Estado melhor é Estado sem cruz



(Resposta ao artigo de Luiz Domingos de Luna chamado “Estado sem cruz” ou “O Estado laico” - http://blogdocrato.blogspot.com/2009/08/estado-sem-cruz-luiz-domingos-de-luna.html)

É necessário responder com refutação a um artigo que, pregando que o Estado brasileiro ostentar cruzes cristãs é bom, tenta influenciar a opinião de quem o lê. Aqui explico, descrevendo as partes do texto respondido, por que essa ideia é para lá de equivocada.

Em primeiro lugar, me incluo entre as pessoas defensoras de que não existe “necessidade” nenhuma de impor a cruz, seja lá em que sentido, em organismos que servem a gentes de todas as religiões e também àquelas sem religião.

Em segundo, para rebater a informação trazida por cristã(o)s de que a cruz realmente teve uma contribuição importante pra o desenvolvimento histórico do Brasil, me é necessário afirmar que esta foi francamente negativa.

Em nome do deus cristão e com respaldo da Bíblia, destruiu-se centenas, se não milhares, de culturas indígenas. Seus deuses e deusas foram ultrajados/as, populações massacradas porque não aceitaram de bom grado a palavra de um “Senhor” que não era seu. O mesmo ocorreu com povos negros do outro lado do oceano, cujas guerras internas foram fomentadas com muito interesse pelos cristãos ibéricos e cujos povos foram escravizados de forma covarde e removidos à força para o Brasil, que manteve a vergonha da escravocracia até 1888 – ironicamente num Estado imperial oficialmente católico de acordo com a Constituição de 1824.

O cristianismo que dizem ter sido tão importante para a fundação deste país foi um dos maiores culpados pelo etnocentrismo assassino dos portugueses colonialistas. Para estes, só Jesus salvava, e, se não salvava, matava! Etnias não-cristãs que não seguissem as normas dos “senhores” invasores lusos eram taxadas de “selvagens” e “bárbaras” por gente que não olhava para seu próprio nariz. Os/as pobres silvícolas foram chamados/as de “pagã(o)s” como se esta fosse uma ofensa e, por assim serem, eram explorados/as e massacrados/as sem ninguém, tampouco Seu Jesus, para defendê-los/as das espadas e mosquetes dos impiedosos cristãos que “construíram a nação brasileira”.

Com o terreno “varrido”, ocuparam o país e meteram nomes de santos/as por todos os lugares. Aos brancos que chegavam, ensinaram que só Jesus é bom no mundo da religião e que valia tudo em nome dele. Às brancas, impuseram a submissão e a inferioridade com respaldo bíblico. Aos negros e negras, a sujeição à escravidão, também com apoio do livro “sagrado”.

Voltando à questão do laicismo, digo ao autor do texto aqui rechaçado que laicismo é neutralidade religiosa. Dizer que um país adotou cruzes e feriados cristã(o)s “sem prejuízo para o laicismo” é um sofisma, porque a Constituição atual, Artigo 19, proíbe que o Estado brasileiro se escore em qualquer religião específica ou simbologia religiosa.

E o Brasil “sempre conviveu pacificamente (sic)” com o cristianismo, com a propagação de símbolos e feriados de tal religião porque, até o início da república, era sim um Estado oficialmente católico e a palavra da lei laica não foi suficiente para banir a tradição da cruz e da estátua de santo/a nos Três Poderes.

E tal “pacificação” só foi alcançada ao longo da história pela força das armas que criminalizou os cultos indígenas e africanos. Para não sofrer a sanção da morte por serem “pagãs”, as pessoas inferiorizadas pelo Estado cristão – índios/as e negros/as– tiveram que adotar a cruz, contra toda a sua convicção espiritual, como símbolo a reger sua vida.

O Estado brasileiro nunca foi diretamente prejudicado pelo cristianismo explícita ou veladamente assumido por ele, mas a população sim, ora pelos motivos já descritos ora pelo fato de que, até hoje, uma vez que ainda adota crucifixos e feriados “santos” obrigatórios, exclui simbolicamente de sua regência toda a população não-cristã. Uma casa estatal decorada com símbolos religiosos só poderia conviver de forma realmente hamoniosa com uma população budista, muçulmana, candomblecista, hindu etc. se ostentasse também a Roda da Lei, o Crescente, o despacho, a Estrela de Davi, o Om...

