A PUNIÇÃO ANTECIPADA



INTRODUÇÃO.

No primeiro capítulo do livro Vigiar e Punir, Foucault sob o título “O Corpo dos Condenados” descreve o suplício ao qual Damiens, um condenado em dois de março de 1757, foi submetido. O relato foi obtido na Gazette d’Amsterdam. O relato é feito em detalhes e todo o espetáculo parecia atender a duas vertentes fundamentais: a primeira era o efetivo cumprimento da pena; o segundo era o espetáculo público que servia, ao mesmo tempo, de alerta àqueles que pensavam em delinqüir e a realização dos desejos sádicos da comunidade.
Foucault descreve, ainda, a evolução pela qual os castigos aos condenados passa: do suplício, ou seja, do castigo corporal – no qual a detenção em cárcere tinha a mera função de evitar a fuga até o dia do “espetáculo” – para o efetivo encarceramento, no qual o castigo físico era substituído pela privação da liberdade, numa tortura muito mais mental que – na maioria das vezes – física. Já o “espetáculo” não era mais oriundo das “forcas”, das “chibatadas” ou dos “esquartejamentos” e sim das sessões de julgamento, nas quais as discussões e a sentença eram os atores principais. Foucault (1987, p.13) contextualiza;

"A execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência.
A punição vai se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro (...). " .

O fim do suplício e de um suposto domínio do corpo abriria, para Foucault, uma era de “sobriedade punitiva”. Apesar das penas posteriores envolverem também certos castigos físicos, como a tortura praticada pelos carcereiros ou o regime de “trabalhos forçados”, a ênfase estava na privação da liberdade e numa “dor moral”, como conseqüência do processo. Dela para cá, com alguns recessos e avanços, as coisas não mudaram muito: a privação da liberdade, na maioria dos países, constitui a punição mais freqüente para os criminosos.
Nos tempos atuais, as sociedades democráticas garantem uma série de prerrogativas ao acusado: dentre outras, direito à ampla defesa, direito a um advogado, direito de buscar todos os meios admitidos em juízo para provar a inocência.
Um fenômeno bastante próprio do século XX e agora do início do XXI é a imprensa. Em países livres, uma das vertentes fundamentais é a imprensa, que transita por todas as instâncias sociais e de governo, transmitindo informações. Como fundamento dos países democráticos, a imprensa livre ajuda a preservar as instituições, mas tem o poder de “construir” e “destruir” imagens e reputações muito rapidamente. Quando este poder não é usado convenientemente, com justiça, pode tornar-se um problema. Na justiça o cidadão acusado pode se defender... Já da imprensa, nem sempre consegue de forma eficaz.


O PODER DA IMPRENSA.

A imprensa moderna, por vezes, é chamada de quarto poder. A capacidade de enfatizar determinados eventos e, até, subestimar outros propicia um jogo de poder que não raro é decidido nas editorias especializadas, pela editoria-chefe e, até, pelos donos do veículo de comunicação.
A questão subsidiária desta realidade é pertinente à imagem do cidadão: exposto nos meios de comunicação, ganha notoriedade automática: se vinculado a coisas boas, a sociedade aplaude e endeusa; se ligada a coisas ruins – como crimes, por exemplo, a sociedade condena instantaneamente. Esta glorificação ou condenação não está vinculada a quaisquer provas mais sólidas: basta aparecer na mídia para que um juízo sumário seja feito. Se a notícia for persistente ou recorrente, tudo o que nela estiver contido ganha ares de verdade absoluta.
Quando o contexto estiver diretamente ligado a práticas criminosas, as coisas se complicam sensivelmente: indícios ou meras suspeitas podem se transformar em condenações antecipadas.
Um dos casos mais emblemáticos neste sentido ficou conhecido, em São Paulo, como o caso da escola de Base. Sinteticamente, o Globo On Line (13/11/2006) assim descreveu:
"Em março de 1994, vários órgãos da imprensa publicaram uma série reportagens sobre seis pessoas que estariam envolvidas no abuso sexual de crianças, todas alunas da Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, na capital. Os seis acusados eram os donos da escola Ichshiro Shimada e Maria Aparecida Shimada; os funcionários deles, Maurício e Paula Monteiro de Alvarenga; além de um casal de pais, Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França.
De acordo com as denúncias apresentadas pelos pais, Maurício Alvarenga, que trabalhava como perueiro da escola, levava as crianças, no período de aula, para a casa de Nunes e Mara, onde os abusos eram cometidos e filmados. O delegado Edelcio Lemos, sem verificar a veracidade das denúncias e com base em laudos preliminares, divulgou as informações à imprensa.
A divulgação do caso levou à depredação e saque da escola. Os donos da escola chegaram a ser presos. No entanto, o inquérito policial foi arquivado por falta de provas. Não havia qualquer indício de que a denúncia tivesse fundamento.
Com o arquivamento do inquérito, os donos e funcionários da escola acusados de abusos deram início à batalha jurídica por indenizações. Além da empresa 'Folha da Manhã', outros órgãos de imprensa também foram condenados, além do governo do estado de São Paulo. Outros processos de indenização ainda devem ser julgados.".

