A Morosidade No Pagamento dos Precatórios face aos Direitos Fundamentais de seus Credores



A MOROSIDADE NO PAGAMENTO DOS PRECATÓRIOS FACE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE SEUS CREDORES

Vinicius Martins de Castro Barbosa


Sumário: 1 – Introdução; 2 – O precatório judicial; 3 - Os Direitos Fundamentais; 4 – O princípio da Reserva do Possível e a discricionariedade administrativa; 5 – Análise do Conflito à luz da proporcionalidade; 6 – Conclusão; 7 – Referências.


1 - Introdução


O Poder Judiciário brasileiro enfrenta uma crise de grandes proporções que pode culminar na perda da credibilidade das instituições e na conseqüente derrocada do Estado Democrático de Direito. A morosidade, os escândalos de corrupção e a gestão burocrática e ineficiente aparecem como agentes causadores da instabilidade. Nesse sentido, o arrolamento de dívidas milionárias pelas Fazendas Públicas no sistema de precatórios, agrava ainda mais a mencionada desestabilização do Poder Estatal.
A organização de pagamentos das condenações transitadas em julgado das Fazendas Públicas, denominado sistema de precatórios, foi instaurada a partir da Constituição de 1934. O problema, todavia, resulta do fato dos chefes do Poder Executivo fazerem dessa prerrogativa verdadeira moratória, postergando por anos os pagamentos aos cidadãos lesados.
O cenário compõe-se, de um lado, pelos entes federativos compelidos a diversas prestações sociais pela Carta Constitucional de 1988, exauridos pelos diversos órgãos e pela burocracia. Pelo trabalho esmerado da Corte Constitucional alemã, foi reconhecida, juridicamente, a impossibilidade do cumprimento de todas as prestações sociais, consagrando o denominado princípio da Reserva do Possível que posteriormente foi incorporado pela Jurisprudência nacional.
De outro lado, a razoável duração dos processos no âmbito judicial e administrativo, introduzida pela emenda 45/2004 no rol das garantias fundamentais, mais precisamente no inciso LXXVIII, do artigo 5º, bem como o Princípio fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no artigo 1º, inciso III, respaldam as constantes reclamações dos cidadãos que fazem jus a determinado valor resultante de execução por quantia certa em face de dada Fazenda Pública e aguardam por anos o cumprimento da previsão orçamentária desse ente condenado.
Esse aparente contraste deve ser solucionado sob a ótica do Estado Democrático de Direito, paradigma estabelecido na Constituição da República de 1988, bem como pela balança dos princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, respondendo ao seguinte questionamento: pode a mora no pagamento dos precatórios suprimir direito fundamental sob a justificativa da discricionariedade administrativa ou da reserva do possível?


2 - O Precatório Judicial


O precatório, previsto no artigo 100 da Constituição Federal e disciplinado pelo Código de Processo Civil brasileiro no artigo 730, é a forma utilizada para organização dos pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas federal, estaduais e municipais, resultantes de condenações judiciais transitadas em julgado.
Estabelece a legislação que, após o trânsito em julgado da decisão, o juiz requisitará, por intermédio do Presidente do Tribunal ad quem, a expedição do precatório, e este observará o critério cronológico de apresentação para realização do pagamento.
Ademais, o valor devido pelo ente federativo deverá ser inscrito até primeiro de julho, na previsão orçamentária do ano posterior. Essa obrigatoriedade foi introduzida no ordenamento brasileiro pela Constituição de 1967, sujeitando, em eventual desobediência, ao crime de responsabilidade.
Cabe ressaltar que os créditos de natureza alimentar, aqueles decorrentes de salários, vencimentos, pensões, benefícios previdenciários e pensões por morte ou invalidez, na forma do § 1-A ,do artigo 100, da Carta Magna de 1988, terão privilégio sobre os demais e não obedecerão ao critério geral.
Cumpre ainda diferenciarmos os precatórios das requisições de pequeno valor – RPV, estas se aplicam às condenações até 40 salários mínimos no âmbito das Fazendas Estaduais que serão pagas no prazo máximo de 60 dias, conforme ordem cronológica de apresentação, que poderá dar-se por iniciativa do juiz da causa ou do próprio credor ao encaminhar o pedido à autarquia devedora.
Em âmbito federal, a requisição de pequeno valor será encaminhada ao Conselho da Justiça Federal (CJF), estando à entidade sujeita ao Orçamento Geral da União, e observará valor teto superior ao regime estadual, de até 60 salários mínimos.
Assim, após essa breve definição do instituto, passaremos a dissertar sobre os imperativos dos Direitos Fundamentais.


