Macunaíma E Venceslau Pietro Pietra: Representações Identitárias



Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra:
Representações identitárias
Iza Reis Gomes

A autora Neide Gondin, no livro A invenção da Amazônia, capítulo I – Como a constatação da habitabilidade do antimundo modifica a ciência e o imaginário europeus – apresenta a constatação do europeu diante do novo mundo, perante à presença de um mundo que iria, segundo ela, abalar as estabilidades existentes no velho mundo. "Foi um período marcado pela certeza e parodaxalmente pela dúvida" (GONDIN, 1994:11).
E o que detonou essa insegurança, esses questionamentos foi o que encontraram ao realizarem as viagens marítimas, destacando-se Portugal: Dom Henrique, o Navegador, Cristóval Colón, Américo Vespucci e outros. A América era chamada de zona tórrida, Mundus Novus, um lugar que, a princípio é amedrontador à figura do europeu, pois causa medo, angústia, é algo que iria desordenar todo o conhecimento do velho mundo. A visão do europeu em relação ao homem do novo mundo era povoada de elementos estranhos: "unicórnios passeavam por entre vegetação encantada, composta por ervas capazes de curar qualquer doença, podendo ser encontradas próximas à fonte da eterna juventude" (GONDIN, 1994: 16).
A autora nos descreve como era a visão do europeu em relação ao novo mundo. Eram identidades diferentes se encontrando, eram construções identitárias (por parte dos europeus) se confrontando com construções identitárias diferentes das encontradas.
No livro América Mágica – Quando a Europa da Renascença pensou estar conquistando o Paraíso – de Jorge Magasich-Airola e Jean-Marc de Beer, temos também a descrição do olhar europeu sobre o desconhecido, sobre o diferente:

Nem Marco Pólo nem os monges viajantes puderam se liberar do poderoso imaginário medieval: ao retornarem, afirmavam ter visto ou ouvido falar de monstros e de terras fabulosas, e assim as suas narrativas reconfortavam uma Europa crédula em sua fé na existência de mundos extravagantes. (MAGASICH-AIROLA E JEAN-MARC, 2000: 48)

Sempre que imaginamos o outro, possuímos um parâmetro, um modelo, há uma cultura que nos impede de ver o outro como ele é; mas também caímos na questão de o outro ser a partir de mim, da visão que temos dele.
No texto Por que e para quê viaja o europeu (1989), Silviano Santiago escreve que o europeu queria ver a sua imagem repetida por todo o universo, o novo mundo seria apenas a ocasião para um outro espelho, e o indígena, barro para se confeccionar um duplo e semelhante.
Um escritor que criou um herói brasileiro foi Mário de Andrade, com a obra Macunaíma – o herói sem nenhum caráter (2002). Mas essa obra não repete os discursos anteriores, não confirma um herói forte, bravo, vencedor, pelo contrário, é preguiçoso, covarde, não é fiel, não pertence a um lugar, não simboliza uma identidade, mas é uma forma em plena metamorfose, em plena mudança, transformação.
O personagem Macunaíma e Venceslau Pietra Pietro serão considerados aqui, dois discursos identitários, duas representações que simbolizam respectivamente, a cultura móvel, flutuante, em plena fluidez e a cultura pronta, petrificada, dominadora, que pretende subjugar o que é diferente.
O teórico Edouard Glissant na obra Uma poética da diversidade (2005) pensa a relação com o outro como um processo, pensa o espaço com a sua diversidade, a identidade como algo fluido. Pensa o lugar histórico que se abre à discussão. Macunaíma é esse representante da diversidade, é essa identidade rizomática, capaz de metamorfosear em um príncipe de olhos azuis e depois volta a ser um índio preto retinto. É a cultura compósita brasileira, mistura de várias raças, várias histórias, vários discursos e lugares.
A identidade de Macunaíma não está formada, não é fechada em si, mas aberta a relações com os outros. Macunaíma não se prende a grades como território, religião, raça, língua ou história, atravessa, perpassa por todas essas fronteiras.

a) Atravessa territórios:
No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma vida parida. (ANDRADE, 2002 23) (grifo nosso)

b) Atravessa religião e raça:
Mas a água era encantada porque aquele buraco na Lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas. (ANDRADE, 2002: 48) (grifo nosso).

c) Perpassa as línguas:
Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. (ANDRADE, 2002: 106) (grifo nosso).
Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraquéitã, não sorriais! (ANDRADE, 2002: 95) (grifo nosso).

