Discurso Na Festa Da Seringa De 1934



Rio, 25/12/1975. Aos meus queridos filhos Ferdi (colega como Professor e paraninfo) e Marlete, Professor e Cientista Márcio, Luciana bacana, Renato com sorte, lembranças de uma previsão Nostradâmica há 41 anos, ultra-passado, proferida no então Club ... (?).

 

Discurso pronunciado na Festa da Seringa, promovida pelos Doutorandos de 1934, da Assistência, pelo paraninfo Dr. Aldahyr Figueiredo.

 

Tangido pela generosidade desta mocidade de auxiliares acadêmicos da Assistência, do ano de 1934, sem dúvida a elite dos doutorandos desta Cidade, sou forçado a fazer um discurso, em função da honrosa e desvanecedora investidura a mim atribuída. E tanto mais honrosa quanto melhor se conhece o luzido esquadrão que compõem esses novos profissionais.

Como atenuante a tão grave atentado – discursar, coisa perigosa em que se peca por falta e excesso a um só tempo – desde já prometo, solenemente, ser breve, para não interromper com uma oração que já se esbate passadista a alegria da festa que aqui se comemora.

Nascendo para a vida profissional – perversos polimorfos – encontrai-vos na situação descrita classicamente como "vivendo entre duas nuvens espessas, no esquecimento do que foi e na incerteza do que há de ser. E todavia atormenta-vos, ansiosa apreensão, meditar sobre os destinos do homem e do mundo".

Contudo, não há necessidade de reviver Édipo, na decifração da esfinge, para poder entrever na dissipação do manto espesso das nuvens, colocadas aquém e além do vosso horizonte, para tirar dos fatos intimamente relacionados, cheios de ensinamentos do passado e de uma das suas pontas, o presente, a previsão dos acontecimentos do futuro: pois que a história da civilização assinala, passo a passo a transformação por que volve o mundo em que vivemos.

Atravessando uma situação caótica de transição tenebrosa, é vossa geração, a mais sacrificada na encruzilhada labiríntica da época atual, em que uma civilização se cai, encontra-vos impregnados de preconceitos e atônitos para receber a civilização que surge.

Desfeito o véu que encobre o passado, próximo e remoto, vede de uma parte uma formação profissional precária, precaríssima mesmo; pois que nada mais é que a soma de parcelas incompletas e defeituosas.

Em primeiro lugar, o conceito predominante até bem pouco, e que ainda sofrestes, de educar, tornando o indivíduo um armazém de conhecimentos empilhados, a serem aproveitados na passagem pela vida, tal qual o camelo aproveita a sua provisão de água na travessia do deserto, transformou a ação educativa em um martírio para os educandos e numa tarefa desinteressante para os professores.

Deste conceito finalístico de educação – armazém de conhecimento – decorrem os próprios métodos de educação: os programas extensos e bombásticos, buscando uma erudição de superfície, nos quais o professor é tentado a exibir uma ilustração livresca, de fácil aquisição nos tempos que correm, e que, quanto mais inútil, fastidiosa e nociva, talvez, desgraçadamente, mais apreciada; a consubstanciação em fórmula abstrata dos problemas reais, nas quais as palavras ocas e frases retumbantes substituem os fatos eminentemente corretos.

Daí, transformar-se a verificação do aproveitamento escolar, em um balanço de conhecimentos armazenados, pelos exames e seus sucedâneos, provas parciais, etc., onde o psitacismo tem mais valor que a iniciativa e o senso, na resolução dos problemas da vida cotidiana, e particularmente nos problemas profissionais, no caso em questão, os problemas clínicos.

É o antiquado conceito do "homo sapiens", é a sediça cultura acadêmica, é o saber por saber. Mas hoje em dia o "homo sapiens" cedeu lugar ao "homo faber", isto é, o saber por saber, está substituído pelo saber para agir.

"Educar-se é adquirir um novo modo de agir".

"Num momento de expansão íntima, Leonardo escreveu: a teoria ultrapassando a prática, eis o supremo infortúnio".

