Relações Sócio-religiosas Com O Culto Funerário Capitalista



A morte ao ser tratada com a devida atenção pelas civilizações socialmente organizadas desmembra o soslaio da origem do medo pelo desconhecido. Eterna e abstrata, dela pouco conhecemos, ou pelo menos, como eternos aprendizes, pouco entendemos sobre seus paradigmas de verdades e mentiras. Prova deste fato são as religiões que com suas diversas formas de ritos tentam amenizar tão sublime mistério. Outro ponto que destaca esta busca são, com certeza, nossas concepções culturais e sociais. Dentro destas concepções e pelas diversas pesquisas que fiz nesta área, verifiquei que nas conclusões chegadas por um autor chamado Justino Adriano Farias Silva que escreveu em seu livro - ‘Tratado de Direito Funerário’ – em que comenta a respeito das diversas concepções religiosas focadas em relação ao desenvolvimento social e cultural que o tratamento jurídico da ao morto e da filosofia usadas pelos funerais em diferentes épocas, constatei que realmente residem nestes fatos um modo insofismável do homem dedicar especial atenção a seus mortos principalmente por medo de seu retorno ao mundo dos vivos ou simplesmente por visar uma felicidade plena em outra vida.
Mas, para que possamos entender estes fatos é necessário que nos reportemos aos desdobramentos que envolveram os acontecimentos durante o século XIII, época de predomínio da idéia de que à morte era apenas um sono profundo e que a dor sentida pela perda era perfeitamente normal e controlável, fato que não acarretava diretamente naqueles que iriam morrer grandes aflições, porque não viam entre a vida terrena e a celestial uma ruptura radical; pelo contrário, percebiam a possibilidade de um despertar no paraíso seguro. A partir deste mesmo século é perceptível que a morte passa a ser envolvida pela religiosidade e que até então não se pactuava com a Igreja, porém, o importante a ser destacado é o surgimento da idéia do julgamento ‘post mortem’ e do medo do castigo e do Inferno. É nítido perceber que impera nessa época a idéia de um julgamento do doente terminal à luz da idéia de Paraíso onde tudo floresce e brilha após a sua morte.
Recebendo o apoio da chamada Idade das Trevas a humanidade foi fortemente marcada por inúmeras pestes devido a péssimas condições de higiene vivida naquela ocasião da história. Época em que epidemias, fome e doenças e elevados índices de mortalidade revelavam profundas mudanças na sociedade medieval no âmbito econômico, político, religioso e artístico. Contudo, foi somente no ano de 1348, que a Europa realmente conhece o rigor da chamada Peste Negra. No decorrer de minhas pesquisas percebi que autores como Willian Carroll Bark retratam a Peste Negra como a grande vilã que mata até o final do ano de 1351, um terço da população por toda Europa; dados que revelam o estado incontrolável de mortalidade que prevalecia na Idade Média. Dentro destes enfoques e de tudo que pesquisei, relato que a passagem mais marcante para mim foi à envergadura tomada pela arte através do acentuado gosto pelo fúnebre e pelo macabro. É importante comentar neste ponto do artigo uma das ilustrações artísticas mais marcantes dessa idéia; a chamada ‘Dança Macabra’, que surge no instante histórico em que às pessoas desprovidas de ‘dotes’ ou as pobres almas passam a ser acolhidas pelos braços da Igreja, momento em que a Igreja católica enxerga a possibilidade de influenciar fortemente a história religiosa do homem. Com isso, a chamada ‘Dança da Morte’, arrasta para o túmulo todo tipo de gente, independente da sua condição social. Relembro, ainda, que Justino Adriano Farias Silva comenta que com a ‘Dança Macabra’ passou-se a imaginar aonde iriam os que morriam por aquela incontrolável mortalidade que assolava a terra. A partir desta arte, presumia-se, enfim, que diante de tantas mortes muitos iriam passear errantes pelos cemitérios a propagar o terror e a assombrar pessoas que ali passavam durante as noites, daí a mística dos cemitérios que hoje conhecemos. Lembro que a ‘Dança Macabra’ é unicamente de cunho artístico e vedada a representação na arte, podendo-se verificar isto na nítida apelação feita pela arte ao representar figuras em estado de decomposição ou devoradas pelos vermes sobre os sepulcros dos cemitérios. Recordo-me nitidamente, ainda hoje, que durante minhas pesquisas vivenciei esta arte durante um sonho conturbado, mas, isto não vem ao caso, pois devo me concentrar apenas nos enfoques colhidos e analisados para este artigo. Então, sobre estas ‘danças’ é devida atenção as palavras de José Luiz de Souza Maranhão quando, também, afirma que eram representadas artisticamente em assustadoras e fantásticas pinturas e esculturas que recobriam os pórticos de quase todas as igrejas construídas no final da Idade Média na qual a morte personificada sorri malignamente com os dentes arregalados e, com o passo de um velho mestre de baile, ordenava a todos a acompanhá-la: o Papa, o imperador, os vilões e os escravos; ‘todos devem voltar ao pó da terra’.
