Lula, Jesus, Judas e o Parlamentarismo



Há pouco, completaram-se vinte anos da primeira eleição presidencial direta após o fim do Regime Militar. Naquela manhã, muitos relembravam como, em 1989, Lula e alguns dos atuais parlamentares no comando do Congresso Nacional eram inimigos viscerais, em contraste com a incoerente e explícita amizade hoje mantida.

Entende-se os motivos de tantas reviravoltas similares: em uma democracia, o Chefe do Poder Executivo não tem o poder absoluto. Ele governa junto com o Poder Legislativo. E, se governa junto com o Poder Legislativo, precisa do apoio da maioria de seus membros para pôr em prática seu projeto administrativo. No caso de um congresso manifestamente corrupto como o brasileiro, o apoio é condicionado à concessão, pelo Poder Executivo, de benesses e vantagens políticas a muitos parlamentares e/ou seus apadrinhados – normalmente o compromisso de nomeá-los para cargos em ministérios, empresas estatais, agências reguladoras e similares, em uma clara demonstração de loteamento de poder na direção do Estado Federal. Se o Poder Executivo não cede à chantagem imposta pela maior parte do Legislativo, perde apoio e fica impossibilitado de governar.

Por isso, o grande escândalo provocado pela afirmação de Lula de que, “se Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”, decorre unicamente da menção ao sacro nome do fundador da civilização ocidental e seu maior algoz em uma metáfora afirmativa do fato de que, em uma cultura política marcada por vícios como excessivo estatismo, clientelismo, coronelismo e captação de vantagens às custas da máquina pública, para governar dentro do regime democrático o Poder Executivo deve unir-se a antigos inimigos que estejam no comando do Legislativo a fim de conseguir o apoio da maioria, sob pena de ingovernabilidade (se Lula fizesse tal metáfora mencionando os nomes de Winston Churchill e de Adolf Hitler, de Mahatma Ghandi e do Império Britânico, ou, ainda, de Salvador Allende e de Augusto Pinochet, não haveria qualquer escândalo pela ausência de conotação religiosa, que, no caso em tela, infelizmente prevaleceu em detrimento do reconhecimento, em um contexto maior, da verdade nua e crua por ele dita). Outra opção? Com essa cultura política, que não foi criada por Lula, mas com a qual ele é obrigado a lidar, infelizmente pôr os tanques na rua, fechar o Congresso e partir para a ditadura. Não sei o que é pior.

Portanto, a única solução para diminuir a dependência do Poder Executivo dentro de um regime democrático seria a significativa melhora da representação parlamentar, que, em um país marcado por inconsciência política de grande parte da população (que vota e elege constantemente sanguessugas do erário público) só seria possível, em curto prazo, com uma ampla reforma política capitaneada pela transformação do Brasil em uma República Parlamentarista.

Na República Parlamentarista, o Chefe de Governo é o Primeiro-Ministro, que tem o poder de fato e de direito e é eleito pelos próprios parlamentares ou indicado pelo Presidente da República (que é apenas o Chefe de Estado, eleito pelo voto popular e cuja maior parte das atribuições é meramente protocolar). Tal eleição ou indicação recai sempre sobre um dos membros do partido ou coalizão majoritária no Parlamento. Isso desloca o foco do eleitor para, forçosamente, mudar a qualidade da representação parlamentar ao conhecer os programas partidários e os históricos dos candidatos (algo que, no nosso atual sistema, somente se faz em relação aos candidatos à Presidência da República), pois o líder da nação não é escolhido pelo voto popular, mas, como já dito, eleito ou indicado dentre os próprios parlamentares.

O Primeiro-Ministro e seu Gabinete de Ministros (ou seja, o governo) só permanecem no poder enquanto tiverem o apoio da maioria do Parlamento. Quando esse apoio se dissipa, com a caracterização de sucessivas derrotas do Governo, este pode propor ao Parlamento uma moção de confiança, que, se rejeitada, descaracteriza a apoio da maioria e provoca a demissão do Primeiro-Ministro e de todo o seu Gabinete (da mesma forma que ocorre quando algum parlamentar propõe ao Parlamento a votação de uma moção de censura que venha a ser aprovada). Há, então, a escolha ou indicação de um novo Primeiro-Ministro nas mesmas condições. Caso haja fundada suspeita de ilegitimidade da rejeição à moção de confiança ou da moção de censura votada pelo Parlamento, o Presidente da República o dissolve e convoca novas eleições parlamentares.

No nosso caso, junto com a implantação da República Parlamentarista deve haver a positivação de dois institutos essenciais à manutenção da estabilidade do sistema e que, se aplicados, impediriam a sucessiva queda de Gabinetes: a impossibilidade de o parlamentar mudar de partido no curso do mandato e a irrestrita obediência ao comando partidário, verificada pela votação aberta de cada um deles (sempre sob pena de perda do mandato, já que, segundo posição pacificada dentro do próprio STF, o mandato pertence ao partido e não ao parlamentar). Assim, como o Primeiro-Ministro já inicia o Governo como tal por fazer parte da maioria, o apoio da mesma seria inicialmente garantido e somente cessaria se o comando de algum, ou de alguns dos partidos da coalizão se debandar para a oposição, de modo que a subtração de seus parlamentares provoque a quebra da maioria sustentadora do Governo. Esse é um mecanismo essencial para diminuir muito as situações em que o Chefe do Poder Executivo (no caso em questão, o Primeiro-Ministro) poderia ser obrigado a buscar apoio do Legislativo por meio da concessão de favores políticos, já que estes poderiam ser exigidos apenas pelos comandos partidários (ou seja, um conjunto muito menor de parlamentares, que, por seu reduzido número, poderiam ser muito melhor investigados e mais devidamente punidos), caso este em que o Presidente da República não só poderia, como seria moral e legalmente obrigado a dissolver o Parlamento.

Pode não ser perfeito, mas, como a má mentalidade de muitos de nossos representantes, a indiferença de boa parte do eleitorado, os maus costumes e vícios políticos não são voluntariamente extirpados de uma hora para outra – ao contrário, já estão impregnados em nosso meio há séculos – é a única forma de diminuí-los significativamente em um curto prazo dentro do regime democrático. Assim, não teremos mais, com uma freqüência tão absurda, que conviver com diversos “Judas” sugando o erário ao chantagear quem tem a obrigação de exercer a boa governança.

Leôncio de Aguiar Vasconcellos Filho
Autor: Leôncio de Aguiar Vasconcellos Filho


Artigos Relacionados


Relação Entre A Crise Do Senado E O Sistema De Alianças Políticas No Presidencialismo

Eleições Em Marrocos: Um Voto De Teste Para Os Islâmicos

Eleiçoes Para Presidente No Brasil 2010

Presidente E Vice-presidente Da República

Algumas Notas Sobre A RelevÂncia Das CÂmaras Municipais

Simplificação Na Apreciação Das Medidas Provisórias

Voto E Democracia No Brasil