Sobre o ponto de vista profissional médico, creio que não fostes mais felizes, se por ventura o oposto não vos houver sucedido.

"No nosso empenho de conhecer as ciências médicas, perdemos o contato com a arte da prática médica; e, toda a fisiologia, anatomia e farmacologia do mundo não protegerão um jovem doutor contra numerosos erros de diagnóstico e conseqüentes erros de tratamento, a menos que ele tenha sido posto face a face com problemas clínicos, e tenha aprendido métodos seguros de tratamento, por largo tempo".

"E, no caso de ter estudado as condições de doente durante dois anos em lugar de quatro, há tantas circunstâncias menores, que não será possível enumerá-las, muito menos apontá-las e demonstrá-las a cada estudante, no curto espaço de tempo de que dispõem".

"Se tais coisas são ruins para um futuro médico, são infinitamente piores para o futuro cirurgião, no qual, talvez, e, sobretudo, penso eu, em proporção com a gravidade de sua intervenção terapêutica, diagnósticos errados, podem conduzir a calamidades desconhecidas no exercício da medicina".

"Neste ponto ainda uma vez, as minhas opiniões pessoais são, talvez, ditadas pela experiência própria, porque não obstante ter estudado, ao meu tempo, admiráveis preleções sobre farmacologia, e ter feito desta matéria, segundo atestam as minhas notas, um exame honroso, creio não ter usado mais que uma dúzia das incontáveis drogas que passaram pela minha cabeça, durante aquele período escolar. Tínhamos, também, um curso de fisiologia que, estou certo, devia ser excelente, mas dele pouco me recordo, o que, aliás, pouco importa, porque os meus apontamentos de classe estão cheios de exposições, hoje grandemente contestadas, e de hipóteses largamente refutadas".

"Posso dar um exemplo para mostrar como o exercício exagerado de laboratório pode apaixonar nossos estudantes mais antigos, os nossos funcionários, e, eu receio, muitos dos diplomados que se acham interessados no que se chama de um agrupamento médico – tal prática se presta para produção de um número desnecessário de experiências rotineiras extensas e inúteis. Um doente, muito prostrado foi recebido em um dos nossos afamados hospitais, célebre pelo seu espírito de investigação e da exatidão dos seus trabalhos. A única anormalidade que se observou no doente foi uma febre desconhecida."

"Muitas pessoas especializadas fizeram exames minuciosos de sangue, urina, saliva, fezes, líquor, microscópicos, químicos, bacteriológicos. O seu tórax e vísceras abdominais foram cabal e abundantemente examinados pelos R.X. O seu metabolismo basal avaliado e registrado; foram tiradas radiografias do coração e chamados especialistas a examinar o nariz, garganta, ouvidos e olhos. Todos esses exames tomaram tempo, e enquanto isso a febre persistia. Nesse momento crítico, aconteceu visitar o hospital um médico do interior, que não gozava nenhuma das atuais vantagens do laboratório, e ao passar pelo leito desse doente, no decurso das visitas da manhã, casualmente notou: estou admirado de ver que vocês ainda têm um caso fortuito de febre tifóide nos arredores".

"Um sistema de método acadêmico sem influência pessoal dos professores sobre os alunos, é um inverno ártico o qual produzirá uma Universidade de Ferro Fundido, rodeada de gelo, petrificada, nada mais".

Desanuveiem-se das fisionomias, esta criatura candente e quiçá irreverente do ensino médico, não é feita por mim, mas estas calamidades foram proferidas por Harvey Cushing, em uma conferência no Harvard Medical School, da Universidade de Harvard onde é professor de cirurgia.

Lá, como cá, más fadas há – frutos sazonados e saborosos do regime social vigente de desigualdades e privilégios.

Consola-vos a permanência na Assistência – escola ativa da medicina – onde, por natureza peculiar à sua organização, os casos clínicos em grande número, passaram aos vossos olhos, e o contato direto e estreito com os doentes vos permitiu, de algum modo, substituirdes a noções acadêmicas de "Medicus Sapiens" por aquelas mil vezes mais preciosas, porque mais práticas, de "Medicus Faber".

