A Fabricação da Loucura: Mulheres e os transtornos mentais narrados pelos prontuários médicos do Hospital psiquiátrico Eduardo Ribeiro de Manaus (1960-1969)



Resumo:

O presente artigo tem como objetivo fazer uma breve análise sobre o desenvolvimento da loucura no Estado do Amazonas, em especial nas pacientes do sexo feminino, o artigo analisa dados sobre a população de internos do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro de Manaus, com ênfase na presença das mulheres e suas trajetórias no internato, entre os anos de 1960 e 1969. O objetivo é compreender como atributos físicos e culturais e experiências de vida de mulheres internadas no hospital foram conjugados na construção de sua experiência de loucura baseado na abordagem histórica da História Social baseada na proposta de E. P. Thompson.

Palavras-Chave: gênero; loucura; hospício; práticas psiquiátricas; Amazonas.

A proposta do trabalho inicial visa-se compreender o desenvolvimento da loucura no Estado do Amazonas mediante as leituras dos prontuários médicos nos interessou a temática relacionada às mulheres e os fatores que as levaram aos transtornos mentais, analisando obras que tratam do assunto visualizamos a complexidade do trabalho, mas a busca de informações nas fontes primárias associadas com a abordagem de Michael Foucault que nos mostrou um campo rico em informações históricas, culturais, sociais, políticas e econômicas.
Para a pesquisa sobre a relação entre gênero e loucura, alguns campos do banco de dados foram priorizados: gênero, classe, estado civil, temperamento, diagnóstico e tempo de internação, bem como referências a questões como comportamentos, órgãos sexuais e outros, considerados patológicos pelo pensamento médico.
De acordo com Focault a relação entre mulher e loucura é complexa. Remete-nos amplamente à situação social das mulheres como filhas, esposas e mães. Foucault afirmou que, no século XIX, desenvolve-se um saber a respeito da sexualidade. Dessa forma, a sexualidade permitida era aquela concebida como saudável, higiênica, realizada no casamento, entre quatro paredes e com fins reprodutivos. Em oposição, apresenta-se outra, que era danosa, ilícita e perigosa para a saúde, quer física ou mental. Nesse sentido, a mulher normal era a esposa e mãe; opondo-se a ela, estava à prostituta. Essa “mulher normal” tinha seu corpo voltado inteiramente para as funções reprodutoras, sendo esse corpo perturbado por essas mesmas funções.
No século XIX, segundo Foucault acontecia a histerização da mulher, pois ela estava ligada ao seu corpo de uma forma diferente do homem, estava presa a sua condição reprodutora, na nossa pesquisa constatamos conjuntamente a esses fatores a pobreza e as incertezas do dia-a-dia, aliadas à desagregação familiar com o conseqüente abuso de álcool e drogas, vêm causando problemas mentais em muita gente e principalmente nas mulheres como apontam os prontuários médicos analisados.
Para tanto constatamos que quando se pretende estudar sobre o tema loucura, é de fundamental importância à leitura do livro História da Loucura na Idade Clássica, de Foucault , uma vez que se trata de um marco para a compreensão desse tema, fazendo-nos refletir e modificar o próprio enfrentamento sobre o assunto, que até então era tido como "tabu".
Para Foucault , cada época possui uma forma "estruturada de experiência" que comanda a ordem tanto dos discursos, quanto das práticas, além da própria ordem institucional. De acordo com Foucault , para Descartes o louco estava impossibilitado de exercer a capacidade de pensar, justamente por causa da sua insanidade mental, ou seja, era o momento em que a razão exclui a loucura, e esse gesto era simultâneo ao confinamento dos loucos. Assim, o corte entre a razão e a desrazão tornou-se apenas uma expressão institucional do que estava ocorrendo.
Foucault afirma que a história da irracionalidade deve estar dentro das mesmas fronteiras que a história da razão, pois são cúmplices. Para Foucault, a Psiquiatria é apenas o monólogo da razão sobre a loucura e, em sua referida obra, realizou uma arqueologia do silêncio que foi imposto à segunda, visualizamos a partir da ótica de Foucault a relação loucura e mulher inserida na sociedade, apontamos a questão das mulheres internas do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, analisamos 200 prontuários dos quais 140 dos casos de internações eram de pacientes do sexo feminino, que narram a situação da paciente
A paciente G.F.d.S. disse que o motivo principal de sua doença foi um roubo feito por seu marido então ela começou a se preocupar muito com isso e pensava muito nas crianças pois seu marido era muito bruto tanto para ela como para as crianças, salientou também que ele gostava muito de beber nada mais salientou sobre sua doença