Macunaíma é um dessacralizador de regras, de condutas, de normas, caminha pela tortuosidade, pelo considerado inconveniente, contra as verdades estabelecidas, contra os paradigmas cristalizados. Constrói um caminho pelos rastros das histórias, das possibilidades, deixando consequentemente resíduos para se seguir ou construir outros percalços.
A questão do rastro-resíduo é colocada por Edouárd Glissant. Segundo o autor, "viver a totalidade-mundo a partir do lugar que é o nosso, é estabelecer relação e não consagrar exclusão" (GLISSANT, 2005: 80). "O universal transformou-se em diversidade, e esta o desordena" (GLISSANT, 2005: 81). Assim, o que dita as regras não é mais a norma, mas o acúmulo das relações. Com isso, temos o pensamento rastro-resíduo que traz não um ser, mas a divagação, a explosão, a desagregação em relação à norma. Macunaíma não segue normas, pelo contrário, rompe com elas, viola o estabelecido, quebra as continuidades.
Já o personagem Venceslau Pietro Pietra representaria o contrário dessa construção. Mesmo tendo o hibridismo como característica (Piaimã, italiano, europeu, Venceslau Pietro Pietra , peruano), simbolizaria a cultura européia, algo fechado, que quebraria algo em construção, que tenta se estabelecer como uma idéia dominadora. Mesmo sendo Venceslau Pietro Pietra, peruano, italiano, Piaimã, um ser híbrido, age como dominador, como um ser devorador de gente. Consideramos Pietro Pietra um representante da cultura atávica, aquela que tenta dominar a cultura compósita, não se abre a outras relações, não pensa o outro como sujeito, mas como objeto que pode ser incorporado à cultura colonizadora. Venceslau Pietro Pietra era considerado "comedor de gente", ou seja, comedor de identidades, de subjetividades, transformador da muiraquitã em um pedra de coleção, algo de colecionador. Uma visão européia de devorar e matar a cultura diferente, a cultura que causa ameaça.
O teórico Michel Foucault (1995) também trabalha a questão da identidade, pois o principal objeto de seus estudos foi o sujeito, o homem. Michel Foucault está inserido nos pilares da Análise do Discurso Francesa. A AD Francesa propõe um campo transdisciplinar, nasceu na crise epistemológica dos anos 60, época em que o Curso de Lingüística Geral de Ferdinand Saussure era a principal base de estudos lingüísticos. Os estudos centravam-se em sistemas e estruturas, sem a inserção do sujeito, do homem.
Michel Foucault trabalha com noções de sujeito, poderes e resistências. O poder não está em apenas um lugar ou alguns, mas em todos os lugares, são micro poderes e micro resistências. Foucault considera a identidade como produção, uma ação contínua, num permanente trabalho discursivo inacabado, flutuante e instável. Essa idéia dialoga com Souza Santos em Pela mão de Alice, ao afirmar que:

[...] mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem [...] escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis, em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso (SOUZA SANTOS, 2000: 135).

Com Souza Santos e Foucault, a idéia de identidade não é fixa, acabada, una, mas um processo, uma ramificação de rizomas, e não de raízes, lembrando Deleuze e Guattari na obra Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia (2004).
Dessa forma, as identidades são produzidas por jogos discursivos. No texto O sujeito e o poder (1995), Foucault afirma que as lutas discursivas giram em torno da busca da identidade.

Elas são uma recusa às abstrações, uma recusa à violência do Estado econômico e ideológico que ignora que somos indivíduos, e também uma recusa à inquisição científica e administrativa que determina a nossa identidade. Em suma, o principal objetivo dessas lutas [...] é o de atacar uma técnica particular, uma forma de poder que se exerce sobre a vida cotidiana imediata. [...] É uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos (FOUCAULT, 1995).

Assim, a identidade está ligada aos poderes, ou melhor, aos micros poderes que geram micro lutas dentro de nossa sociedade. Não é apenas afirmar que sou brasileiro, suíço, africano, mas uma identidade que resulta de micro lutas dentro do próprio território nacional ou não, são formas de viver em relação a todas as outras categorias de saberes e poderes. Foucault ainda afirma que há três tipos de lutas pela construção da identidade:
a) aquelas que se opõem às formas de dominação (étnicas, sociais e religiosas);
b) aquelas que denunciam as formas de exploração que separam o indivíduo daquilo que produz; e
c) aquelas que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão aos outros (lutas contra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão. (1995)