Assim se explica a manifestação de sentimento pelo qual vos despedis da Instituição a que tanto deveis, notificando com solenidade a vossa gratidão a todos aqueles que contribuíram para o vosso aperfeiçoamento médico-profissional.

A vossa profissão inicialmente fundamentada no fator religião, ainda na pré-história, em que as doenças eram atribuídas às divindades malfazejas, foi exercida por mágicos e feiticeiros.

Assim vemos que na pré-história a Medicina é empírica, demoníaca, animista, mágica; na Mesopotâmia é astrológica e sacerdotal; na Pérsia e na Índia Antiga, florescem as construções metafísicas; no extremo Oriente e na América pré-colombiana, surgem sistemas de Medicina Escolástica.

Realmente no rol dos fenômenos complexos sociais Spenglerianos, o fator religioso eminentemente conservador, ocupava então a totalidade das concepções simplistas.

Mais tarde a civilização grega forneceu médicos que, embora com aspecto sacerdotal menos acentuado, formavam, contudo, uma corporação um tanto sagrada.

Em Roma, e mais tarde na noite da Idade Média, de treze longos séculos de duração, e em que todas as atividades foram peiadas e detidas pelos clérigos, pouco progrediu a Medicina: "As tendências dogmáticas, o princípio de autoridade, a falta de livre exame, a erudição livresca, o medíocre interesse pelos fatos e o desprezo pelos trabalhos manuais de dessecação ou cirúrgicos foram a causa do considerável atraso ao progresso".

Mas, dissipados os doze séculos medievais, tantos são os que contam o colapso da nociva dominação clerical, na qual qualquer fato novo era interpretado como uma ofensa a Deus, para melhor preservar a ignorância dos detentores da civilização, privilegiados dominadores do povo, que só assim por tão longo tempo, raiou a aurora da Renascença.

Livres dessa pesada cadeia clerical, na Renascença a Medicina gozou os progressos dos demais elementos do complexo social Spengleriano com o desenvolvimento da moral, estética, ciência, direito e política, tomou novo e alentado viço.

Contudo, não pode se desprender totalmente do aspecto sacerdotal, e pelos tempos que se sucederam ainda se apresentaram os médicos como classe privilegiada. E era até bem pouco, o médico, um misto de artesão e sacerdote.

Com a descoberta de novos mundos, com as expansões imperialistas dos conquistadores, fruiu o médico relativa tranqüilidade oscilando, como classe, entre a nobreza e a burguesia.

Posteriormente seguindo o ritmo geral de progresso, com descobrimento de laboratórios, raios X, etc., a Medicina enriqueceu todos os seus meios de diagnósticos e tratamento, aperfeiçoou-se "cada vez mais com observação dos fatos, e experimentação e o raciocínio legítimo".

E acertando o passo com as demais atividades, pois que, não pode ser um compartimento estanque, a Medicina industrializou-se.

O médico mágico, feiticeiro, artesão, sacerdote, nobre ou burguês, tornou-se médico PROLETÁRIO.

Chegamos com o empobrecimento crescente das massas, à situação atual, a classe médica, então privilegiada, beira a miséria: explorada por alguns privilegiados da classe.

Resta do complexo Spengleriano o fator ECONÔMICO, para alguns sociólogos o fator primordial em toda a história da civilização, no momento, o fator fundamental para encarar a atividade médica é serviço de toda a humanidade, pois que é o homem a unidade econômica essencial, para cujo benefício mobilizam-se todas as atividades.

No momento atual debate-se a humanidade em situação de asfixia e como epifenômeno debate-se a classe médica em angústia permanente, pois que os maiôs de produção médica – laboratório, raios-X, variadíssimo e muito custoso arsenal médico-cirúrgico – não podem permanecer e serem manejados por um só médico e sim por toda uma coletividade médica, que está à mercê dos proprietários dos meios de produção: meia dúzia de médicos ricos, associações e beneficências.