Buscamos discutir os conceitos de loucura que no livro História da Loucura Foucault apresenta como fenômeno da loucura desde o Renascimento até o seu total estabelecimento na sociedade. Sendo que, não só a maneira de o homem lidar com a loucura sofreu transformações com o passar dos séculos, mas também o modo pelo qual esta foi encarada pela razão, bem como foi necessário analisar a questão acerca sexualidade e gênero, de modo a poder escolher os casos que melhor trazem à tona as categorias que nos interessam investigar.
Assim, a partir de Foucault, procuramos definir alguns significados acerca da loucura, o autor nos diz que a “loucura faz um sarcasmo do saber” , Erasmo de Rotterdam apontou que pelo fato da loucura ser uma fraqueza humana “ela é sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo” .
Uma de nossas primeiras atividades foi a delimitação de gênero e de sexualidade com base em Magali Engel com a Obra Psiquiatria e feminilidade na qual a autora dialoga, sobretudo, com Michelle Perrot, principalmente em seus estudos sobre a história das mulheres e com o Foucault da história da sexualidade, a autora destaca a intervenção na sexualidade feminina por um saber em processo de consolidação: a psiquiatria. Delimitado e contextualizado o conceito, selecionamos os casos nos prontuários que apresentam algumas causas que poderiam apontar o aparecimento dos transtornos mentais:

A Paciente M. R. B.d.A. domestica, solteira, esta desorientada quanto ao tempo e espaço, com pensamentos desagregados, conversa bastante, evoca Santos e reza para Deus ( sic).
Diz que os espíritos a incomodavam e não deixavam dormir.
Informa o responsável que o paciente esta muito agitada tendo quebrado a cama e colocado fogo no colchão informa ainda formigamento nas mãos, informa que tem irmãos, mas ela não os considerava como tal, pois eles a maltratavam e a desprezavam dizendo que ela é leprosa.
Viúva, morena, domestica, ela esta cega há muito tempo não sabe nada da família que a maltratava muito, o pai batia nela por causa de namorado .

Esse prontuário ilustra bastante a situação que levaram muitas mulheres à internação, a situação familiar constatada nos prontuários como um dos fatores que ocasionaram transtornos mentais, fator esse que nos motivou a buscar por que como mostra Foucault, ocorreram com as mulheres fatores relacionados ao corpo e a sexualidade ligada diretamente aos transtornos mentais enquanto com os homens na maioria dos casos estavam relacionados ao trabalho, fato esse narrado pelo prontuário 135:
M. J., 29 anos, brasileira, casada. Diagnóstico: histero-epilética. Internada em maio de 1974. suas observações sobre a interna, a definiu como “ninfomaníaca”. Para os médicos que acompanharam M.J., o mal sofrido pela “multípara” tinha relação com os “distúrbios uterinos”. As crises a acompanhavam desde as primeiras menstruações, a intensidade destas diminuiu aos 21 anos, quando se casara, recrudescendo posteriormente quando ocorrem experiências extraconjugais e o abandono do “lar doméstico”. A solução: cirurgia para correção dos distúrbios uterinos através de curetagem. Após a cirurgia, mesmo permanecendo os “ataques epiléticos”, a antes “ninfomaníaca” infiel deu lugar a esposa agora “nervosa e excitada, pela falta da visita do marido que julga seu único amparo. M. J. recebeu alta em setembro De 1974, mas foi recolhida ao Hospício de Alienados, devido ao recrudescimento das “perturbações psíquicas” .


