A Cadeira do Feio (a questão dos limites para pais e crianças)



Essa semana uma amiga comentou comigo sobre um incidente na escolinha de seu filho. O incidente ocorreu por conta do surgimento da Cadeira do Feio na turminha de seu filho, onde as crianças tem em torno de 4 anos.
Algumas mães questionaram a existência de tal cadeira e a partir daí, reuniram-se com a equipe diretiva da escola para esclarecimentos. A escola negou a existência formal de tal Cadeira, contrariando os relatos de algumas crianças.

Quero aproveitar este episódio para tecer dois comentários que considero elucidativos sobre estes e outros relatos de crianças, mães, escolas, etc.

1) Primeiro Comentário - Nomear - A nomeação para a criança
A maioria das mães, ao cuidar de seu recém-nascido (ao dar mama, ao trocar fraldas, ao dar banho, ao fazer dormir, etc), vai narrando para o bebê aquilo que está fazendo: "agora vamos trocar essa fralda", "a mamãe vai fazer sua papinha", "quem é que vai tomar banho agora e ficar cheirosinho", "cadê a mãozinha mais fofinha" e por aí vai.

O bebê desde que nasce (e muitas vezes até mesmo antes de nascer, ainda no ventre da mãe) já começa a ouvir da mãe (e dos demais que cuidam do bebê) o nome das coisas.

Essa "narrativa" é fundamental para o desenvolvimento saudável da criança, desde bebê. A criança, através dessas falas vai aprendendo a nomear as coisas.

Quando uma criança não consegue nomear alguma coisa ela demonstra esta necessidade, geralmente chorando, perguntando ou apontando, enfim, de alguma forma a criança manifesta a necessidade de nomeação.

Isso é facilmente observado com relação à nomeação de sentimentos, por exemplo. Quando uma criança pequena está assustada, muitas vezes ela não sabe o que acontece com ela, então chora ou grita ou manifesta de alguma maneira seu sentimento. Ao corrermos para "socorrê-la", geralmente já chegamos nominando aquilo que gerou o medo. E assim, no decorrer de seu crescimento a criança vai ampliando seu vocabulário, ao mesmo tempo que vai aprendendo que as coisas, todas, tem nome.
Dar um nome às coisas (sejam elas objetos, pessoas, locais, sentimentos, etc) é estruturador para as crianças. O inominado é para a criança muito desestruturador.
O medo do inominado aparece até mesmo nos filmes e livros do Harry Potter e seu arquiinimigo, cujo nome não se pode pronunciar e que para se referir a ele as pessoas dizem "Aquele que não deve ser nomeado". Vemos que, até para os adolescentes, o não nomeado ainda tem efeitos desestruturantes.

Falando em filme do Harry Potter é importante lembrar que a nomeação das coisas não ocorre apenas através dos familiares e das pessoas de convívio da criança, mas também ocorre através da mídia. Qual mãe já não teve que explicar alguma palavra pronunciada em algum desenho animado ou comercial de televisão e cujo significado era desconhecido para o filho.
E que fascínio exerce uma palavra nova para uma criança: Quantas e quantas vezes acontece de uma criança aprender uma palavra nova e ficar repetindo-a, tentando encaixá-la em todas as suas frases (principalmente quando os pais não querem que a criança repita a palavra).

Isso tudo faz parte do desenvolvimento saudável da criança.
Pelos motivos resumidamente expostos acima é que fica fácil compreender que numa certa idade as próprias crianças passam a nomear as coisas. Elas dão nomes aos brinquedos e aos seus objetos pessoais, dão apelidos aos familiares, podem até mesmo auxiliar na escolha do nome de um maninho ou maninha.

Em um ambiente como a escola, por exemplo, uns aprendem as nomeações dos outros. Além disso a necessidade de nomear fca multiplicada pelo número de crianças no ambiente. Se algo que não tem nome acontece ou aparece, imediatamente as crianças dão um jeito de nomeá-la. Para isso utilizam-se de duas possíveis fontes de inspiração: a própria experiência ou a imaginação. Essas duas fontes, por sua vez, são inesgotáveis. A experiência, por ser múltipla nestes casos em que temos várias crianças no mesmo ambiente, e a imaginação, que nem é preciso explicar.

Bom, imagino que já dá para imaginar o que ocorreu na escolinha, não é?
Imagino que alguma criança estava sentada no momento em que foi descoberto como autor de algo feio. Daí para nomear a Cadeira do Feio é um piscar de olhos, principalmente se alguém já tinha essa experiência. Quando digo que alguém já tinha a experiência, não necessariamente que ela tenha vivenciado, mas que possa ter assistido em algum desenho ou que possa ter escutado alguma conversa, enfim, de qualquer fonte de "conhecimento" da criança.

Não pretendo entrar no mérito da eficácia ou não de qualquer tipo de "Cadeira", seja ela do Feio ou do Pensamento.

Quero, no entanto, aproveitar para tecer o segundo comentário:

2) Segundo Comentário - Nomear - A nomeação para os pais
Os pais também precisam de nomeação. A maioria das mães e pais de primeira viagem pergunta: "Cadê o manual de instruções deste bebê?".

A necessidade de um manual é justamente a necessidade de nomeação. Como é o nome disso que está acontecendo? Essa é umas das inúmeras indagações dos pais. Felizmente os pais desta e das futuras gerações têm a internet e o Google para auxiliar na tarefa de "dar nome aos bois".