Os proprietários da escola receberam, recentemente, uma pequena indenização. Mas, nem de longe, foram devidamente recompensados por todo o sofrimento pelos crimes que, efetivamente, não cometeram. O psicanalista Lima (2005) lembra que, exatamente como o retratado numa obra de ficção em 1980, “Acusação” (produção de Oliver Stone e direção de Mick Jackon), a Escola Base foi uma história de injustiças que a imprensa ajudou a criar e amplificou:

"Tanto na ficção como na realidade, os donos destas escolas sofreram linchamento moral: tiveram que fechar as escolas, os funcionários perderam os empregos, sofreram grave estresse e foram acometidos de doenças como a depressão, fobias, patologias do coração; também receberam inúmeras ameaças por telefonemas anônimos, e isolaram-se da comunidade.
A mídia que espetacularizou a falsa denúncia e, sem nenhuma prova, lançou manchetes reproduzidas como se fosse uma onda espalhada pelo país, terminou estigmatizando os acusados de “monstros da escola”, “escola de horrores”, que a “Kombi era motel na escolinha do sexo”, etc. Um comentarista do extinto programa televisivo Aqui Agora, do SBT, chegou a pedir a pena de morte aos acusados.".

Assim como este caso, outros ocorrem com certa freqüência: acusados que são, posteriormente, absolvidos... Investigados que tem o nome divulgado e passam a ter a fama de culpados, antes mesmo de serem processados. Enfim, uma série de arbitrariedades muitas vezes cometidas pelas pessoas que deveriam ser responsáveis pela segurança e bem-estar destes indivíduos. É indisfarçável o interesse de algumas personalidades em fazer o uso da imprensa no sentido de se auto-promover. Ora, os meios de comunicação já não prezam quaisquer filtros que represem notícias que dêem lucro, menos ainda se tais notícias advierem de órgãos oficiais.
Os próprios profissionais de imprensa têm uma certa resistência com os componentes da editoria policial. É sabido que há uma certa predileção pelo horrendo, pelo nefasto, pelo sanguinário... Acidentes em vias públicas atraem a atenção do público em geral. Notícias de crimes – em especial reportagens ao vivo que acompanhem ações como tiroteios ou prisões – costumam hipnotizar a massa. Muitos meios de comunicação fazem desta dinâmica uma forma de aumentar o faturamento. Rolim (2006, p. 186) comenta que “Se observarmos a atenção que as pessoas costumam dedicar ao crime – nos noticiários, nos filmes de ficção ou mesmo na literatura -, chegaremos a conclusão de que o crime e, especialmente, a violência fascinam.”.
Profissionais sérios costumam desprezar tais manobras. Souza (2008) descreve esta situação em artigo postado no FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública):

"O jornalismo policial, ainda, é uma área "marginal" nos veículos de comunicação. E os profissionais que cobrem essa área formam uma espécie de casta, vista com ressalvas. Existe a presunção de que é uma área pouco nobre (a classe valoriza mais os assuntos ligados à política e à economia). Muitos dos que fazem cobertura "de polícia" são repórteres novatos ou os mais antigos, que não se adaptaram à modernização dos processos de comunicação.
As editorias de polícia continuam sendo, com raríssimas exceções, os berçários e os cemitérios das redações. É preciso que os donos e os operadores da mídia compreendam, de vez, que se foi o tempo em que os crimes eram "assuntos de polícia". São fatos que se encaixam na esfera da segurança pública, portanto, influenciam a qualidade de vida dos cidadãos e, como tal, merecem tratamento qualificado e tão nobre quanto aos outros assuntos.".