Durante o alvorecer do século XVII a Igreja concretiza seu papel aproveitando-se desta arte em seus templos como já foi comentado no parágrafo anterior. A morte passa a ser totalmente controlada pela religião que para a igreja se faz um dos maiores pilares da história pela sua inquebrantável e perpétua dominação sobre os homens de Fé. Tem-se o início definitivo do cerimonial de transição de um estado para o outro, que até então, estava oculto. É definido e concretizado o cerimonial da morte ao receber a denominação de 'rito de passagem'. Neste ponto da história e seguindo nesta mesma linha, a personificação da igreja em seu papel de consoladora e, mais ainda, com o suporte das ‘Danças Macabras’, passam aos sacerdotes o papel de assistir e de acompanhar os doentes com a criação de um livro de preparação dos fiéis à morte, o chamado ‘Ars moriendi’, inspirado nas ‘Danças Macabras’. Com imagens aterradoras gravadas em madeira, eram lembradas as tentações que assolavam o homem em seu leito de morte e as mensagens celestiais que o consolavam e traziam até ele o mensageiro divino. Se, o ‘Ars moriendi’ se propunha a preparar os fiéis para uma morte cristã, a ‘Dança macabra’, cujo êxito não foi menor, se contentava em oferecer da morte uma viagem intimidatória.
Com um dos objetivos deste artigo é investigar a relação da idéia sócio-econômica que envolve o culto funerário capitalista, desta influência, dada as obras em vida de cada um, era o ponto de medida para o ‘juízo final’ para cada membro constituído. Os deméritos junto à igreja exerciam o principal papel de mediação entre o céu e a terra, onde se resguardavam, conforme é dito tradicionalmente pela igreja, em orações e em cortejo para salvação integral da alma. É retratado o papel do dízimo como fundamental suporte para a suposta salvação, sendo cobrado de acordo com as posses em vida de cada um, dando-se em troca todo o cerimonial conforme a preferência do cliente. Assim, o ‘passaporte para o céu’ era dado mediante um contrato de salvação. Vemos nestas conclusões que são consolidadas as riquezas materiais às obras pessoais de salvação e, de certo modo, conservava-se o amor pelas coisas terrenas ao mesmo tempo em que delas se separava. Percebo que a transição do capitalismo à religiosidade dos hábitos culturais foi se instalando aos poucos. Revendo os apontamentos colhidos dei especial atenção a observação feita por Reinholdo Aloysio Ullmann, em sua obra – ‘Antropologia cultural’, na qual faz alusão a garantia da ressurreição do homem como a dos santos pelo direito a salvação ‘ad sanctopara’, ao adquirir junto a Igreja um local próximo aos túmulos dos Santos ou de suas relíquias, o que os faz imortais entre os outros homens. Focaliza, ainda, que desses locais especiais a preferência eram para quem tivesse muito dinheiro. Para quem não possuísse dinheiro suficiente o enterro era feito em vala comum, na qual entre mil e duzentos a mil e quinhentos corpos eram enterrados somente ao passar dos anos ou em épocas de grandes catástrofes e guerras.