Para a autora, a perda do senso moral não colocaria em primeiro plano a questão ética de que nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida de outro, mas sim de que uma mulher cujo comportamento revelasse uma sexualidade anormal e uma ausência ou insuficiência do amor materno seria histérica e, portanto, potencialmente criminosa. (ENGEL, Magali, 2000. p.329).
O século XIX redefiniu e associa a relação entre mulher e natureza em oposição à imagem do homem relacionado a cultura. A autora, citando Michelle Perrot afirma que as “descobertas da medicina e da biologia [...] ratificam cientificamente a dicotomia: homens, cérebro, inteligência, razão lúcida versus mulheres, coração, sensibilidade, sentimentos”. Moral e socialmente, a mulher deveria cumprir seu papel de esposa e mãe, a incapacidade e/ou recusa definiria um caráter desviante, estranho à própria natureza. Nesse sentido, haveria uma especificidade na condição feminina diante da loucura. Enquanto ela era diagnosticada como doente mental, segundo comprovado desvio em sua natureza, sobretudo sexual, a doença mental do indivíduo do sexo masculino se devia aos “desvios relativos aos papéis sociais atribuídos ao homem – tais como o de trabalhador, o de provedor, etc” Além do comportamento moral da mulher, suas especificidades fisiológicas seriam fatores definidores de predisposições às doenças mentais.
No entanto, Gilberto de Miranda Rocha diz que para compreender esse período se fez necessário analisar a situação no Amazonas que partir das décadas de 1960/1970 ocorreu os fluxos migratórios interregionais que elevaram o efetivo populacional e redefiniram a distribuição da população. No âmbito do processo de povoamento e de expansão da fronteira agrícola, o Amazonas se constituiu essencialmente em uma fronteira urbana. Todo processo histórico recente de ocupação da fronteira contou com o apoio logístico dos centros urbanos locais, independentes de sua posição na hierarquia urbana, uma vez que o núcleo urbano foi estrategicamente criado para:

Servir como poderoso fator de atração de migrantes; Servir de base da organização do mercado de trabalhos (local da concentração/ distribuição da força de trabalho); Servir de local da ação politico-ideológico do Estado – resocialização dos imigrantes.


Rocha afirma que o modelo esboçado de incorporação da fronteira econômica conduziu para os núcleos urbanos uma sucessão de fluxos migratórios, de onde a população migrante se redistribuía em função das atividades econômicas que se organizavam em torno destes pontos. Ou, simplesmente a eles se fixaram paulatinamente à expansão do mercado de trabalho urbano. A velocidade da mobilidade revela a incapacidade do modelo de absorver força de trabalho e, por outro lado, a existência de supostas terras livres à espera de ocupação.
Nos diz Rocha sobre um evento importante no Amazonas na década de 1960 a criação da Zona Franca de Manaus, em 1967, representou o resultado de uma decisão geopolítica, cujo objetivo era acelerar o processo de interiorização do território e responder aos apelos de uma política econômica e desenvolvimentista que englobasse o Brasil como um todo, país de dimensões continentais, e principalmente como forma de garantir a autonomia nessa região que sungo o autor é estrategicamente importante.
A autora Etelvina Garcia apresenta a década de 1960 a partir do que denomina de dois grandes marcos referenciais:

A década de 60 firmou dois grandes marcos referenciais na história de Manaus: a criação da Universidade do Amazonas e a reformulação da Zona Franca de Manaus (...) No dia 12 de junho de 1962, o presidente João Goulart sancionou a Lei 4.069-A, que estabeleceu: “Art. 1.º – Fica criada a Fundação Universidade do Amazonas, que o Poder Executivo instituirá, com caráter de Fundação, a qual se regerá por Estatuto a ser aprovado pelo Conselho de Ministros”. “Art. 14 – A Universidade se comporá dos seguintes estabelecimentos de ensino superior: a – Faculdade de Direito do Amazonas (Lei n.º 924, de 21 de novembro de 1949); b – Faculdade de Engenharia; c – Faculdade de Farmácia e Odontologia; d – Faculdade de Medicina; e – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; f – Faculdade de Ciências Econômicas do Amazonas” .


Relata Etelvina um ano depois da instalação da Universidade do Amazonas, o presidente Castelo Branco assinou o Decreto-Lei 288, de 28 de fevereiro de 1967, que alterou as disposições da Lei 3.173, de 6 de junho de 1957, e reformulou a Zona Franca de Manaus, determinando:

Art. 1.º – A Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio, de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam o seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância a que se encontram os centros consumidores dos seus produtos .