3- Os Direitos Fundamentais


As Declarações de Direitos instituídas a partir da Revolução Francesa (1789) e Independência Americana (1776), que inauguraram o Constitucionalismo Moderno, são a fonte donde derivam os Direitos Fundamentais.
O Constitucionalismo escrito tem suas raízes nos pactos, forais, cartas de franquia e contratos de colonização, documentos concedidos pelos monarcas aos burgos e a nobreza que limitavam a ingerência daquele e asseguravam certa independência a classe dos comerciantes, bem como na Magna Carta Libertatum, assinada pelo Rei João Sem Terra em favor da nobreza no ano de 1215.
As constituições são o mecanismo de exteriorização dos Direitos Fundamentais, ao mesmo tempo que estes são os pilares de sustentação do Estado de Direito, já que propiciam aos indivíduos garantias ante ao arbítrio estatal e diante dos particulares.
Norberto Bobbio vai mais longe e salienta que o reconhecimento dos Direitos Fundamentais é um dos pilares em que repousa a Democracia.
Mais recentemente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, consolidou o tema e é comentada por Norberto Bobbio:

A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre .

A Declaração Universal dos Direitos do Homem concebe três classes de direitos: os individuais, coletivos e sociais. Modernamente, discute-se a consolidação de uma quarta classe de direitos, ditos de quarta geração, que abrangeriam uma visão do direito entre povos, abarcando o direito à autodeterminação, direito ao patrimônio comum da humanidade, direito a um ambiente saudável e sustentável, direito à paz e ao desenvolvimento.
Imperioso ressaltar as palavras do mestre J.J. Canotilho:
as expressões ‘direitos do homem’ e ‘direitos fundamentais’são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arcariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta .

Konrad Hesse afirma que os direitos fundamentais formais "são aqueles direitos que o direito vigente qualifica de direitos fundamentais", sendo que essa classificação coincide com a dimensão jurídico-institucional na classificação de Canotilho, ou seja, direitos reconhecidos por dado ordenamento em determinado momento histórico. .
Portando, tendo por escopo a definição de Canotilho, importa-nos definir no âmbito do ordenamento brasileiro, a partir do marco temporal da Constituição da República de 1988, os Direitos Fundamentais em colisão com a morosidade do sistema de pagamentos dos débitos dos entes federados.
Em primeiro plano, cumpre afirmar que a Constituição não se pretende como rol taxativo dos Direitos Fundamentais, admitindo a existência de outros decorrentes dos princípios consagrados em seu texto, isto devido à constante evolução da sociedade com reflexos nesse conjunto protetivo.
Nesse sentido, os direitos fundamentais são dotados de eficácia imediata que segundo Gilmar Mendes, decorre da “vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância” .
Para individualizarmos esses direitos, imprescindível retornarmos a Canotilho que classifica os Direitos Fundamentais segundo funções, sendo: função de defesa ou de liberdade, função de prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não discriminação.
A Constituição da República de 1988 consagrou as garantias individuais em seu artigo 5º, donde podemos extrair que os direitos atribuídos ao cidadão brasileiro podem ser classificados em três espécies: direitos decorrentes da Liberdade, direitos decorrentes da propriedade e direitos relacionados à segurança.
Logo, a moratória ilegal realizada pelos entes públicos conflitaria diretamente com a segurança do indivíduo ante ao Estado e com o Direito de propriedade reconhecido e amparado pelo ordenamento nacional.
Assegura também a Carta Magna, no inciso LXXVII, do artigo 5º, a razoável duração dos processos, inciso introduzido pela Emenda 45, de 2004, que refere-se a outra dimensão da segurança, qual seja, da efetividade e credibilidade do poder judiciário. A mora no pagamento das condenações transitadas em julgado afrontaria diretamente a Segurança Jurídica e, em decorrência, a Constituição brasileira.
Nesse sentido adverte Leonardo Greco:
No Estado Democrático Contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucionais e legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela o titular do direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo. A tutela jurisdicional efetiva é, portanto, não apenas uma garantia, mas, ela própria, também um direito fundamental, cuja eficácia irrestrita é preciso assegurar, em respeito à própria dignidade humana.

