Sobreviventes do dia-a-dia



Depois de uma andança de ônibus de nossa casa para o centro da cidade – ou para qualquer outro lugar –, a pé no lugar de destino e novamente de coletivo na volta, costumo sentir que fui um sobrevivente do dia, porque não fui visado por bandidos, não tive meus objetos roubados nem minha vida ou integridade física ameaçada. É um alívio estar dentro de casa depois de um dia em que eu poderia ter sido vitimado por alguma violência. Assim é em todos os dias em que saio de casa para algum lugar aonde não posso ir a pé.

Sair do lar para trabalhar, estudar, consultar um/a médico/a, divertir-se... é invariavelmente perigoso. Quando voltamos, nos sentimos aliviados/as por estarmos sã(o)s e salvos/as. Chegar em casa ileso/a e com nada roubado é visto como uma vitória em vez de como algo totalmente normal. Mesmo quem não leva bolsa e quase nada carrega no bolso fora um documento de identidade e um dinheirinho da passagem volta suspirando um ufa por não ter sofrido o traumatizante terror psicológico da ameaça armada.

Estresse pós-traumático leve? Poderia até ser – embora eu duvide, uma vez que não tenho pavor de sair de casa e “desbravar” minha cidade –, mas eu e milhões de outras pessoas no Brasil não sentiríamos esse temor se não estivéssemos num país de cidades tão violentas, nas quais reina inquestionavelmente a desigualdade social extrema que condena jovens à socialização para o crime e onde a polícia existe mas é incapaz, mesmo quando numerosa, de estabelecer uma onipresença nas ruas.

Aqui o trauma de “receber” um meliante que aponta uma faca, canivete ou revólver para nós querendo tudo o que carregamos de valor não se dissipa totalmente, mas perpetua-se. Mesmo se nós nos mudamos para uma outra cidade urbanamente avantajada, não há garantia alguma de ser substancialmente mais difícil sermos abordados/as por criminosos na rua, porque todas elas estão infestadas com a pobreza e a criminalidade.

Estamos nos aproximando da universalização do perigo de andar até mesmo pelo próprio bairro que habitamos – o qual já domina diversos pedaços das grandes cidades brasileiras. Daqui a pouco, até ir à mercearia da esquina será motivo de nos considerarmos vitoriosos, sobreviventes, porque conseguimos atravessar a rua e fizemos nossa comprinha sem termos sido aterrorizados/as por violentos ladrões.

E não adianta a secretaria de segurança de nosso estado dizer que “os homicídios diminuíram 18%” ou “os assaltos caíram 8% no último mês”. Isso não basta. Para que deixemos de sentir diariamente como se estivéssemos sobrevivendo em vez de vivendo depois de um dia fora de casa, os índices de violência teriam que diminuir no mínimo dos mínimos 90%, uma vez que hoje são altíssimos. Só uma grande diminuição torna nossas cidades minimamente protegidas.

Também não basta encher a rua de polícia anunciando que foram efetivados 5 mil guardas, uma vez que ela jamais terá o poder da onipresença nem atenderá instantaneamente ao 190. Precisa-se sim mudar as condições em que as pessoas são socializadas: da falta de lazer decente, emprego rentável e educação cidadã e qualificada nas comunidades pobres até a perpetuação dos valores sociais que exaltam perversões como o consumo imoderado de bebidas alcoólicas, comportamentos violentos e a competição capitalista que ofusca o valor da vida e da honestidade. E, claro, nós como povo cobrarmos essas mudanças persistentemente.

Só se houver esses ajustes, tão necessários hoje, poderemos deixar de ver a saída de casa ao trabalho ou estudo como um perigo do qual podemos (ou não) sobreviver, mas sim como algo realmente corriqueiro e que não nos inspira temor nem nos é uma ameaça.
Autor: Robson Fernando


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