A partir desses dados notamos que a década de 1960 demonstrou um crescimento populacional em torno da geração de emprego e renda proporcionado pela Zona Franca que, no entanto, levou ainda mais pessoas principalmente interioranas para o centro psiquiátrico, Salienta Garcia que o interesse imediato dos investidores demonstrou a eficácia do modelo Zona Franca de Manaus, cujos incentivos diferenciavam-se no plano governamental por se direcionarem especificamente à produção, somente sendo concedidos mediante a efetiva geração de bens e serviços. Manaus logo se transformou em importante centro de comércio importador e expressivo pólo de turismo doméstico, atraindo visitantes dos mais distantes pontos do Brasil, interessados em comprar produtos estrangeiros com garantia de qualidade (as importações eram proibidas no resto do país). O setor de serviços expandiu-se. A oferta de empregos, a receita tributária estadual, os índices de construção civil e o consumo de energia elétrica cresceram significativamente.
A cidade expandiu-se “para além do Boulevard Amazonas”. Foi nesse clima de mudanças que se implantaram a partir de 1968 as primeiras indústrias incentivadas, formando o embrião do Pólo Industrial de Manaus, que hoje se afirma como um dos mais expressivos da América Latina.
Para compreender as relações sociais no Amazonas foi necessário analisar, segundo Gilles Lipovetsky , o contexto nacional nas décadas de 60 e 70 que despertaramm diferentes opiniões, uns acham que foi a idade áurea de novas liberdades, outros vêem nela uma época sombria que provocou o desmoronamento da moral, da autoridade e da disciplina. Porém, o que fica evidente são as mudanças e as conseqüências sociais, políticas e culturais refletidas até hoje na sociedade.
Nos diz Lipovetsky que o processo de desenvolvimento do Brasil, que historicamente concentrou os investimentos públicos e privados na região centro-sul, não propiciou um maior intercâmbio econômico entre as regiões, provocando as desigualdades regionais. Como forma de enfrentar esse problema, o modelo ZFM surgiu para atrair e fixar capitais na Amazônia, compensando as longas distâncias e a falta de infra-estrutura da região.
O desenvolvimento econômico de determinada região ocorre principalmente em decorrência do aumento dos investimentos públicos e privados, o que reduziria as disparidades inter-regionais. Os mecanismos de planejamento econômico, programas especiais de implantação de infra-estrutura, transferências de receitas e incentivos fiscais são algumas medidas compensatórias. Este último é utilizado em larga escala na maioria dos países do mundo, a exemplo da ZFM – um desses projetos que logrou importantes alterações na estrutura da economia regional.
Na década de 60 a estrutura produtiva de todos os estados da região Norte era formada, predominantemente, por uma agricultura extrativista e complementada por uma indústria incipiente de produtos tradicionais (alimentação, têxtil e madeira). A partir da década de 80, por causa dos efeitos da ZFM, o setor industrial passa a ser predominante, o que o diferencia do modelo de outros estados. No setor industrial local, há maior apropriação de valor agregado aos produtos.
Gilles Lipovetsky nos diz que no mundo, foi intensa a implantação de ditaduras militares, principalmente na América Latina pelos países imperialistas. Havia uma preocupação com as contestações, protestos, movimentos revolucionários dos anos 60. O ano de 1968 foi marcado por manifestações sociais, políticas e culturais em várias partes do mundo, sendo palco de protestos contra a ditadura, destacando a rebeldia do movimento estudantil e do movimento operário.
No Brasil, segundo Gilles Lipovetsky os anos de 60 e 70 foram reconhecidos como anos de mudanças, as quais promoveram transformações na estrutura da produção e da sociedade, nos comportamentos políticos e nas manifestações culturais. Lutava-se contra o regime de ditadura militar implantada em 1964, contra a reforma educacional, o que mais tarde provocou o fechamento do Congresso e na decretação do Ato Institucional nº 5.
Além disso, o país foi palco de grande “expansão da massificação das informações e dos padrões de comportamento de consumo. Nos meios de comunicação a televisão foi o principal veículo que penetrou de forma incomparável numa década em que as redes de telecomunicações atingiram distantes regiões do país. Ela generalizou-se em todas as camadas sociais. Ou melhor”, a informação era dominada pelo rádio e pela televisão.
Assim, a revolução dos costumes inseriu-se em diferentes países, a partir da década de 60, com o apoio de importantes veículos de informação, entre eles a televisão, como já havia mencionado. Exerceu grande influência na transformação dos costumes.
A década de 60 teve grande efervescência política, social, cultural e ideológica. Foi acentuada a rebeldia dos valores existentes, ditos tradicionais. A década de 70 foi marcada por golpes e revoluções, como se fosse um painel de acontecimentos diversos. A década de 60 foi marcada pelas ditaduras, pelos movimentos estudantis, pelo movimento hippie e pela míni-saia de Mary Quant. Na década de 70, ocorreu o ressurgimento do movimento feminista no Brasil, cujas idéias eram de intensa circulação.
Nesse contexto, as pessoas com transtornos mentais foram afastadas do resto da sociedade, enquanto muitos brigavam por liberdade, os pacientes viviam verdadeiras torturas em busca da cura chegando algumas vezes a serem encarcerados, em condições precárias, sem direito a se manifestar na condução de suas vidas, como contatamos na análise da obra do autor argentino Alfredo Moffatt que analisou a psicoterapia do oprimido, à humanização do social e aos direitos humanos dos excluídos. A importância do grupo terapêutico e a passagem da psicanálise à psicologia social, como forma criadora da “dor social” a dor da exclusão fator preponderante segundo os prontuários médicos para os transtornos mentais.
Moffatt investigou durante vários anos o campo da psiquiatria social, em particular com relação à psicoterapia em classes populares, o autor definiu a enfermidade mental como um momento de descontinuidade do processo de viver. Sendo assim trabalhou as injustiças sociais apresentando uma alternativa de terapia com base nos estilos de vida e necessidades do povo, analisada tratou as formas e processos de degradação mental nos manicômios bem como as formas de degradação material a que são submetidos os setores marginalizadas da população fazendo a ligação dos temas loucura e pobreza.
