CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL: O CANTO DA SEREIA DOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI ( * )



1. INTRODUÇÃO.




O crime organizado é uma modalidade específica de criminalidade que envolve uma série de preceitos. Os diversos autores atribuem à criminalidade organizada certas características básicas, próprias de uma atividade que se disseminou pelo mundo inteiro. Mingardi (1998, p.69), por exemplo, discorre sobre quinze características que definiriam o crime organizado, tais como a venda de serviços ilícitos, controle territorial, códigos de honra e outros. Silva (2003, p.28-31) aborda as suas diversas características, dentre elas, o alto poder de corrupção e de intimidação, a estrutura piramidal e a necessidade de “legalizar” os lucros obtidos com o crime (lavagem de dinheiro). Mendroni (2007, p.11) contextualiza que:

São inúmeras as organizações criminosas que existem atualmente. Cada uma assume características próprias e peculiares, amoldadas às próprias necessidades e facilidades que encontram no âmbito territorial em que atuam. Condições políticas, policiais, territoriais, econômicas, sociais, etc. influem decisivamente para o delineamento destas características.(...).
Organização criminosa tradicional, como acima referido, pode ser concebida como um organismo ou empresa, cujo objetivo seja a prática de crimes de qualquer natureza – ou seja, a sua existência sempre se justifica por quê -, e enquanto estiver voltada para a prática de atividades ilegais. É portanto, empresa voltada à prática de crimes.




Depreende-se, das diversas definições e conceituações, que a atividade criminal organizada possui alguns elementos indissociáveis, que são a prática ilícita de crimes, associada a uma estrutura hierárquica e compartimentada de atividades - que incluem a intimidação -, dentro de um ou mais territórios delimitados. É um fenômeno mundial, que possui ligações – inclusive – transnacionais, como o tráfico de drogas ou armas, por exemplo.
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, ocorrida na cidade italiana de Palermo, em 11 de dezembro de 1999, ratificada pelo Brasil em 29/01/2004 e promulgada pelo Decreto Nº 5015, de 12/03/2004 (JUSBRASIL) , define no ítem a de seu artigo 2, que

"Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material




Como se observa na definição da ONU não é necessário pensar em crime organizado como uma estrutura com dezenas de pessoas. Bastam três para a definição se efetivar. Com efeito, parece que o tamanho da organização – seja na área territorial, seja no número de integrantes, não é determinante. Os elementos determinantes são a prática ilícita, a hierarquia, a força ou o poder de intimidação e a atuação delimitada. Um traficante que tenha tão somente dois “funcionários”, um que venda a droga e outro que faça a “segurança” é um representante do crime organizado. Enquanto ele próprio (o traficante) “compra” o “material” de outros traficantes maiores, o “vendedor” faz a rede de contatos (consumidores) com a finalidade de escoar a droga, enquanto o terceiro providencia os meios para que as transações ocorram com “tranqüilidade”.
Esta aparente “simplicidade” que pode abrigar desde organizações como a exemplificada acima como aquelas que possuem centenas de integrantes ( e, aí sim, com estruturas hierárquicas complexas – como as que incluem “olheiros” – aqueles que observam a chegada da polícia ou de membros rivais; “aviõezinhos” – pessoas encarregadas do transporte de pequenas quantidades de drogas; “soldados” - indivíduos armados responsáveis pela “segurança” do bando; “gerentes” – responsáveis pelas atividades num determinado território, etc., todos relacionados com a narcotraficância). Estas redes e sub-redes criminosas movimentam uma quantidade enorme de dinheiro e são responsáveis, direta ou indiretamente, por vários crimes perpetrados diariamente, tais como homicídios, roubos, corrupção, etc.
O FBI, espécie de polícia federal americana, apesar de acreditar que o crime organizado é atividade própria de criminosos de etnia estrangeira, expressa a preocupação com suas atividades, que podem envolver transações estimadas em 1 trilhão de dólares/ano (FBI).

It isn’t easily measured, but we know it’s significant. Organized crime rings manipulate and monopolize financial markets, traditional institutions like labor unions, and legitimate industries like construction and trash hauling. They bring drugs into our cities and raise the level of violence in our communities by buying off corrupt officials and using graft, extortion, intimidation, and murder to maintain their operations. Their underground businesses—including prostitution and human trafficking—sow misery nationally and globally. They also con us out of millions each year through various stock frauds and financial scams.
The economic impact alone is staggering: it’s estimated that global organized crime reaps illegal profits of around $1 trillion per year.



