Fenomenologia E Atuacionismo: Desenvolvimento De Tecnologia Composicional Em Direção A Uma Estética Naturalizada.



1. Contribuições

O presente texto espera contribuir com o estudo sobre percepção, cognição e composição musical, apresentando, ainda que brevemente, alternativas explicativas para a percepção auditiva.

3.1. A experiência do corpo no mundo

Um dos aspectos centrais da Fenomenologia da Percepção destacados por M.-Ponty no início do trabalho, constitui-se em uma nova forma de entender e descrever a experiência perceptiva dentro da tradição filosófica. Sobretudo por retomar a própria experiência como objeto central de seu estudo e colocá-la como fundamento ontológico de toda e qualquer descrição sobre ela, como afirma o prefácio:

Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, (...), precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (Merleau-Ponty, 1996, p 3)

Ao retomar a experiência como um retorno ao fenômeno, antes da explicação desse fenômeno, M.-Ponty critica diretamente Descartes e a tradição dualista-cartesiana por colocar uma representação do mundo no lugar do próprio mundo vivido, e também por apontar para tal representação como fundamento de toda atividade cognitiva e mesmo perceptiva. Para M.-Ponty (1996, p. 7):

A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas.

As conseqüências dessa amostra do pensamento de M.-Ponty podem ser destrutivas para teorias que propõe seus fundamentos do conhecer em uma metafísica dualista-cartesiana, que tendem a deixar de fora a própria experiência cotidiana do conhecer e do perceber.

M-Ponty inicia sua Fenomenologia pela descrição do papel do corpo nas atividades perceptivas. Criticando o dualismo-cartesiano, o autor busca alternativas à perspectiva do corpo-objeto da fisiologia e da psicologia clássica. Inicialmente a noção de corpo fora da perspectiva dualista possibilita a M-Ponty dispensar a noção de representação mental e explicar a percepção como, em conjunto com a ação (movimento), formando um sistema que se modifica como um todo. Continuemos a citação:

Se, por exemplo, percebo que não querem obedecer-me e em conseqüência modifico meu gesto, não há ali dois atos de consciência distintos, mas vejo a má vontade de meu parceiro e meu gesto de impaciência nasce dessa situação, sem nenhum pensamento interposto. (M.-Ponty, 1996, p.160).

Nesse sentido é o corpo no mundo que dá condições de comportamentos considerados inteligentes. M-Ponty fala especificamente do hábito, mas como não estando nem no pensamento, ou seja, como algum tipo de representação mental, nem no corpo-objeto, mas no corpo como mediador de um mundo. Através do exemplo específico de um organista que vai tocar em um órgão que não conhece, o autor explica de forma não cartesiana o que ocorre. M-Ponty (1996, p. 201) afirma que o tal organista durante o curto ensaio que precede o concerto, (...) não se comporta como o fazemos quando queremos armar um plano. Mas ao contrário o organista usa todo tempo que tem para experimentar os pedais, as teclas, utilizar com seu corpo o instrumento, vestir-se dele. Segundo o próprio autor, o organista:

(...) avalia o instrumento com seu corpo, incorpora a si as dimensões e direções, instala-se no órgão como nós nos instalamos em uma casa. O que ele aprende para cada tecla e para cada pedal não são posições no espaço objetivo e não é à sua memória que ele os confia. Entre a essência musical da peça, tal como ela está indicada na partitura, e a música que efetivamente ressoa em torno do órgão estabelece-se uma relação tão direta que o corpo do organista e o instrumento são apenas o lugar de passagem dessa relação. (M-Ponty 1996, p. 201 e 201).

O corpo tem papel fundamental para a explicação fenomenológica da percepção, ele é o próprio espaço expressivo. É pela experiência do corpo no mundo que eu alcanço o mundo.