Para tanto, para iniciar a analise acerca das mulheres se faz necessário o entendimento do que vem a ser um transtorno mental, o termo “doença mental” ou transtorno mental, engloba um amplo espectro de condições que afetam a mente. Doença mental provoca sintomas tais como, desconforto emocional, distúrbio de conduta e enfraquecimento da memória. Algumas vezes, doenças em outras partes do corpo afetam a mente; outras vezes, desconfortos, escondidos no fundo da mente pode desencadear outras doenças do corpo ou produzir sintomas somáticos .
Alfredo Moffatt , parte da concepção de saúde mental que implicava na recuperação e resgate da identidade pessoal do paciente que só pode ser desenvolvido, segundo o autor, a partir do resgate da identidade histórica e cultural do povo, reinterpretando as técnicas psicoterapêuticas a partir dos estilos de vida do povo, seus valores, seus mitos, seu folclore, só assim conseguirá operar uma cura verdadeira. *(de acordo com os prontuários)
Nossa pesquisa esteve ligada ao cotidiano psiquiátrico, ao assunto loucura e mulher, temas antes considerados marginais na história, mas hoje já tendo décadas de pesquisa em diferentes vertentes teóricas. Acreditamos que a história social é a que nos possibilita maior liberdade de ação em relação às fronteiras como aponta José de Assunção Barros reforçado por E.P. Thompson : “Que através da análise da luta de classes, reconceitualiza o materialismo dialético, possibilitando a melhor compreensão da existência e da consciência social".
José de Assunção Barros reforça ainda, afirmando que análise da história social contribuiu para compor no imaginário social um registro linear e progressivo de tempo, mostrando para cada indivíduo e para a sociedade inteira uma consciência de que o homem está definitivamente amarrado a uma cadeia de eventos irrepetíveis, portanto, analisamos os transtornos mentais a partir dessa relação social com os demais eventos, econômicos, políticos, sociais e culturais.
A partir dessas concepções entendemos que na história o fator de maior peso para que uma pessoa seja excluída da sociedade e classificada como louca é perceber a baixa classe social. A relação existente entre a loucura, ou antes, entre a rotulação de loucura e a pobreza é um ato tradicional de segregação social. Como observa Foucault, “[...] na história do desatino, [a internação] designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da impossibilidade de integrar-se no grupo” . A loucura se sobrepõe, portanto, a outro fator de exclusão social: a pobreza.
Acerca dos nossos procedimentos teórico-metodológicos, a experiência acumulada a partir da análise dos prontuários e de leituras especificas, permitiu-nos afirmar a importância do uso de documentos clínicos como fonte primária. Combinados com a leitura de textos psiquiátricos e em comparação com seu contexto histórico-cultural, tais documentos permitem que se tenha acesso ao cotidiano do hospital, a seus processos diagnósticos, terapêuticos.
Baseando-nos na análise elaborada pelo autor Eduardo Mourão Vasconcelos , que abordou as interligações da subjetividade com os fenômenos políticos, sociais, grupais, institucionais e culturais, incluiu as diversas psicologias, a psicanálise, o serviço social e outras contribuições de vários outros campos acadêmicos e profissionais, enfatizando a relevância da discussão para várias linhas de política social no contexto brasileiro, como em saúde, saúde mental, assistência social e educação.
Enfatiza ainda o autor ser o campo das abordagens psicossociais complexa e polêmica, tendo uma história própria, mas na maioria das vezes de forma parcial ou marginal foram tratados secundarizadas pelo poder dos modelos hegemônicos, ou em modelos que no passado tiveram maior relevância.
A partir desses estudos buscamos discutir os conceitos de loucura, sexualidade e gênero, de modo a poder escolher os casos que melhor trazem à tona as categorias que nos interessaram investigar. Assim, a partir de Foucault procuramos definir alguns significados. Uma de nossas primeiras atividades foi à delimitação de gênero e de sexualidade com base em Mary Del Priore e Foucault . O conceito de loucura que segundo Foucault supõe uma ausência de ordem, favorecendo assim a proliferação de metáforas como estratégia para atender a necessidade social de explicação para os fenômenos, delimitando e contextualizado o conceito, selecionamos os casos no banco de prontuários médicos disponibilizados pelo Hospital psiquiátrico Eduardo Ribeiro de Manaus para construção desse trabalho.
A historiografia brasileira tem se esforçado para romper o silêncio que os diagnósticos ajudaram a criar, calando subjetividades e resistências por meio da medicalização dos comportamentos anti-sociais. Maria Clementina da Cunha , por exemplo, trouxe nova luz à compreensão da realidade dos internos do Juquery, e Magali Engel fez o mesmo em relação ao Hospício Pedro II/Hospital Nacional.
Sobre as internações analisamos a partir da concepção de Erving Goffman , o autor produz um discurso crítico sobre o mundo do internado, da equipe dirigente, dos objetivos institucionais, inter-relacionando-os e, referindo as diversas fases de vida do sujeito institucionalizado. Este foi um texto produzido a partir de um trabalho de campo levado a cabo pelo autor, numa instituição psiquiátrica, semelhante a nosso projeto.
Apresenta-nos a realidade essencialmente, no caráter de fechamento destas instituições, criando-se, dessa forma, uma barreira entre interior e exterior. No interior das instituições habitam não apenas as equipes dirigentes, mas, também os internados, os prisioneiros, e alguns que optam por uma vida solitária que se internam por iniciativa própria
A Paciente O.M.F.S. Diagnóstico 298.2, psicose inespecífica.
Paciente se dirigiu ao hospital por conta própria citando que estava sendo perseguida. Entrou na instituição onde se encontra em observação.
Diagnostico- Perseguição
Acompanhamento da Paciente:Repouso e medicação