Este expressivo montante parece justificar as “íntimas” relações entre as atividades ilícitas e a lavagem de dinheiro. O criminoso, para aproveitar seus lucros, precisa dar uma “aparência lícita” ao dinheiro oriundo dos crimes que pratica.
Além das características básicas da criminalidade organizada e da elevada quantia de dinheiro que a mesma movimenta, é pertinente examinar – sem aprofundamento, pelo escopo do trabalho - um pouco da gênese deste fenômeno. Silva (2003, p.19-20) lembra que


A origem da criminalidade organizada não é de fácil identificação, em razão das variações de comportamentos em diversos países, as quais persistem até os dias atuais. Não obstante esta dificuldade, a raiz histórica é traço comum de algumas organizações, em especial as Máfias italianas, a Yakuza japonesa e as Tríades chinesas. Essas associações tiveram início no século XVI como movimentos de proteção contra arbitrariedades praticadas pelos poderosos e pelo estado, em relação a pessoas que geralmente residiam em localidades rurais, menos desenvolvidas e desamparadas de assistência dos serviços públicos.




Portanto, muitas destas organizações surgiram sob a égide de uma “justiça social” desenvolvida como uma alternativa a políticas públicas inadequadas no trato com os segmentos menos afortunados da população. Não é por acaso que os mafiosos americanos, em 1931, pacificando algumas famiglie (famílias) estabeleceram um órgão de cúpula que “Representava a associação americana batizada como ‘La Cosa Nostra’: nome utilizado para contrapor-se a Cose Loro – coisas deles” (MAIEROVITCH, 2008. p.46). Depois a máfia siciliana – imitando a congênere americana – também mudou o nome e – ainda segundo Maierovitch – decidiu “trocar máfia por Cosa Nostra e substituir coshe (bandos) por famiglie (famílias)”. Ou seja, na visão deles, tudo possivelmente se resumia no estabelecimento de áreas de negócios, em que os bandidos são considerados “funcionários” e as atividades criminosas, simplesmente “áreas” da empresa. Esta parece ser a visão comum das organizações criminosas: uma alternativa viável para soluções que o Estado foi incapaz de dar para alguns segmentos da população.
E, apesar das graves conseqüências que os resultados de crimes como o tráfico de drogas pode trazer, existe todo um “outro lado” – por exemplo, com a aplicação do dinheiro do tráfico - no qual os indivíduos beneficiados tendem a valorizar. Beck (2004, p.90) alerta que

De fato, a outra face do crime organizado mostra, por exemplo, a criação de novos postos de trabalho a pessoas não envolvidas – ao menos diretamente – com a atividade criminosa. Como resultado, a melhora das condições econômicas e sociais destes indivíduos e o próprio aquecimento das economias locais, especialmente pela circulação do capital entre consumidores que, na maior parcela das vezes, eram excluídos do sistema econômico.
Embora com objetivos que não sejam necessariamente “benévolos” (eis que visam a obtenção da “simpatia” da população dos locais em que atuam), o crime organizado, não raro, organiza até mesmo serviços públicos (postos de saúde, escolas, segurança, lazer, dentre outros) que o próprio Estado jamais foi capaz de garantir. É o caso típico do tráfico de drogas em relação aos favelados.



Portanto, apesar de propiciar algumas “vantagens” , próprias do sistema de garantias que os criminosos preconizam para si mesmos, o contraponto que a comunidade inserida num “território” deste tipo paga também é bastante emblemático: uma certa lei do silêncio que se impõe pela intimidação; muitas vezes a abdicação de uma busca mais enfática de certos serviços públicos – que na visão dos criminosos poderiam afetar os “negócios”; e, talvez, o preço mais caro que a sociedade pague: o fornecimento de mão de obra barata para os criminosos, oriunda do ócio e da falta do que fazer das crianças e dos adolescentes menos favorecidos da sociedade. Evidentemente que a mão de obra criminosa – no que tange a crianças e adolescentes – não é só das áreas mais carentes. Mas, que delas advém o maior número – isto é incontestável.