Na segunda parte da Fenomenologia M.-Ponty aborda o mundo percebido, não como um mundo objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela tradição dualista-cartesiana, nem como um mundo construído em mim como representação de um mundo objetivo fora de mim. Mas como um mundo vivido, experimentado. Segundo o próprio autor, pela experiência perceptiva me afundo na espessura do mundo. (M.-Ponty, 1996, p. 275.). Estando então afundado no mundo, não necessito copiá-lo dentro de mim. Isso não quer dizer que a fenomenologia negue a ocorrência de atividade neuronal, por exemplo. O que ocorre é que com a fenomenologia há uma orientação para que o foco do estudo da percepção esteja na experiência perceptiva, e não em suas supostas causas ou conseqüências. Em outras palavras, a orientação dualista direciona o estudo das atividades perceptivas como se fossem ou conseqüências ou causas das atividades neuronais (que seriam as próprias representações mentais), e a fenomenologia aponta para a necessidade de focalizar a experiência de um corpo em um mundo, se a intenção é estudar a percepção.

Com isso M.-Ponty (1996, p.429) apresenta uma definição de percepção completamente diferente daquela trazida pelo paradigma dualista-cartesiano, especialmente por uma vertente que explica percepção como processamento de informação. Entendendo o mundo, as coisas como correlativos de meu corpo, o autor afirma que a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas de nossa existência. Nesse caminho explicativo não faz sentido a noção de um sujeito que processe as informações recebidas de um mundo dado de antemão. Para a fenomenologia não há esse mundo dado antes da experiência, ou nas palavras do autor: o que é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa (...). (M.-Ponty, 1996, p.436). Também esse sujeito não existe desligado do mundo, M.-Ponty é muito claro e direto ao afirmar que: O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão um projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. (M.-Ponty, 1996, p.576). Assim, não há como argumentar em favor da percepção e da significação que ocorre na percepção, como re-elaboração construída por um sujeito que opera interpretando um mundo que lhe é estranho e externo. Mas abre-se a perspectiva para entender a percepção como certa maneira de agir no mundo, certa maneira de ser no mundo.

3.2 O conhecimento faz o mundo, ou, o mundo e eu nos fazemos na experiência.

Também é à tradição dualista e representacionista cartesiana que se encaminham as críticas de Varela, Thompson e Rosh (2003, p. 150) quando falam de um tipo de ansiedade cartesiana vivida com as questões sobre os fundamentos objetivos do mundo ou do sujeito que conhece o mundo: Ao tratar a mente e o mundo como pólos opostos – o subjetivo e o objetivo –, a ansiedade cartesiana oscila indefinidamente entre os dois na busca de uma fundação. De acordo com os autores, a postura dualista-cartesiana gera ansiedade na medida em que tais fundamentos objetivos (independentes da experiência) para o mundo e para a mente não vão sendo alcançados suficientemente. Tal ansiedade é ainda geradora de niilismo conforme afirmam na seqüência (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 152): (...) nossa ganância por um alicerce, seja ele interno ou externo, é a origem profunda de frustração e ansiedade. A concepção de cognição como um tipo de representação de um mundo dado, construída por uma mente é que temos apontado e criticado naquilo que chamamos de adesão ao paradigma dualista-cartesiano.

Além da preocupação crítica, Varela, Thompson e Rosh se incubem da tarefa de descrever cognição de uma nova maneira, não dualista e que leve em conta, sobretudo o conhecimento na experiência cotidiana do viver. Eles descrevem a cognição através da noção de enacção[1] ou atuação[2] , sempre como cognição corporificada, como ação situada. Nesse sentido apontam uma nova maneira de descrever atividades perceptivas, como a discriminação de cores, por exemplo:

Vimos que as cores não estão "lá fora", independentes de nossas capacidades perceptivas e cognitivas. Vimos também que as cores não estão "aqui dentro", independentes do mundo biológico e cultural à nossa volta. Contrariamente à visão objetivista, as categorias de cores são experienciais; contrariamente à visão subjetivista, as categorias de cores pertencem ao nosso mundo biológico e cultural. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 176)

A partir do caminho explicativo desenvolvido por M.-Ponty, Varela et al, vêm desenvolvendo o que denominam como abordagem atuacionista na ciência cognitiva, e isso muda profundamente a maneira de descrever cognição, percepção e seus funcionamentos. Os autores propõem a noção de percepção como ação perceptivamente orientada, e afirmam também que as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores recorrentes que possibilitam a ação ser perceptivamente orientada. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Isso é a própria definição da abordagem atuacionista para os autores citados. Para essa abordagem do estudo da percepção não é importante, como no caso do paradigma dualista-cartesiano, determinar como um mundo independente de um observador pode ser recuperado, mas sim determinar os princípios comuns entre os sistemas sensorial e motor que explicam como a ação pode ser orientada em um mundo dependente de um observador. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Em trechos posteriores os próprios autores reconhecem sua filiação à tradição fenomenológica de M.-Ponty e trazem claramente sua concepção de percepção não só como parte (ou embutida) de um mundo, mas como colaboradora com a atuação, com a realização desse mesmo mundo.

Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognição e percepção, H. Maturana, que não foi utilizado no presente texto por uma questão do recorte momentâneo, tem uma citação muito rica para concluir a presente seção. Com ela Maturana amplia a noção de percepção, saí da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por captação) e entende percepção como o nome que um observador atribui a uma conduta específica, ou um mundo de ações. Nas palavras do autor:

O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso: produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estados que experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então, usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais (linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. (Maturana, 1997/2001, p. 103).

4. Implicações técnicas e estéticas

A partir de uma nova maneira de conceber a experiência auditiva abre-se um novo horizonte de possibilidades composicionais. Entre tais pode-se caminhar em direção a uma estética que valorize a experiência real como condição necessária para a geração de determinados tipos de significação. Nesse sentido algumas obras podem ser compostas pensando em gerar dubiedade de significações entre situações reais e situações artificiais. Encaminharemos na seqüência a descrição de uma obra que levou em conta a explicação da percepção e cognição desenvolvida por teorias ligadas à abordagem fenomenológica e atuacionista. E para encerrar apresentaremos uma espécie de revisão da proposta de composição e apresentação de obras visando uma estética que poderia ser denominada fenomenológica, por estar voltada toda para a experiência sonora, não para a contemplação ou análise em separado, mas como um tipo de vivência do fenômeno sonoro, auditivo. Tal estética também pode ser denominada como naturalizada uma vez que se busca a significação natural, percepção de primeira mão[3], sem a mediação de representações.

O que se quer com o desenvolvimento de tais procedimentos composicionais é uma obra de arte que não seja baseada na vida, mas que seja a própria vida. Não se pretende desenvolver uma obra que represente fatos ou eventos reais, mas que seja ela própria o evento, a situação real vivida. Nas artes plásticas, as noções de instalação e de happening são bem próximas daquilo que propomos em música sob a denominação de estética naturalizada ou fenomenológica. Nessa proposta a arte não é mais artifício, representação de situações, é antes a própria situação, só acontece, só existe para quem vive aquela situação. Tal obra não pretende ser uma cópia da natureza, pretende antes assumir-se como parte da natureza.

Entre junho e agosto de 2004 estive envolvido na finalização e apresentações de uma peça musical, do tipo paisagem sonora, que havia sido iniciada no ano de 2002 em parceria com um colega e co-autor em vários outros artigos. A peça, denominada pubscape, foi criada para ser executada dentro do bar (pub), ou dentro de ambientes sonoros semelhantes. Com isso, o que nós os compositores queríamos, era incrementar o ambiente sonoro já existente no bar sobrepondo ao ambiente real um outro, preparado antes com eventos sonoros do próprio bar e de outras situações. A difusão seria feita discretamente no bar através de sistema quadrifônico com espacialização em tempo real.

Esperávamos que houvesse momentos de ambigüidade de significação, que em algumas situações os ouvintes se questionassem sobre a "realidade" ou a "factualidade" daqueles sons que ouviam. Havia todo o ruído do bar, funcionando em um dia normal, e havia eventos sonoros gravados previamente no bar e também ruídos esquizofônicos[4], sendo tocados nos quatro alto-falantes que faziam a difusão. Esses dois ambientes, o real e o preparado, sobrepostos, geraram então diversas situações de ambigüidade principalmente nos ouvintes desavisados, que não sabiam que estava acontecendo um concerto de paisagens sonoras. No entanto o público que estava sabendo do concerto, que, aliás, foi ao bar para ouvir um concerto, teve, de certa forma, prejudicada essa experiência de ambigüidades significativas. Principalmente porque já tinham a expectativa de ouvir alguma coisa daquele tipo, ou ao menos ouvir alguma coisa de diferente.