Na passagem de uma vida no exterior para uma vida de confinamento espacial e social, o indivíduo passa por processos de modificação. Em qualquer dos casos, seja a institucionalização forçada do sujeito, ou seja, por sua iniciativa, inicia-se um processo de mortificação do eu inicial do sujeito, pelas concessões de adaptação às novas regras institucionais, os que resistiram ou fugiam ou passaram por tratamentos que envolviam choques ou altas medicações, exemplo de fuga foi o prontuário 097 que nos mostrou uma paciente com um número grande de fugas:

A Paciente M.F.d.S. Diagnóstico 298.2, psicose inespecífica.
Dra. Ivone Oliveira
Paciente se recusa a permanecer no banho e desdobramento social.
Diagnostico- Fuga
Incapacidade de comunicação
Incapacidade de auto gestão.
Acompanhamento da Paciente:
1º Entrada a noite
15.08.1966 - Fuga / 19.08.1966 - Retorno / 22.08.1966- Fuga / 29.08.1966 – Retorno / 01.09.1966 – Fuga / 05.09.1966 – Retorno / 09.09.1966 – Fuga / 12.09.1966 – Retorno /15.09.1966 – Fuga / 20.09.1966 - Retorno / 23.09.1966- Fuga / 26.09.1966- Retorno / 04.10.1966 – Fuga / 11.10.1966- Retorno / 14.10.1966 – Fuga / 18.10.1966- Retorno/ 21.10.1966-Fuga / 25.10.1966 - Retorno / 18.10.1966-Fuga .