Muitas vezes utilizamos metáforas como forma de nomeação de alguns fatos. Uma metáfora que considero interessante para a nomeação dos filhos é a idéia proposta pelo psiquiatra e autor de vários livros da área de educação Dr.Içami Tiba.

Ele diz que filhos são como navios...
"no estaleiro os navios são construídos. O lugar mais seguro para os navios pode ser o porto, mas eles não foram construídos para ficar ali ancorados, e sim para singrar os mares...
Ou seja, os pais podem achar que o lugar mais seguro para os filhos é junto deles, mas os filhos não nasceram para isso, e sim para singrar os mares da vida...
Os navios superam as rotas dos pais e chegam a lugares que nunca estiveram antes. Assim evolui a humanidade." (Içami Tiba em seu livro Quem ama, educa. Formando cidadãos éticos. 2007, página 70).
Para que nossos "navios" possam singrar os mares da vida com maior desenvoltura e sucesso é necessário, porém, que os navios saibam enfrentar as tempestades, os maremotos, os ventos fortes e toda a espécie de dificuldades.

Se o navio não for construído forte para enfrentar os desafios dos mares da vida, certamente afundará na primeira dificuldade.

Para que nossos filhos não "afundem" nas primeiras dificuldades (não esquecer que elas aparecem cada vez mais cedo em forma de uso de drogas, de gravidez precoce, de pequenas delinqüências, etc) é preciso que eles saibam lidar com as frustrações. Isso, por sua vez, ocorre na medida em que desde bem pequenos eles as conheçam e, desde pequenos, saibam lidar com elas.

Para lidar com as frustrações é preciso que os pais saibam dizer e manter um "não" e que as crianças saibam acatá-lo.

É importante ficar claro que satisfazer todos os desejos dos filhos equivale a não prepará-lo para o futuro. Os pais que satisfazem todos os desejos dos filhos para não fazê-los sofrer estará contribuindo para um sofrimento muito maior na adolescência e na vida adulta, pois o mundo lá fora não irá satisfazer seus desejos. O pior é que os pais vão presenciar o sofrimento dos filhos sem poder fazer nada por eles, pois os pais, por mais influência que tenham, não podem obrigar as pessoas a se apaixonarem por seus flhos nem tão pouco mantê-los em empregos ou em faculdades. Enfim, após uma determinada idade os pais não podem mais "proteger" seus filhos.
Ao contrário do que muitos pensam, dizer um "não" demonstra mais amor do que dizer um "sim". Experimentar pequenas frustrações desde pequenos prepara a criança para as tempestades da vida adulta.
A partir desses dois comentários e da minha experiência profissional e de mãe, quero fazer algumas considerações. Lembrando que cheguei à muitas das considerações abaixo, através de erros e não de acertos.

a) A Cadeira do Feio existiu, sim. Provavelmente de forma momentânea. Provavelmente não foi instituída por um adulto (como alega a escola). Provavelmente foi instituída por alguma criança, que sentiu a necessidade de nomear uma conseqüência para um mau comportamento.
b) Falando em mau comportamento, é preciso deixar claro que os maus comportamentos devem sofrer conseqüências. Não se trata de castigo nem punição, mas conseqüência, que por sua vez, deve ter relação com o mau comportamento.
c) Os pais devem sempre conferir a outra versão das histórias contadas pelos filhos. Se existem crianças que não mentem também existem crianças que fantasiam e crianças que "interpretam" uma situação de forma diferente da que foi colocada.
d) Os pais devem confiar na escola que escolheram para os filhos. Precisam ter em mente, de forma bem clara, que a escola não tem a função de atender às necessidades individuais de cada criança e sim de atender às necessidades do grupo de crianças.
e) Os pais que demonstram insegurança em relação à escola devem saber que a criança percebe essa insegurança. Neste caso, os pais poderão estar oferecendo aos filhos um prato cheio para chantagens emocionais, birras, manhas, etc.
f) A escola infantil é o local que complementa os cuidados e a educação, principalmente a socialização. A escola infantil é um "treino", um "ensaio" para a entrada na escola formal e a escola formal é um "treino", um "ensaio" para a entrada no mercado de trabalho.
g) O mercado de trabalho não está interessado em atender às nossas necessidades e sim, em que nós atendamos às suas necessidades.
h) Criança que não sabe lidar com a frustração e que tem mãe e pai sempre disponíveis para satisfazer todos os seus desejos, será um adulto mal-resolvido. Será "filhinha de papai/filhinho de mamãe". Sabemos que estes termos são pejorativos e que se referem às pessoas que não conseguem resolver de forma saudável os conflitos inerentes à vida adulta. Lembram da filha de milionários que matou os pais cruelmente? E do filho do juiz que colocou fogo em um índio? E dos adolescentes de classe alta que espancaram uma empregada doméstica?
i) Formar cidadãos éticos pressupõe que os pais saibam que seus filhos não são o centro do universo. Podem até ser o centro da família na qual estão inseridos, mas, com certeza não são o centro do universo.

Içami Tiba resume:
"A arte de ser mãe e pai é educar os filhos para que se tornem afetivamente autônomos, financeiramente independentes e cidadãos éticos do mundo" (Içami Tiba em seu livro Quem ama, educa! Formando cidadãos éticos. 2007, página 94).

Ana Cláudia Soares Thones
Psicóloga
Mãe de dois pré-adolescentes
[email protected]
Autor: Ana Cláudia Soares Thones


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