Apesar da consciência de alguns profissionais, que se preservam de tais práticas e condenam quem delas se utiliza, o jogo do lucro não permite maiores considerações: se os donos determinam e o mercado estimula – comprando a mídia impressa ou dando audiência para a mídia eletrônica, os profissionais são obrigados a disponibilizar tais matérias, que estimulam o julgamento antecipado, a execração pública da imagem e – na maioria das vezes – submete o cidadão exposto ao cumprimento de uma penalidade antecipada, pois ainda não possui a qualidade de condenado.


CONSIDERAÇÕES FINAIS.


As sociedades modernas são pautadas pelas mais variadas vertentes. Uma delas, seguramente é o esforços da manutenção dos Direitos Humanos. É o conjunto de princípios e leis que visam garantir a integridade física e moral dos cidadãos. E que garantem, também, a liberdade de expressão e de pensamento. A Constituição Federal Brasileira de 1988, no seu artigo 5°, expressa vários destes princípios, dentre os quais o da presunção da inocência.
Outra vertente está atrelada ao princípio democrático que estabelece a liberdade da imprensa como um dos preceitos de fundamental importância. Uma imprensa livre é a garantia que a sociedade tem de ser informada de todos os seus contextos, inclusive de suas mazelas. Contudo, a imprensa deve e precisa ser custeada. As empresas de mídia vivem da comercialização de seus espaços publicitários e esta dinâmica não está a salvo de pressões das mais variadas. A audiência é certamente um bem precioso, perseguido continuamente.
Quando a imprensa, na busca de garantir seu faturamento, expõe, em suas matérias, pessoas suspeitas de cometerem fatos criminosos, é criado um estigma: o suspeito passa a ser – mesmo que de forma involuntária – culpado. É apontado como se criminoso efetivamente fosse, sem ter passado – muitas vezes – pelo competente inquérito policial, pelo devido processo criminal e não foi sequer julgado – instância que permitiria atribuir-lhe qualquer culpa. A bem da verdade, para se afirmar – com certeza – que a culpa, pelo sistema jurídico é certa, seria necessário que o caso transitasse em julgado, expressão jurídica para uma causa para a qual não há mais recurso.
Desta forma, o suplício físico foi substituído por um outro – não aquele institucionalizado, mas um outro alternativo, criado pela imprensa. Damiens (aquele esquartejado no primeiro capítulo de Vigiar e Punir, de Foucault) se vivo e criminoso hoje fosse, provavelmente – antes de qualquer julgamento – teria seu rosto exposto na mídia impressa e eletrônica. Teria, bem possivelmente, expostos diversos aspectos de sua vida privada e, se família tivesse, seus membros igualmente seriam estigmatizados.
A diferença é que, ao invés de ser morto pelo suplício, correria o risco de se suicidar... Se não, provavelmente perderia o emprego, seus filhos não freqüentariam mais a mesma escola e a família acumularia horas de sofrimento até a decisão de culpado ou inocente.
Se, ao final, Damiens conseguisse provar sua inocência, poderia ingressar na justiça com ações de reparação. Os desmentidos na imprensa quase nunca ocupam os mesmos espaços das notícias falsas ou equivocadas. Além disso, o interesse mórbido é muito maior pela acusação, que pelo desmentido... Damiens poderia, também, obter alguma indenização. Os valores, provavelmente, não seriam suficientes para compensar os gastos com advogados, a perda do emprego e os outros incômodos decorrentes da situação.
Se condenado fosse, já teria sido punido antecipadamente com todos estes transtornos.
De uma forma ou de outra, a violação dos Direitos Humanos estaria presente. Em 1757, a barbárie física. Em 2008, a barbárie da violação da imagem.



REFERÊNCIAS.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da Violência nas Prisões. 29 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

GLOBO ON LINE. Entenda o Caso da Escola Base. Publicado em 13/11/2006. Disponível em; http://oglobo.globo.com/sp/mat/2006/11/13/286621871.asp,
Acesso: 08/12/2008.

LIMA, Raymundo de. Delação e Escola: O Caso da Escola Base. Revista Espaço Acadêmico n° 54, novembro/2005. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/054/54lima.htm . Acesso em: 08/12/2008.

ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006.

SOUZA, Robson Sávio Reis. Mídia e Violência: O papel da imprensa na segurança pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Publicado em 18/04/2008. Artigo disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/
Consultado em 24/08/2008.
Autor: Herbert Gonçalves Espuny


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