2. O CANTO DA SEREIA.




A criminalidade organizada reúne três vertentes que atraem muitos jovens – especialmente aqueles que não possuem quaisquer opções reais de desenvolvimento ou de obter um bom emprego neste mundo neo-liberal: a primeira vertente relaciona-se com as atividades criminosas, capazes de dar um certo status ao adolescente iniciante, primeiro por lhe propiciar um lugar na hierarquia do crime e, segundo, pelo acesso ao uso de armas – por exemplo; a segunda vertente, relaciona-se ao fascínio do dinheiro, que circula muito facilmente no crime organizado, sendo fácil entender porque um jovem consegue, talvez num único dia, ganhar tanto quanto demoraria para obter em dois ou três meses de trabalho honesto, num emprego regular; a terceira vertente relaciona-se com um certo sentimento de injustiça, sentimento este voltado para as instituições oficiais incapazes de suprir as necessidades dos adolescentes facilmente cooptados pelo crime organizado. Estes três elementos parecem constituir um poderoso atrativo para muitos jovens, no mundo inteiro.
Aliás, o crime organizado vê na criança e no adolescente presas fáceis tanto no sentido de usá-los como artífices de crimes, como uma fonte permanente de exploração, que de qualquer forma também fomenta o crime. Maierovitch (2008, p.317) lembra que

Mais de 30 milhões de jovens mulheres são exploradas no Sudeste asiático. Usando o jargão regional elas têm “dono”, como se fossem objetos ou animais colocados em comércio. São revendidas ou alugadas em bordéis. Na Alemanha, uma adolescente russa submetida à prostituição ganha 7500 dólares por mês e entrega 7 mil dólares à organização criminosa que a explora e evita sua expulsão do país.


Talvez uma das conseqüências mais graves – além da própria utilização de adolescentes na prostituição – seja a de fornecer, para todo este contingente, um certo modelo de vida do qual não há muita escapatória. Estes adolescentes, que muito provavelmente deixaram de estudar e estão no mundo do crime, não sabem viver de outra forma. Ainda em Maierovitch (2008, p.318):

A Tailândia e a Índia transformaram-se em centros de recrutamento e venda de crianças para bordéis. Essas crianças provêm da China, do Laos, do Camboja, do Vietnã e de Mianmar. Algumas acabam vendidas para matrimônio. Quando menores de 14 anos e com menos de 35 quilos são repassadas aos Emirados Árabes, onde viram jóqueis, montando camelos em corridas milionárias.


No Brasil, especificamente, o problema nos grandes centros parece gravitar em torno do tráfico de drogas, dos desmanches de carros roubados e dos jogos clandestinos. Queiroz (2005, p. 40) contextualiza:

Nossa experiência profissional, no trato diário com a polícia judiciária, por quase vinte anos ininterruptos, permite dizer que o crime organizado brasileiro, nos dias que correm, apóia-se sobre cinco pilares: tráfico de entorpecentes, desmanches, corrupção ativa e passiva nas áreas de jogo de bicho e dos estabelecimentos clandestinos de jogos, furto e roubo de veículos e furto e roubo de cargas.


Cotidianamente, a imprensa brasileira retrata episódios e ocorrências relacionadas a adolescentes envolvidos com a criminalidade citada por Queiroz. Recentemente, dois adolescentes, de 15 e de 16 anos, armados, foram presos após roubar um carro na cidade de Campinas (SSP-SP, 16/07/2009). Garotos ainda menores se envolvem – freqüentemente – em ocorrências semelhantes (FOLHA DE SÃO PAULO, 25/06/2009). Mas o tráfico de entorpecentes parece exercer o fascínio maior: primeiro por possuir mais “postos de trabalho”, com as suas divisões hierarquizadas. Segundo por permitir um certo “plano de carreira”: um “olheiro” pode se tornar um “gerente” se houver dedicação ao longo de um certo tempo. Além disso, a variedade dos “postos” de trabalho propiciam um maior número de recrutados. Queiroz (2005, p.41) retratando a cidade de São Paulo de – mais ou menos – 15 anos atrás, ou seja, com dados de apesar de absurdos já em muito superados, apresenta o seguinte retrato:

O Denarc estimou em 5000 (cinco mil) os pontos de venda de crack espalhados pela cidade, com cerca de 50.000 (cinqüenta mil) pessoas trabalhando para o tráfico, conforme depoimento de autoridade policial prestado à CPI do Crime Organizado, no ano de 1995 (...).


Moreira (2009) discutindo o tema da Campanha da Fraternidade de 2009, da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, “Fraternidade e Segurança Pública” contextualiza que:

Da temática e do cenário, destacamos um alerta presenciado todos os dias nos noticiários e em nosso cotidiano: o envolvimento cada vez mais precoce de crianças e adolescentes com o mundo do crime organizado e do narcotráfico. Neste sentido, a afirmação popular de que crianças e adolescentes têm uma vida pela frente, muitas vezes, não está se confirmando na prática. A realidade tem mostrado que elas são vítimas da violência em suas múltiplas faces. Nossa infância convive com um conjunto de vulnerabilidades como o abandono, as agressões, maus tratos, trabalho infantil, exploração sexual, negação do direito à educação, pedofilia na internet, drogas e criminalidade.