O indivíduo foi jogado entre a sua personalidade real e a personalidade que para si se produz, não só pela equipe dirigente como por toda a sociedade. Goffman analisou ainda a questão do tempo vivido no interior da instituição, nomeadamente a organização do tempo dos internados ou prisioneiros, segundo atividades programadas milimetricamente, cuja função, para além de disciplinar os sujeitos, os inibe em termos de desenvolvimento pessoal.
Na esteira desses estudos, buscamos investigar a experiência das internas do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, com o intuito de trazer à tona as diferenças de atribuição de diagnósticos e as conseqüências disso para a experiência e conformação das subjetividades, suas experiências podem esclarecer quais eram os modelos ideais de cidadania em que dificilmente logravam acolhidas. Trata-se, enfim, de tentar entender o que era a loucura entre as décadas de 1960/1970 e quais as implicações de pensar a inexistência de uma 'essência de loucura' em favor da investigação histórica sobre como ela foi nomeada, definida e tratada.
Com esses objetivos, buscamos compreender o contexto cultura, social e político que leva mulheres a transtornos mentais. Os sintomas mentais são, na maioria, variações quantitativas da ação ou da fala, e as descrições parecem ser fenômenos. No entanto, o exame da prática clínica nos mostrou como a descrição final de um diagnóstico estava marcada, por um lado, por sinais mais ou menos claros e, por outro, por códigos sociais, fato que demonstravam que o psiquiatra foi instruído culturalmente sobre como perceber uma desordem mental , fato esse apontado pelo prontuário:

A Paciente G.F.P., Lavadora, Casada, já veio varias vezes para o hospício (SIC). Na ultima vez veio com seu filho. Disse que se achava perseguida por um homem que quis conquista sua filha e ele foi uma barreira na conquista. Segundo ela foi ele que a mandou para o hospital disse que esse homem só vivia lhe chamando de maluca, muitas vezes o paciente sentia falta de apetite, insônia e no dia seguinte ficava fora de si e ia para as casas das vizinhas conversar tolices .

Como bem destaca Canguilhem , o comportamento considerado normal pode variar significativamente no tempo e no espaço, ou seja, é um processo histórico que se modifica de cultura para cultura. Dessa forma, os motivos que supostamente explicam o enlouquecimento de uma mulher também variam para a sociedade em diferentes épocas. Nesse sentido, descreveremos não o comportamento anormal, mas as razões que supostamente sustentaram tal concepção. Se para muitas "loucuras" não se encontram os motivos, exatamente pelo fato de serem "loucuras", para outras, eles estão presentes. Certas mulheres poderiam ter a sua "loucura" desencadeada por uma dor moral muito forte, uma doença orgânica, ou por qualquer outra causa.
Rohden escreve que a mulher era vista como um ser sempre ligado a sua função reprodutora, e as fases de sua vida, como puberdade, gravidez e menopausa, podiam ser desencadeantes de desequilíbrios emocionais. Dessa forma, durante toda a vida, a mulher seria um ser propício a perturbações mentais, e a menstruação estava em destaque nas discussões a respeito desse problema, além disso, o autor faz a relação das próprias doenças que supostamente atingiriam o psiquismo feminino com o ciclo reprodutivo em seus diferentes aspectos, como exemplo relata o caso Abel Parente, médico italiano que clinicou no Rio de Janeiro no final do século XIX e início do XX. Médico de senhoras que realizava em suas pacientes uma técnica para impedir a concepção e foi acusado de esterilizador e responsável pelo enlouquecimento de sua paciente M. A. de F. do B,