Adverte o teórico em comento que de nada adianta que seja editado um extenso rol de garantias fundamentais em um determinado ordenamento se os tribunais e órgãos judicantes não fizerem valer suas disposições diante da apreciação do caso concreto.


4 - O princípio da Reserva do Possível e a Discricionariedade Administrativa


Por outro lado, a Constituição da República de 1988 atribuiu aos cidadãos brasileiros diversas prestações sociais, como sistema de saúde gratuito e universal, sistema de educação gratuito, englobando o ensino superior, a participação estatal no custeio da Previdência Social, investimentos em infra-estrutura, dentre várias outras.
Nossa Lei Maior não observou a tendência mundial dos ordenamentos em diminuir o tamanho dos respectivos estados, reduzindo os custos e limitando as prestações. Esse processo, denominado neoliberal, está fundado na constatação de que é impossível ao poder estatal atender a todas as demandas por serviços com os recursos limitados que dispõe e que, o conseqüente aumento da estrutura e dos tributos para custeá-la implicam num processo de estatização da economia, engessando a iniciativa privada e a economia.
Ademais, após alguns anos da constituinte de 1988 e do implemento parcial das prestações sociais, concluiu-se pela impossibilidade do atendimento das necessidades de toda a coletividade e, nesse contexto, acabou incorporado à jurisprudência o princípio da reserva do possível, segundo o qual o Estado somente encontra-se obrigado a cumprir prestações sociais segundo a disponibilidade de recursos e conforme a razoabilidade do requerimento.
Tal postulado, concebido pela Corte Constitucional Alemã, teve sua gênese na demanda promovida por um estudante que intentara ingressar num curso onde não existiam vagas suficientes para todos os concorrentes. Argumentava o estudante que a constituição alemã lhe garantia o livre exercício de profissão e que a inexistência de vagas lhe obstava dado direito fundamental. Finalmente, constatou a Corte que era desarrazoado exigir do Poder público a prestação pretendida, pois mostrava-se inviável o investimento pleiteado pelo aluno, já que implicaria na falta de recursos para outras carências públicas. (BverfGE n.o 33, S. 333).
Nas palavras de Sérgio de Oliveira Netto:
Isto implica em dizer que, não basta que a legislação defira alguma prerrogativa aos membros da sociedade. Pois faz-se imprescindível, também, que existam recursos materiais capazes de viabilizar a satisfação destes direitos. Balizas, vale lembrar, que delimitam e orientam a aplicação do denominado primado da reserva do possível .

Vale citar o trecho da decisão exarada pelo STF na ADPF 45, da lavra do ministro Celso de Mello:
Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
...
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.


Portanto, admite a Corte Constitucional brasileira que o atendimento da totalidade das necessidades sociais conduziria a organização estatal ao colapso, prejudicando o conjunto de prestações efetivadas. Entretanto, assevera a Corte Maior que a Reserva do Possível não deve ser argüida pelos administradores públicos para fugir ao cumprimento das obrigações oriundas da Lei maior em favor da sociedade.
Não obstante, outros obstáculos são enfrentados pelos credores de precatórios que tem seus valores inadimplidos pelos entes federativos. A jurisprudência majoritária, posicionou-se pela impossibilidade de controle da discricionariedade administrativa pelo Poder Judiciário, ou seja, não caberia ao magistrado definir onde serão aplicadas as receitas públicas.
Logo, as verbas públicas são aplicadas conforme a deliberação do Poder Executivo, não se sujeitando ao juízo de valoração dos magistrados. Esse posicionamento, em obediência ao Princípio da Separação de Poderes, impede que sejam promovidas medidas judiciais que afastem do Chefe do Executivo, eleito democraticamente, o poder de deliberar sobre os investimentos públicos.
Ilustrativamente, vale citar parte do julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, selecionado na obra do procurador federal Sérgio de Oliveira Netto:
“Agravo de Instrumento no 42.530.5/4, j. 11.11.1997.
...Não se ha de permitir que um poder se imiscua em outro, invadindo esfera de sua atuação especifica sob o pretexto da inafastabilidade do controle jurisdicional e o argumento do prevalecimento do bem maior da vida. O respectivo exercício não mostra amplitude bastante para sujeitar ao Judiciário exame das programações, planejamentos e atividades próprias do Executivo, substituindo-o na política de escolha de prioridades na área de saúde, atribuindo-lhe encargos sem o conhecimento da existência de recursos para tanto suficientes. Em suma: juridicamente impossível impor-se sob pena de lesão ao principio constitucional da independência e harmonia dos poderes obrigação de fazer, subordinada a critérios tipicamente administrativos, de oportunidade e conveniência, tal como já se decidiu...” (TJSP, 2a Câmara de Direito Publico, Rel. Des. Alves Bevilacqua.)