Raciocinando sobre o que levantei fica clara a intervenção da igreja ao baixar bulas papais pelas autoridades eclesiásticas. Fragmentos históricos confirmam o fato que é confirmado pelo Papa Benedito XII ao condenar as pessoas de poucos privilégios financeiros que não permitissem uma boa barganha com a igreja. Fica claro o avanço e a intromissão do capitalismo nas decisões religiosa. Eu sei que é preciso considerar, também, que nesta época de temor da morte e das incertezas que ela comporta, é forte o amor à vida e as coisas terrenas. Verifiquei que é contra este amor que aqui se volta à última prova, onde tudo pode ser ganho ou tudo pode ser perdido. Desde momento em diante passa a ficar muito fraca a impressão de que somente a salvação abençoa aqueles que souberem se desligar das coisas terrenas, pois, em contrapartida, para o homem da segunda Idade Média e da ‘Renascença’, o fato de querer levar essas coisas em seu eterno destino caracteriza o seu pensamento consciente sobre a morte. O homem reconhece a sua importância, mas ao mesmo tempo sente nela um envenenamento de sua existência e uma ruptura com as coisas de que gosta.
Chegando em nosso continente percebi em meus apontamentos que no Brasil do final do século XIX as tradições não eram muito distantes. Também já existia o medo da morte e da prisão com as coisas terrenas. Nem todos tinham o privilégio de tocar no corpo do homem morto. Somente quem tinha direito era aqueles que possuíam o preparo para rezar e até mesmo conversar com o falecido. A libertação da alma dependeria do desligamento da luxuria e ostentação. Conforme os mais antigos relatam, os militares da primeira década do século XIX eram sepultados sem os botões dourados das fardas, para que a ostentação e a vaidade não os prejudicassem no outro mundo. Verifiquei, ainda, que no desenrolar do século XX já não havia tanta preocupação com os dotes do morto. A principal preocupação era com a preparação da morte para a outra vida a fim de libertação das amarras terrestres. Coletando dados observei que Justino Adriano Farias Silva relata detalhes do preparativo do cadáver para seu enterro: o início dos preparativos se dava sempre com o corpo voltado com os pés para a porta da rua, ocasião em que os velórios tradicionalmente eram realizados em residências. Nesta posição eram conservados até a hora do féretro, pois ser colocado pelos pés na sepultura significava atitude contrária a situação do nascimento. A retirada do local onde vivia também tinha o sentido era afastar o contágio da morte; o morto era vestido com a mortalha e seus dedos mantidos entrelaçados e envolvidos com um rosário de cor correspondente a seu estado civil: negro para homem e mulher casada, azul para moças, branco para crianças que já tinham feito a primeira comunhão e roxo para as viúvas. O corpo ficava de dois a três dias exposto em uma mesa para despedida, sempre mantendo o rosto coberto, pois somente iria ser descoberto mediante o julgamento, assim como Lázaro diante do Senhor. Os sapatos eram novos e limpos e todos os parentes beijavam os pés do falecido, acreditando que este ato pudesse evitar assombrações na casa da família. No dia do enterro eram feitas procissões fúnebres que nada mais eram que cortejos longos em torno das igrejas, onde tomavam parte clérigos e populares. Realizavam-se em geral uma vez por semana segundo costume antigo e os sacerdotes empunhavam a cruz e aspergiam de água benta em todos os beatos. Após a grande purificação para a passagem à outra dimensão, seguia-se para o cemitério, onde mais tarde recebiam a visita de amigos e de parentes que depositavam flores sobre o túmulo.
Finalmente nos últimos cinqüenta anos segue-se a síntese dos antigos costumes, porém, os velórios que eram realizados na casa da família, hoje são realizados em locais específicos como as capelas. O cortejo fúnebre ocorre por conta de um carro funerário que segue do velório para o local do enterro e geralmente é uma cerimônia simples e rápida.