Os jovens, portanto, vítimas e artífices da violência cotidiana, alimentam esta realidade macabra, atraídos pelas vertentes fascinantes do crime organizado, mas sempre geradores de mais violência. Adorno, Bordini e Lima ( 1999) observam que:

Desses atrativos resultam a inserção dos jovens nas quadrilhas seja como "chefe", aquele que tem autonomia e comanda, seja como "teleguiados", aqueles que se sujeitam e obedecem - divisão de trabalho instituinte de interminável guerra entre quadrilhas cujo desfecho é, como se disse, a morte prematura desses jovens, cuja média de vida não ultrapassa os 25 anos. Assim, mesmo considerando que o número de jovens envolvidos com o crime violento seja inferior ao de jovens assassinados,12 tudo indica que um pequeno número de jovens infratores seja responsável pelo crescimento das infrações violentas. Isso significa que alguns desses jovens vêm se tornando mais violentos e agressivos.



As discussões sobre o crime organizado ainda devem levar em consideração o grau de infiltração que esta atividade possui nos mais diversos níveis da sociedade. Enquanto as atividades da base piramidal são diluídas em centenas ou milhares de pequenos atores, as atividades que exigem grandes quantias de dinheiro, que constituem o ponto mais alto da hierarquia criminosa, estão nas mãos de uns poucos que se alimentam e enriquecem das práticas disseminadas. Santos (S/D) enfatiza que:

o tráfico de drogas seria a principal atividade do crime organizado no Brasil, mercado consumidor e rota de drogas dos países andinos para Estados Unidos e Europa, em geral adquiridas em troca de carretas e cargas roubadas nas estradas brasileiras e garantidas por assassinatos de esquadrões de extermínio, próprios ou alugados. Segundo a imprensa, a principal manifestação do crime organizado nacional, dedicado ao tráfico de cocaína e de armas, roubo de carretas e assassinatos, com ação sobre vários Estados brasileiros, seria encabeçada por políticos e empresários caídos em desgraça, como Hildebrando Paschoal, deputado federal (AC) cassado e preso, acusado pelo Ministério Público do Acre de assassinar o motorista Agilson Santos Firmino com uma moto-serra; José Gerardo de Abreu, deputado estadual (MA) cassado e preso, acusado de assassinar o delegado Stênio Mendonça; William Sozza, empresário de Campinas (SP), herdeiro de empresas de PC Farias, que teria participado do assassinato de Stênio Mendonça; Augusto Farias, deputado estadual (AL), que seria mandante dos assassinatos do próprio irmão PC Farias e de Suzana Marcolino, em Alagoas. Todas essas pessoas se reuniriam para decidir a compra de droga, a distribuição de armas, o roubo e remessa de carretas para a Bolívia e, finalmente, quem deveria viver ou morrer, conforme declarações à CPI do Narcotráfico[25] do arrependido Jorge Meres – ex-empregado da organização, preso como partícipe de alguns dos fatos puníveis referidos, que teria seu perdão judicial proposto, seria submetido a cirurgia plástica para modificar o rosto e receberia nova identidade pessoal e pensão vitalícia para viver em paz no exterior, nos termos do programa de proteção de testemunhas do Governo brasileiro[26].



Outro problema que o tráfico traz é o de “demonizar” os usuários, como se eles fossem a fonte de todos os problemas. Zaluar (2004, p.74) observa que:

O tráfico de drogas, organizado internacionalmente, mas localizado nas suas pontas nos bairros mais pobres das cidades, além de criar centros de conflito sangrento nessas vizinhanças pobres, além de corromper as instituições encarregadas de reprimi-lo, também reforçou a tendência a demonizar os usuários de drogas.

Apesar de alimentar a alta hierarquia da criminalidade e, ao mesmo tempo, iludir-se com um certo “domínio” da própria vida, o adolescente - na busca de “oportunidades” alternativas -, encontra a fria realidade que pode ser observada neste trecho de Soares (2006, p. 115):

Não vamos perder tempo com estatísticas. O diagnóstico já é bastante conhecido. Mesmo assim, para que você tenha uma idéia mais precisa do tamanho dessa tragédia, lembre-se do seguinte: mais de 40 mil pessoas são assassinadas todos os anos em nosso país. A maioria das vítimas é jovem do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, em geral pobre e negra. O problema é tão sério que já há um déficit, na estrutura demográfica brasileira, de jovens nessa faixa etária do sexo masculino.