E lembremos que várias denominações da própria cristandade, como a Assembleia de Deus, rejeita o símbolo da cruz por motivos, pasme, também religiosos. Assim sendo, a cruz que o Estado acolhe até hoje faz mal até para cristã(o)s. Sem falar nos santos e santas que não agradam protestantes.

Cita-se em seguida que “muitas cidades brasileiras têm buscado subsídios na religião para formar a sua unidade social e cultural, a religiosidade do povo brasileiro está bastante amadurecida para o discernimento entre um ato de fé e uma decisão jurídica de um estado laico que forma a unidade da nossa nação.”

Digo então: não, não está nada amadurecida. Se a crença dessas pessoas estivesse realmente madura, não estaríamos vendo um significativo êxodo de gente do catolicismo ao pentecostalismo, a outras religiões e até à descrença ateísta ou agnóstica. A “maturidade religiosa” era uma mentira que a sociedade só sustentou graças a repressivos valores sociais que caíram sistematicamente, se não totalmente, com a secularização da nossa cultura.

Outro trecho que deve ser contestado é o que fala que “a presença de símbolos cristãos nas repartições públicas no Brasil é somente o reconhecimento de um estado laico que convive pacificamente com um povo religioso.” Só se for convivência pacífica com um povo católico. Como digo, até mesmo certas denominações cristãs rejeitam a cruz como símbolo, sem falar dos santos que inconstitucionalmente enfeitam prefeituras como a de Igarassu/PE, rejeitados por quase todas as facções protestantes.

E se tivéssemos 15% de população muçulmana no Brasil? Para onde iria a tal “convivência pacífica”? Vemos cada vez mais que esta é apenas um engodo que só se sustentou por tanto tempo por causa do antigo monolitismo católico forçado que já se quebrou.

E vamos pôr uma vírgula no tal “povo religioso” da citação, porque este exclui toda a população irreligiosa – ateísta, agnóstica, deísta e teísta-sem-religião –, a qual vem crescendo bastante no país.

Chama a atenção também esta parte: “Creio que os símbolos presentes nas repartições publicas do Brasil estão mais direcionados à cultura religiosa entranhada na história do povo brasileiro do que uma apologia a qualquer credo”. Só se for crença do autor mesmo. A referida simbologia é uma óbvia apologia patrocinadora do catolicismo, herdada das épocas colonial e imperial.

“...do contrário teremos que negar ou apagar toda simbologia cristã presente na formação heterogênica do Brasil, ou da identidade do povo brasileiro”? Uma identidade criada na base do derramamento de sangue, da dominação e da imposição violenta, vide indígenas e escravos/as. É isso o que queremos perpetuar por símbolos para a posteridade?

Finalmente, é necessário afirmar que a memória da história do país, esta tão marcada pela opressão e pela dominação por elites que odiavam o bem comum, não será “ferida”, mas sim limpa, ainda que minimamente, com a derrubada dos símbolos da opressora supremacia cristã que ceifou diversos direitos humanos durante séculos e matou tanta gente que a ela se pôs contrária.

Ao autor do texto aqui criticado, não dedico ofensa, mas sugiro que desenvolva mais senso crítico em relação ao que sua religião fez com o povo brasileiro por tanto tempo, procure saber melhor o significado de um Estado laico e admita que o Brasil é um país não de unidade católica, mas de uma diversidade que foi por muitas épocas reprimida e só se vê relativamente liberta hoje – relativamente porque ainda temos ilegais normas sociais que estabelecem a intolerância contra não-cristã(o)s.

Nunca existiu nem existirá uma paz de verdade regida por governos escorados na cruz, mas sim a “Pax” de um domínio imposto. Um governo só será laico de verdade quando respeitar todas as crenças e descrenças de uma população, tratando-as com igualdade e não dando prevalência a nenhuma religião ou irreligião.
Autor: Robson Fernando


Artigos Relacionados


Estado Laico

Em Nome Da Cruz

O Brasil E O Fundamentalismo Religioso

SÓ A ReligiÃo Conduz A Deus?

A Cruz No Tribunal Ou O Tribunal Da Cruz?

As Cruzes Dos Times De Futebol (heráldica)

ExclusÃo Religiosa: DominaÇÃo E Conflitos