Entendeu o desembargador no caso sob espeque, que não incumbiria ao judiciário delimitar as prioridades para aplicação de verbas públicas pois tratar-se-iam de decisões administrativas sujeitas aos critérios da oportunidade e conveniência do Executivo local. Concluiu o julgado pela inexistência de pressupostos processuais para embasar o feito e determinou sua extinção conforme a lei processual.
Vale colacionar também o posicionamento do celebrado teórico Hely Lopes Meirelles sobre o tema:
O mérito do ato administrativo consubstancia-se, portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar. Daí a exata afirmativa de Seabra Fagundes de que ‘o merecimento é aspecto pertinente apenas aos atos administrativos praticados no exercício de competência discricionária’ .

O celebrado teórico tido como um dos maiores expositores da teoria clássica do Direito Administrativo não admite que o Poder Judiciário aprecie o mérito administrativo, por tratar-se de prerrogativa da Administração Pública no exercício da discricionariedade.
Imperioso constatar que a Constituição não legou ao Poder Executivo gerir o orçamento público ao seu bel prazer. Estatui a Carta Magna que haverá intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal para reorganização das finanças destes quando haja sido suspenso o pagamento da dívida pública por mais de dois anos consecutivos . Obedecida a simetria constitucional, os Estados detém semelhante faculdade em relação aos seus municípios.
Não obstante, estão previstos na Lei Maior a parcela da receita pública a ser obrigatoriamente aplicada nas prestações sociais na forma do artigo 212.


5 - Análise do Conflito à luz da Proporcionalidade


Fato notório que a mera previsão no orçamento anual não faz da verba destinada à liquidação de precatórios exigível, tendo por base essa prerrogativa, os representantes do Poder Executivo fazem da discricionariedade administrativa verdadeira inadimplência contumaz, conduzindo a insolvência de muitos municípios e estados da federação.
Trata-se de uma questão delicada sopesar os interesses de aposentados, enfermos, crianças em idade escolar que se beneficiam das prestações sociais em face dos Direitos Fundamentais de determinado indivíduo que recorra ao Poder Judiciário para reconstituir prejuízo que haja sofrido. Numa perspectiva comunitarista (corrente teórica que admite a supremacia da comunidade em detrimento do indivíduo como pressuposto para decisões políticas ) revelar-se-ia inviável o atendimento das necessidades do cidadão em detrimento do todo. Entretanto, o Estado Democrático de Direito funda-se no respeito aos direitos individuais como pressuposto de validade de todo o ordenamento e, portanto, a questão deve ser analisada.
A discricionariedade administrativa é, sem dúvida, fonte de abusos por parte dos administradores dos orçamentos públicos. Nesse sentido, faz-se necessária a determinação de critérios para controlar tais escolhas administrativas.
Assim, propõe Gustavo Binenbojm, a supremacia dos direitos fundamentais, que segundo este, fariam “ruir o arcabouço dogmático do velho direito administrativo”, determinando as escolhas administrativas segundo os parâmetros normativos dos direitos fundamentais. São enumeradas como conseqüências:

A Constituição, e não mais a lei, passa a se situar no cerne da vinculação administrativa à juridicidade;A definição do que é o interesse público, e de sua propalada supremacia sobre os interesses particulares, deixa de estar ao inteiro arbítrio do administrador, passando a depender de juízos de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e outros valores e interesses metaindividuais constitucionalmente consagrados;A discricionariedade deixa de ser um espaço de livre escolha do administrador para convolar-se em um resíduo de legitimidade, a ser preenchido por procedimentos técnicos e jurídicos prescritos pela Constituição e pela lei com vistas à otimização do grau de legitimidade da decisão administrativa. Por sua importância no contexto democrática e de implementação dos direitos fundamentais, tem-se dado ênfase à participação e à eficiência como mecanismos de legitimação das escolhas discricionárias da Administração Pública .

