaladora deficiência da educação em deter o individualismo e a alienação. As pessoas não aprendem a se integrar à sociedade como membros responsáveis e de potencial coletivo. Enfim, tornam-se parte de um povo dividido em milhões de “povos” que são as famílias e os círculos de amizades.



COMO O JORNALISMO MANIPULADO AJUDA A ALIENAR

É fato que muitas emissoras de comunicação, que administram jornais, revistas, emissoras de rádio e TV e portais de internet, possuem donos que gozam de muita influência cultural, social e até política na população. E não é por menos que eles possuem bastantes amigos no meio político. São integrantes da já citada turma interessada na não-mudança social.

É certo e evidente que certos eventos e ações públicos não agradam a certos políticos e empresários aliados que querem manter seus interesses íntegros. Daí, vêem que podem transmitir o acontecimento daquele evento de forma manipulada, lançando mão de um ponto de vista que não vá de encontro aos seus interesses.

Há um exemplo fácil de entender. Supõe-se que uma turma de centenas de sem-terra e sem-teto protesta contra a construção de uma barragem cuja existência beneficiará alguns políticos do Ceará. Há implicações positivas nessa construção, como o possível desenvolvimento econômico de algumas cidades administradas pelo clã político interessado, e negativas, como devastação ambiental, inundação de terras férteis e desalojamento de uma população significativa. E os sem-terra e sem-teto querem evitar a todo custo que essas conseqüências negativas aconteçam, não querem que uma população já humilde perca para que outra em melhor condição possa ganhar, e sendo assim agem no bloqueio da estrada que leva à barragem. Então os políticos envolvidos na questão e os donos da construtora da obra pedem ajuda à cúpula de certa emissora de TV, administrada por aliados de interesse político. A equipe de jornalismo processa, vai ao local, registra a invasão, e após isso ocorre uma edição, uma decisão sobre os aspectos que irão ao ar e os que serão omitidos. Então o resultado: no telejornal da noite, o bloqueio da obra é reportado pela emissora num tom crítico, aparece todo um esquema animado do que a construção fará quando estiver pronta, como abastecer de água e energia uma população tal, e os empreiteiros e políticos são entrevistados com direito a ampla palavra. Já os militantes contrários à barragem, tratados como os vilões da coisa, só têm direito praticamente à veiculação de uma ou duas frases, além de os efeitos negativos serem sumariamente omitidos no esquema citado. Eis uma reportagem manipulada, mostrando tudo de bom e respeitando o lado dos poderosos e omitindo tudo de ruim e menosprezando o dos manifestantes, transgredindo qualquer noção de imparcialidade jornalística que se aprende na faculdade.

O alvo da manipulação são quase sempre notícias envolvendo questões sociais e políticas. Com o lado dos movimentos sociais e ativistas, que é o menos agradável aos interesses dos donos das emissoras e de seus amigos políticos, sendo diminuído e demonizado e o lado desses poderosos sendo aumentado e bem divulgado, não há chance de haver uma boa imagem pública por parte dos oprimidos. Isso gera imagens distorcidas dos movimentos de ativismo de causas sociais, políticas, animais, etc., que quase sempre desagradam os poderosos. Assim, quem vai para rua protestar raramente é visto como herói, mas sim como o vilão que interrompeu o funcionamento da cidade, como o baderneiro que só queria o pretexto da causa ativista para destruir o patrimônio público, como o arruaceiro que queria brigar com a polícia. Até porque, como foi dito mais anteriormente, existe gente do mal, mas é minoria, mas a mídia termina generalizando essa minoria. Enfim, quem luta contra a ordem opressora é exibido como gente do mal e isso contamina o público que vê os telejornais manipulados e lê os jornais e revistas de notícias maquiadas. Para quem vive isso, a ordem opressora é a correta e quem se opõe a ela é um agressor meliante. Isso aliena as pessoas, tolhe seu interesse em se opor a essa ordem que tantos problemas coletivos lhe proporciona. Por isso é que a manipulação jornalística gera alienação. É inclusive um recurso freqüentemente utilizado em regimes totalitários para controlar a população, e funciona muito bem.



CIDADANIA CONTRA A ALIENAÇÃO E O CONFORMISMO

Como muitos acreditam, a cidadania prática é a salvação do povo num país democrático. Se todas as pessoas que se dizem cidadãs mas tão pouco se preocupam em exercer esse atributo de forma voluntária fizessem jus a esse substantivo, o Brasil seria bastante diferente. No mínimo poderia ser que não mudássemos radicalmente os problemas nacionais, mas o país seria reconhecido no mundo como uma nação de povo guerreiro e militante por causas de bem comum, um lugar de quem quer o melhor para a coletividade. A cultura atual infelizmente prioriza a vida individualista, em que o raio de interesses de muitos parece ser restrito aos parentes e amigos. Além disso, como já dito, a educação brasileira desde sempre distorceu ou diminuiu de certa forma o ensinamento do exercício da cidadania. Costumamos aprender que exercê-la é apenas cumprir os deveres previstos na Constituição Federal, como votar e prestar serviço militar, e louvar os símbolos nacionais, como a bandeira, o hino e o escudo. Pouco absorvemos na escola sobre atos de cidadania e civismo voluntários, como atos filantrópicos e o próprio ativismo social, daí há essa falta de ânimo cidadão no país. E o detalhe mais importante para nós nisso é que onde sobra alienação e conformismo falta espírito cidadão e coesão social. Praticar a cidadania é não ser alienado nem absolutamente conformado perante a realidade coletiva do país. O cidadão só o é verdadeiramente quando luta pelo bem do povo de seu país e também do mundo. E isso deve ser divulgado pelas pessoas.
Autor: Robson Fernando


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