Portanto, as três vertentes que fascinam os adolescentes e que os atraem para o crime organizado parecem ser a representação do velho Canto das Sereias. Circe aconselhou o herói Ulisses a evitar as sereias, seres metade pássaros, metade mulheres, com vozes maravilhosas. Eram seres belíssimos que atraíam os navegantes para a morte.

Com o coração angustiado, disse então a meus companheiros: “Amigos, os oráculos que me foram revelados por Circe, ilustre entre as deusas, não devem ser conhecidos apenas por um ou dois de nós; vou, pois, comunica-los a todos, para que saibais o que nos pode perder, e o que nos pode preservar da Quere fatal. Ordena-nos ela que, antes de mais nada, evitemos as enfeitiçadoras Sereias, sua voz divinal e seu prado florido; aconselha que só eu as ouça. Mas atai-me com laços bem apertados, de sorte que permaneça imóvel, de pé, junto ao mastro, ao qual deverei estar preso por cordas. Se vos pedir e ordenar que me desligueis, apertai-me com maior número de laços. (ODISSÉIA, Rapsódia XII, p. 160-161).




Os laços com os quais as crianças e os adolescentes precisam ser amarrados são aqueles oriundos de um tecido social consistente, capaz de dar oportunidades a todos. Tal qual o Canto das Sereias, é muito mais fácil recomendar o remédio que efetivamente ministrá-lo e salvar o paciente. De qualquer forma, a batalha contra o Crime Organizado e seus tentáculos precisa de “laços” consistentes, advindos da Educação, da Saúde, do Saneamento Básico, da Segurança Pública, da Habitação, dentre outras instâncias. Além disso, outras vertentes sedutoras advém nas “necessidades” diuturnamente criadas pelos meios de comunicação, próprias de uma sociedade de consumo. Bauman (1998, p.55) lembra que:

(...) Todavia, simultaneamente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos, ou entre os que foram seduzidos e passam a agir do modo como essa condição os leva a agir e os que foram seduzidos mas se mostram impossibilitados de agir do modo como se espera agirem os seduzidos. A sedução do mercado é, simultaneamente, a grande igualadora e a grande divisora. (...) Os que não podem agir em conformidade com os desejos induzidos dessa forma são diariamente regalados com o deslumbrante espetáculo dos que podem faze-lo. O consumo abundante, é-lhes dito e mostrado, é a marca do sucesso e a estrada que conduz diretamente ao aplauso público e à fama. Eles também aprendem possuir e consumir determinados objetos, e adotar certos estilos de vida, é a condição necessária para a felicidade, talvez até para a dignidade humana.

O adolescente – imerso neste contexto, das classes menos favorecidas – trava uma batalha heróica, diuturnamente, talvez maior que a de Ulisses na sua famosa epopéia. Este adolescente ouve o canto enfeitiçado do crime organizado. Ouve as promessas de uma ilusão que, quase sempre, acaba numa unidade de recuperação de menores infratores ou numa mesa fria de algum IML.






REFERÊNCIAS.


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MAIEROVITCH, Wálter Fanganiello. Na Linha de Frente pela Cidadania. A Criminalidade dos Potentes.São Paulo: Editora Michael, 2008.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2007.

MINGARDI, Guaracy. O Estado e o Crime Organizado. São Paulo: IBBCRIM, 1998.

MOREIRA, Gilvander. Violência que atinge nossas crianças e adolescentes, artigo de Antônio Coquito. Publicado em 04/03/2009. Disponível em: http://www.ecodebate.com.br/2009/03/04/ . Acesso em 17/07/2009.

ODISSÉIA. Homero. Coleção Grandes Clássicos. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

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SOARES, Luiz Eduardo. Segurança tem saída. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

SSP-SP. Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Notícias. Adolescentes armados são presos com carro roubado. Publicado em 16/07/2009. Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/home/noticia.aspx?cod_noticia=16590 . Acesso em 17/07/2009.

ZALUAR, Alba. Integração Perversa: Pobreza e Tráfico de Drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

( * ) Originalmente, trabalho apresentado à disciplina A Sociedade Globalizada e o Mal Estar na Contemporaneidade, do Programa de Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei, da Universidade Bandeirante de São Paulo.
Autor: Herbert Gonçalves Espuny


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