Entretanto, não podemos deixar de validar o clamor do princípio da Reserva do Possível, do contrário estaríamos nos colocando no outro extremo da questão e revelando semelhante grau de injustiça. Não se trata de optar entre direitos fundamentais em face do interesse público, mas sim de sopesá-los na balança da proporcionalidade determinando um equilíbrio entre fatores que não se opõe, mas que complementam uma realidade.
Uma análise segundo os preceitos do Princípio da Proporcionalidade indicaria se a escolha adotada pelo administrador atentaria ou não às diretrizes constitucionais do ordenamento brasileiro, bem como se o interesse do particular, que procurou o Poder Judiciário para ser ressarcido de um prejuízo resultante da Administração Pública e que obteve êxito, deve sobrepor às carências públicas mais iminentes.
A Proporcionalidade, princípio proposto para determinar uma solução à controvérsia instaurada, compreende três aspectos principais como ensina Humberto Ávila. Num primeiro plano, a proporcionalidade sugere uma idéia de adequação, ou seja, utilização de meio adequado à finalidade proposta. Não obstante, no momento seguinte deve-se perquirir sobre a existência de meios alternativos pelo que comanda a necessidade.
Entretanto, é o terceiro aspecto da proporcionalidade, a que se denomina proporcionalidade em sentido estrito, a que dispensaremos atenção no presente trabalho. Como explicita o autor:
O exame da proporcionalidade em sentido estrito exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição dos direitos fundamentais. A pergunta que deve ser formulada é a seguinte: O grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição aos direitos fundamentais?

Considerado o marco proposto por Humberto Ávila, cabe ao Administrador Público e ao magistrado que tenha diante de si demanda em que se pleiteie precatório público aguardando o pagamento, questionar-se quanto aos interesses em conflito e determinar qual desses prevaleceria diante dos fatos.
Trata-se, portanto, de uma análise caso a caso conforme a complexidade dos fatores apresentados, sendo impossível extrair uma fórmula global e infalível que atribua o Direito a qualquer dos pólos.
Todavia, a análise, ainda que parcial, das decisões tomadas pelo administrador público e pelo Poder Judiciário é imprescindível para que possamos atingir equilíbrio entre os interesses.
A justificativa dessa intervenção é de que não existe uma relação de paridade entre o particular e a Administração Pública, trata-se de uma relação de subordinação e nesse aspecto os Direitos Fundamentais facultam ao particular exigir a paridade de armas diante do Público.
Por fim, citamos o posicionamento do ilustre desembargador do Estado de Goiás, Nery da Silveira:

Não há imunidade legal para quem infringe direito. O poder discricionário não está situado além das fronteiras dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da administração e sujeita-se à regular apreciação pela autoridade judicante.

O posicionamento do nobre jurista nos adverte de que os preceitos procedimentais e teóricos jamais devem cegar o verdadeiro jurista da busca incessante da justiça. A pureza doutrinário-normativa não supre os imperativos do caso concreto na formação da convicção do magistrado.



6 - Conclusão


Diante da deliberação quanto ao conflito entre os interesses dos particulares credores de precatórios e do Poder Público fatigado pelas prestações sociais decorrentes da ordem constitucional instaurada pela Constituição da República de 1988, não podemos tomar partido de nenhum dos lados.
Não há dúvidas que Chefes do Executivo, principalmente municipal, abusam das prerrogativas instituídas pela legislação em favor da Administração Pública; da mesma forma, não se questiona que existam carências públicas mais prementes que o pagamento de precatórios.
Assim, somente à luz do princípio da Proporcionalidade é que se mostra possível extrair do caso concreto o interesse a ser atendido. Entretanto, mostra-se inarredável a necessidade da apreciação pelos magistrados das decisões proferidas pelo administrador público, a fim de assegurar ao indivíduo certa paridade em relação ao ente político e verem assegurados seus direitos fundamentais.
Em conseqüência disto, a discricionariedade de que dispõe o administrador público é relativa e pode sim ser controlada pelo Poder Judiciário para evitar o perecimento do direito do particular em face do Estado.
Portanto, conclui-se que os clamores provenientes do princípio da reserva do possível e da discricionariedade administrativa são plausíveis, mas não podem servir de obstáculos a concretização da Justiça, sendo que essa representa, no caso concreto, a opção dentre interesses diversos naquele que melhor observe o paradigma do Estado Democrático de Direito.


7 - Referências


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PAULSEN, Leandro. Direito Tributário Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008.

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Autor: Vinicius Martins de Castro Barbosa


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