Cabe lembrar que o papel do luto, sempre representado pela cor preta, que até a Idade Média era privilégio de reis e rainhas, hoje acompanha as tradições do homem moderno e vem de encontro aos costumes sociais contemporâneos. Hoje, o traje de luto é íntimo e desaparece aos poucos por expressar o sofrimento que perturba a cultura urbana, já que antes representava a expressão da perda sem ultrapassar os limites impostos socialmente. Passou nas décadas do século XIX, a representar a dor nos limites intoleráveis, hoje possui como grande significado a guarda íntima da dor e da perda irrecuperável, sendo velada e íntima, passando do secreto até o total velamento. Para as crianças é criado um bloqueio psicológico; fala-se o menos possível sobre a morte.
Conclui-se que a partir do século XX, ocorreram muitas mudanças no tratado de transição do homem com a morte. As atitudes do homem ocidental perante a morte e o morrer mudaram profundamente, ocorrendo uma verdadeira ruptura histórica, porém, muitos traços ainda lembram os antigos costumes, entretanto, o verdadeiro significado da ritualística se perde pelo tempo. Grande parte dessa mudança é devido ao avanço das inovações tecnológicas que contribuíram consideravelmente para o surgimento de novas especialidades médicas e técnicas cada vez mais apuradas de tratamento de doenças o que aumenta cada vez mais a expectativa de vida, ao mesmo tempo em que surge um controle empresarial sobre todo o processo. Em casos extremos é em um leito hospitalar que o doente termina seus dias, quando não é surpreendido por uma morte repentina. Para mim um ponto importante a ser considerado é a imparcialidade ética profissional como um dos grandes agravantes da indiferença hospitalar aos pacientes de hoje. Busquei relatos de equipes médicas e constatei que não há vínculos com os doentes devido ao elevado número de pacientes que um médico ou enfermeiro possa assumir o que, talvez, não o seja em algumas clínicas particulares. Um fato que particularmente me chamou a atenção e que não é tão explorado pela maioria dos estudiosos, é que o doente sempre acaba longe do leito familiar, longe da presença e do carinho de amigos e de parentes. Ele é mais um doente, onde apenas é tolerada a visita de parentes em horários específicos. Neste ponto, como fala José Luiz de Souza Maranhão, os moribundos terminais também são rejeitados, e essa rejeição se apresenta através da conduta da ‘negação prévia’ e da ‘camuflagem retrospectiva’ que ocultam claramente a morte dentro dos hospitais. A primeira é caracteriza pela ausência de morte, pois por mais grave que esteja o quadro clínico do paciente, jamais se terá notícia de um óbito ocorrer dentro de um hospital. Assim, quando é possível se prever um óbito, o mais rápido possível o doente é transferido para um quarto privativo. Já na ‘camuflagem retrospectiva’ ocorre à dissimulação da morte, evacua-se o óbito para outro setor, ocultando-o dos demais companheiros de ala, muitas vezes, usando-se o pretexto da evacuação para simular uma eventual realização de exames. E, finalmente quando o óbito é entregue aos familiares, os mesmos o confiam aos cuidados de empresas especializadas como as famosas lojas funerárias. Sei que apresentei a vocês apenas pontos que julguei essências para a evolução deste tema. Existem muitas passagens em minhas pesquisas que ainda não estão prontas a serem apresentadas, mas sei que pude passar um pouco do que senti ao desenvolver este apanhado. É verdade que muitos pesquisadores habilitados trabalham neste sentido. Este artigo é apenas um pequeno fragmento da história da influência das condutas capitalistas no cunho religioso, o que de certa forma envolve cada detalhe de nossas vidas, o que talvez alguns ainda não o percebam. Hoje aparentemente não existem tantas mudanças nestes aspectos, porém, o homem cada vez mais espiritualizado e comprometido com a tarefa de desmistificar os flagelos do mundo, se volta em seu íntimo na busca de um melhor entendimento da vida e do verdadeiro sentido que a morte possa oferecer e que ainda não está presente tanto quanto no início das sociedades humanas.


Autor: Adalberto Borges de Carvalho


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