Afirmam, parentes e amigos que, algum tempo depois das primeiras intervenções, começou a paciente a apresentar modificação de caráter, tornando-se tristonha e concentrada, de jovial que antes era. Este estado de espírito foi cada vez mais se acentuando, de tal forma que, em princípios do mês de novembro, apresentou-se em franco estado melancólico. No dia anterior ao da conferência teve violenta crise de agitação, acompanhada de delírios eróticos, manifestando atitudes obscenas e usando de linguagem incompatível com a sua educação. (Rohdem, 2001.p. 180).

Rohden observa que a falta de razão de M. A. de F. do B. era evidenciada pela recusa em obedecer ao marido e por expressar desejos eróticos, e que isso só poderia ter ocorrido (conforme acreditavam alguns médicos do período) em virtude das intervenções externas, no caso, a supressão brusca das regras provocadas pelos procedimentos médicos. A autora também salienta que, quando uma mulher realizava um comportamento anti-social, ela não era acusada e sim definida como uma vítima ou uma doente, o que retirava dela o poder de demonstrar suas insatisfações em relação à situação que vivia
A Paciente M.G.d.S vinha de família pobre, mais dava para passar. Se dava bem com os vizinhos, mas concluiu que também tinha gente que a perseguia. Quando solteira gostava de ir a festa com sua filha, a qual foi deflorada com 15 anos de idade.
EXAME MENTAL
Apresentação boa. Bem cooperativa lógica nas respostas. De instante a instante chorava. Orientada no tempo e espaço. Orientada auto e ela psíquica, curso do pensamento agregado: humor triste, memória conservada para fotos recentes e remotos. Consciente da doença. Boa inteligência não apresentava distúrbios de senso- percepção .


A loucura feminina foi "diagnosticada" tanto por leigos como por especialistas, e, embora hoje possamos não concordar mais com tais classificações, esse "diagnóstico" mostra-nos um pouco dessa sociedade e a forma como ela manifestou-se diante de uma problemática específica. "A História deve buscar a compreensão de como as percepções acerca do estar no mundo mudaram e, para tanto, não tem como deixar de reconhecer que não trabalha com o estanque, pois se remete exatamente ao mais dinâmico". O olhar que a sociedade dirigia para a alienada mental era, portanto, condizente com o momento histórico, assim como o olhar que hoje lançamos para esses mesmos trabalhos demonstra ser concordante com nossas concepções presentes.
Apresentar que desde a década de 70, o termo gênero foi usado para teorizar a questão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado para acentuar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra direciona para uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual. Desta forma o gênero marca o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, é uma forma de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana na qual consideramos que se enquadra os transtornos mentais.

Referencias
BARROS, José D’Assunção. O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004.
CANGHILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária; 2002.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1986.
ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. IN: PRIORE, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal. 1984
GARCIA, Etelvina. Manaus, Referências da História: 2ª edição revisada. Manaus. Editora Norma. 2005.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1999.
ROHDEN, F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001.
THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001..
VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Abordagens Psicossociais. História, Teoria e Trabalho no campo. Volume I. Editora Hucitec. São Paulo, 2008.
Autor: Maristela Schittini


Artigos Relacionados


As Práticas Divisórias

Saúde Mental E A Reforma Psiquiátrica No Brasil

HistÓria E Sexualidade

SistematizaÇÃo Da AssistÊncia De Enfermagem Ao Paciente Portador De Esquizofrenia ? Estudo De Caso

Stultifera Navis, Doce Ilusão

Michael Foucault

A Loucura Na Sala De Jantar