Segundo Foucault (1995), a última luta é a que prevalece na sociedade ocidental moderna, pois são muitas formas de subjetivação que são colocadas como representações de individualização. Considerando essa individualização, essa liberdade não como uma construção de identidades insubmissas, pelo contrário, são relações de poder que foram racionalizadas e centralizadas. Mas sempre há fugas, resistências, pois nessas relações de poder há a fronteira constituída pela estratégia de lutas e os pontos de insubmissão, são forças constituintes, ações recíprocas, sempre com trocas eternas. Quando Venceslau Pietro Pietra é considerado comedor de gente, comedor de identidades, de subjetividades, está inserido nessa rede a qual Foucault teoriza: um poder que tenta subjugar o outro, um poder que tenta assujeitar o diferente, o estranho, no caso, Macunaíma.
No trecho em que o herói sem nenhum caráter recupera a muiraquitã, presente de Cia, depois encontrada nas mãos de Pietro Pietra, percebe que a pedra não simboliza mais a sua bela, "Muiraquitã, muiraquitã de minha bela, vejo você, mas não vejo ela!" (ANDRADE, 2002: 136), é apenas uma pedra, uma metáfora de algo cristalizado, de uma cultura que nas mãos do estrangeiro, transformou-se em tradição petrificada, em uma identidade aprisionada. Mas Macunaíma não se deixa abater por esse acontecimento, continua a ser uma rede dialética de várias culturas, vários olhares.
Ao propor uma desconstrução da identidade nacional para mostrar um novo olhar, uma reconstrução identitária, Macunaíma nos apresenta uma ruptura, uma quebra de barreiras, uma metamorfose que engloba o espaço, a língua, a religião, o corpo. Macunaíma rompe com os mitos, transforma-os. A identidade do herói sem caráter é ambígua, ao mesmo tempo em que é vencedor, também é vencido.
Alguns pontos encontrados em Macunaíma:
• Personalidade compósita – mistura de várias culturas.
• Rompimento com o estabelecido – prima pela descontinuidade.
• Caracterização: índio / negro / retinto / branco.
• Narrativa sem conclusão.
• Texto aberto.
• Não objetiva a construção de uma identidade pronta ou formada.
• Objetiva a diversidade, a pluralidade, a flutuação.
• No trecho em que deixa a consciência numa ilha, simboliza que vai ao encontro do outro disposto a uma relação de troca, desnudo de possíveis preconceitos, de possíveis discursos prontos.
• É um viajante que busca a descontinuidade, o entremeio e não os caminhos já percorridos.
• Deixa rastros para serem seguidos ou construído outros percalços.
• Está sempre à disposição do outro, transforma-se em relação ao outro: uma francesa para Pietro Pietra.
• Perpassa por todas as esferas da linguagem: língua, corpo, espaços.

Macunaíma é uma figura que simboliza uma representação identitária brasileira, uma visão de muitos olhares, falares e histórias. Não ocupa uma posição, um espaço, mas vários lugares, vários discursos e saberes. E Macunaíma escolhe a oralidade, a cultura normatizada para contar suas peripécias. Um papagaio que conta a um homem a vida do herói.

A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí do séqüito daqueles tempos de dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador. E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói (ANDRADE, 2002: 222)

LUTAS SABERES
(confrontos – resistências) (escolhas e exclusões)

* Macunaíma – Pietro Pietra. * Transformações de mitos.
* São Paulo – Floresta. * Caipora.
* Território civilizado – território * Boiúna.
primitivo. * Muiraquitã (cultura).
* Luta pela dessacralização da * Rupturas.
Identidade brasileira. * Papagaio.
* Provérbios refeitos.


IDENTIDADES PODERES
(rizomáticas) (submissões e insubmissões)
* Macunaíma (pluralidade, * Muiraquitã.
diversidade.) * Medo como poder.
* Pietro Pietra * Norma culta - Oralidade
* Ci, mãe do mato. * Macunaíma – Amazonas.
* Não continuidade * Colonização francesa.
* Carta para Icamiabas.

O esquema tenta representar a movimentação híbrida, flutuante encontrada em Macunaíma. São construções que conotam discursos móveis, instáveis. Não há elemento que pertença apenas a uma esfera (identidade, poder, saber ou lutas), mas passeia por todos os espaços, por todos os lugares. E se Macunaíma terminasse com a muiraquitã e de volta à terra com sua tribo, não continuaria a idéia de rizoma, fincaria uma raiz. Mário de Andrade produziu uma obra aberta, inconclusa, resistente à idéia de fim, pois apesar de dizer no final "tem mais não", pelo contrário, a identidade brasileira continua sendo construída, modificada, transformada, com todos esses elementos flutuantes da história sócio-cultural de nosso país.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Macunaíma – o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Klink Ed., 2002. (obra de 1928).
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Editora 34, 2004.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
__________. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1997.
__________. Vigiar e punir: o nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
__________. Outros Espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
GLISSANT , Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva & Guaracira Lopes Louro. 7 ª ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2003.
MAGASICH-AIROLA, Jorge e DE BEER, Jean-Marc. América Mágica: quando a Europa da Renascença pensou estar conquistando o Paraíso. Tradução Regina Vasconcellos. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
RUBIM, Antonio Canelas. Cultura e Atualidade. Salvador. Ed. UFBA, 2005.
SANTIAGO, Silviano. Por que e para quê viaja o europeu? In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das letras, 1989.
SOUSA SANTOS, B. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.


Autor: Iza Reis Gomes


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