Vive atualmente 80% da classe médica de gorjeta, 10% de salário baixo, em uma situação de constrangimento e rebaixamento, tanto maior quanto mais acentuado o progresso da Medicina; pois que, sendo a maioria dos médicos pobres, ministra à quase totalidade dos doentes miseráveis, que lhes não podem pagar, uma medicina, que eles sabem má, mas que é a única ao alcance de ambos.

Caem os médicos num círculo vicioso, tanto mais aflitivo quanto mais consciente. A alguns passos uma medicina riquíssima de recursos, proporciona todos os benefícios que este século de progresso permite, a alguns potentados.

Há somente uma saída necessária, rápida e urgente: socialização ou estatização da Medicina.

Em 1922, em uma festividade semelhante a essa, a primeira Festa da Seringa, alguém que se acha aqui presente, e que era o orador cujo elogio é a simples enunciação do seu nome, que diz tudo – LOURENÇO JORGE – despedindo-se como estudante da Assistência – símbolo que guardais – em um trecho de seu discurso assim se exprime: "Organizada como aparelho mantido pela pública administração com o fim de prestar urgente socorro, sempre que esse se antolhe necessário, representa a Assistência uma miniatura, um esboço apenas do que deverá ser o exercício da Medicina, sob a imediata fiscalização dos Governos de todos os países, com professores mantidos pelo Estado, especialistas de verdade nas respectivas especialidades, profundos no saber, peritos na arte, exercendo a clínica como sacerdócio, abolida por vexatória a remuneração direta do doente ao médico".

A profecia de Lourenço Jorge vem se realizando mais rapidamente do que se supunha. A Assistência de então limitava-se a três Postos, incompletos de socorros. Hoje é essa majestosa organização de Hospitais, que brotam nos recantos mais afastados obedecendo a um fim econômico social que a previdência de alguém que também se acha presente nesta mesa, com a ajuda de dedicados, sábios e preciosos auxiliares, também aqui alegrando a nossa comemoração, permitiu a V. Excia. Sr. Pedro Ernesto, derrotar por esmagadora maioria medalhões políticos mais nocivos quanto mais retardatários e rotineiros, facilitando que se acabe a profecia de Lourenço Jorge: SOCIALIZAÇÃO DA MEDICINA.

Há dois anos atrás, alguém que também aqui se acha presente, Alberto Borgerth, de quem não posso dizer bem, pois estaria falando de mim mesmo, de tal maneira a ele me sinto ligado, idealizou uma organização particular, calçada na colaboração recíproca, para que o aperfeiçoamento médico em benefício do doente, evitasse a um grupo a permanência nos 90% dos médicos explorados.

Que a socialização da Medicina representa um grande benefício para o doente, a sua finalidade, aí está a eloqüente, a organização gigantesca da Clínica Mayo, com a restrição que, sendo finalidade lucrativa, só possa atender a uma minoria privilegiada de seres humanos, os ricos.

Em 1930, na conservadora Inglaterra, um Comitê do British Medical Association que contava com um número elevadíssimo – 35.000 membros – propôs um projeto, estudado e meditado, de socialização da medicina: Serviço médico geral para a Assistência, preventivo e curativo, em toda a nação. Por esta ocasião o ultra-conservador jornal Times, de 10 de setembro de 1930, dizia que um médico sustentava no Parlamento reacionário que o corpo médico achava-se diante de um grave problema, de saber se devia ou não consentir na supressão completa do exercício privado na medicina.

Assim sendo, esta festividade, que seria uma despedida dos jovens colegas, dos meus amigos da Assistência, transforma-se numa festa de recepção aos jovens graduados e futuros novos colegas, e dessa maneira muito breve, a mais bela cidade do mundo terá a mais pujante organização médica a serviço da coletividade.

Em 7/12/1934, Aldahyr Figueiredo


Autor: Márcio Jansen de Oliveira Figueiredo


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