A experiência do concerto de paisagens em que pubscape foi tocada apontou a necessidade de alguns ajustes na direção a uma estética naturalizada. Um dos aspectos a se modificar foi o formato geral do concerto, ou mesmo o conceito de concerto. Queríamos um ouvinte em situação real e, portanto precisávamos deixá-lo em situação real, não preparada. O ouvinte vai descobrir que está em um concerto durante o concerto.

Em uma segunda oportunidade para realizar esse mesmo concerto de paisagens sonoras, durante a abertura de uma exposição, pude experimentar exatamente o que queria com o novo formato de concerto surpresa. A difusão foi feita pelo sistema embutido de caixas de som do salão, que não ficavam à vista. Outro aspecto interessante foi o tipo de reverberação próprio dos dois pisos do salão que abrigava o acervo. A difusão foi iniciada com volume muito baixo a ponto de que os eventos mais fracos estivessem inaudíveis. Com o tempo o volume foi sendo aumentado até um patamar que continuava bastante sutil em relação ao ambiente sonoro local. A partir da observação do comportamento do público do museu ao ouvir os eventos sonoros das paisagens, e do meu próprio comportamento ouvindo aqueles sons, mesmo sem o fator surpresa, pude constatar que de fato ocorre tal ambigüidade significativa ao ouvir determinado evento sonoro em determinado contexto.

Em pubscape a música que acontece nem sempre é percebida como música, assim como os demais eventos também podem deixar de significar exatamente o que significavam até então. Com a execução da peça os ouvintes entram em um campo de dubiedade significativa, os limites que definem os significados perceptivos dos eventos sonoros deixam de ser rígidos. Em outras palavras, o ouvinte do concerto tem diante dele, muitas vezes, certas situações sonoras pouco prováveis, quando não impossíveis, e isso gera dificuldade de operar em tal ambiente. Gera dificuldades porque apresenta um ambiente distinto daquele em que o organismo está habituado a operar. Nesse novo ambiente as significações se tornam confusas e ambíguas. Ajustamos nossos hábitos perceptivos de acordo com situações na sua história de vida, que é uma história de acoplamentos estruturais e, portanto, de cognição. Assim aprendemos a nos comportar, ou a ter conduta adequada em determinadas situações, uma vez que as situações se configurem com tais na nossa história de vida. O que ocorre na experiência aqui descrita é que se aumenta muito o nível de imprevisibilidade em uma situação onde já existem configurados hábitos estáveis de conduta. Com isso o operar do organismo perde a congruência com o meio, gerando confusão e incerteza significativa. Nessa situação específica o ouvinte, se desavisado sobre ser ouvinte desse tipo de concerto, opera perceptivamente como numa situação real de dia-a-dia, no entanto quando se depara com determinados eventos sonoros esquizofônicos, se dá conta que a significação de tais eventos não podem ser aquelas do dia-a-dia. O ouvinte é conduzido durante toda a experiência da audição da peça ao limiar da geração de significação, em certos momentos precisa operar como percebendo no dia-a-dia e em outras precisa operar percebendo representações.

5. Sub-áreas do conhecimento

Ciência cognitiva e filosofia da mente, paisagens sonoras, tecnologia de composição, estética musical contemporânea.

Referências bibliográficas:

Maturana, R. H. (1997) A ontologia da realidade.Belo Horizonte: Editora da UFMG.

M.-Ponty (1945/1996) Fenomenologia da percepção.São Paulo: Martins Fontes.

M.-Ponty (1995/2000) A natureza. São Paulo: Martins Fontes.

Michaels, C. F.;Carello, C. (1981) Direct Perception. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, Inc.

Oliveira, A. L. G. (2002) O reconhecimento de padrões sonoros no contexto da ciência cognitiva. 115f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília.

Oliveira, A. L. G. e Oliveira, L. F. (2003) Toward an ecologic aesthetics: music as emergence. Trabalho apresentado por ocasião do IX Congresso da Sociedade Brasileira de Computação Musical. Universidade Estadual de Campinas, Campinas,Brasil.

Schafer, R. M. (1977) The Tuning of the Word. New York: Knopf.

Varela, F; Thompson e Rosh (1991/2003) A mente incorporada – ciência cognitiva e experiência humana. Porto Alegre: Artmed.




Autor: andré gonçalves de oliveira


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