Gerenciamento De Crises



1 INTRODUÇÃO

No intuito de estabelecer padrões comportamentais técnicos em atuações nos casos de crise, os órgãos policiais brasileiros procuraram, por meio da pesquisa, firmar doutrina que visasse minimizar os riscos acarretados por situações envolvendo reféns. Os resultados destes estudos foram bastante salutares e já podem ser medidos, por meio da diminuição substancial da quantidade de resultados trágicos que sempre rodeiam tais situações. Ao contrário do que acontecia até a pouco tempo atrás, hoje, notadamente no Estado do Paraná, existe uma linha de ação padronizada para a lida com estes eventos, respeitadas as peculiaridades de cada crise. E os efeitos deste processo evolutivo, que se aperfeiçoa paulatinamente, podem ser colhidos pela sociedade, que vê mitigados os riscos de situações extremadas. Assim, o excessivo empirismo com o qual policiais do passado agiam diante de situações com reféns deu lugar a um atuar técnico, com procedimentos, atribuições e responsabilidades bem definidos para cada caso.

Todavia, um parâmetro que urgiu na condição de objetivo do gerenciador da crise parece ser comum a todas estas ocorrências: "primeiro preservar vidas e depois aplicar a lei". Para que se possa entender melhor as mencionadas prioridades: o gerenciador da crise deve sempre se pautar prioritariamente por preservar a vida humana e, só então, em segundo plano, aplicar a lei.

Este paradigma, contudo, ao que se depreende, tenta definir que a aplicação da lei está focalizada em plano secundário, uma vez que existe sempre a possibilidade de que o causador da crise possa ser responsabilizado em momento subsequente. Desta forma, ao deixar o agente de tomar as providências legais em relação ao causador da crise (resposta penal ao autor do crime), isso seria justificável, já que antes da aplicação da lei, emerge a necessidade de que se preserve a vida daqueles que estão submetidos ao extremo risco.

Este é exatamente o ponto que se pretende questionar. Não tem a presente exposição a pretensão de olvidar a viabilidade do padrão ora estabelecido por meio da vigente doutrina que, até o momento, apresenta-se como o mais completo compêndio aplicável a tais eventos. As indagações versam tão somente sobre o equívoco terminológico e de ordem que versa sobre as prioridades fixadas.É um questionamento puramente jurídico acerca das prioridades, que não pretende alterar a substância das soluções e técnicas apontadas, mas apenas aperfeiçoar e contribuir com a doutrina hoje adotada.

Quadra então, de início, deixar clara a pretensão do trabalho: demonstrar que não é possível se estabelecer como objetivo principal salvar vidas e como secundário aplicar a lei. O único objetivo existente num gerenciamento de crise é o de aplicar a lei. E estabelecer a aplicação da lei como objetivo prioritário não significa dizer que o objetivo de preservar a vida está relegado a um plano secundário. A fundamentação dos argumentos ora trazidos à tona é que será aduzida a seguir.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Constituição Federal

A atuação policial, em qualquer que seja a situação, mesmo naquelas mais críticas, sempre deve ter como norte a aplicação da lei. E não existe exceção para isso, nem mesmo as situações envolvendo reféns. Esta afirmação começa a ter sua sustentação mais apropriadamente delineada a partir da análise de fundamentos e princípios de natureza supralegal.

2.1.1 Fundamento da República Federativa do Brasil: "A dignidade da pessoa humana"

O art. 1º da carta constitucional brasileira implica em que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é o da dignidade da pessoa humana. Reveste-se da idéia de que "a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos"[1]. Toda a pessoa, em que pese o constante da parte final da última oração, tem o direito a que não seja menosprezada a necessária estima da qual é merecedora enquanto humana. Assim sendo, conforme se pôde defluir da própria norma constitucional, todas as pessoas, sejam elas criminosas, policiais, reféns, indistintamente trazem consigo este direito de proteção. O ser humano é o centro de tudo, como indivíduo, e deve ter garantidas todas as possibilidade de preservação de sua dignidade.

O respeito à dignidade da pessoa humana impõe que todos devem ter seus direitos garantidos enquanto seres humanos. Conforme já se expôs, trata-se de um mínimo invulnerável, que todo o estatuto jurídico deve assegurar. A este respeito, na medida em que a Constituição Federal assegura a dignidade da pessoa humana, elevando-a como fundamento da República Federativa do Brasil, passa a estabelecer-se como parâmetro que obrigatoriamente deve ser observado pelo legislador infraconstitucional, sob pena da submissão subsequente ao crivo do controle de constitucionalidade.

Em retorno à análise pragmática, transportando o fundamento em estudo para o caso de gerenciamento de crise, já não fica tão difícil vislumbrar que, se a única saída segura para a solução de uma crise (rebelião em penitenciária com reféns, p. e.) é incorrer numa norma infraconstitucional penal incriminadora, isso poderá ser feito, já que a lei, neste caso a norma maior, permite tal impingência. Aliás, ao se considerar que a incorrência num tipo penal teve por fim respeitar um preceito fundamental da constituição, há que se afirmar, sem sombra de dúvidas, que não houve violação de norma alguma, até porque o sistema jurídico deve ser visto como "unitário". Esta unidade, por sua vez, traz como maestrina a norma constitucional.

Ainda no plano constitucional, o artigo 5º insculpe que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...". Sem adentrar no plano dos direitos e garantias individuais expressos pelos incisos do mencionado dispositivo, o caput do artigo 5º estabelece a base a partir da qual o Estado e os indivíduos devem agir. Assim, bens jurídicos como a vida, a propriedade, a segurança, a igualdade e a liberdade afiguram-se como garantias individuais. A tal respeito, dentre todos os bens jurídicos aventados no mandamento retro citado, em respeito ao princípio da proporcionalidade – considerando também que a constituição ora vigente, também denominada constituição cidadã, traz em seu núcleo o indivíduo de forma que Estado está para ele e não o contrário – é evidente que o maior bem jurídico é a vida humana.

Esta norma constitucional prevista no artigo 5º, no tocante à garantia do direito à vida, deve ser enfocada de forma cuidadosa. Trata-se de norma constitucional de eficácia jurídica contida. Isso significa que existem casos em que, para preservar a própria vida ou a alheia, o ordenamento jurídico confere o direito a que se possa matar. E matar, neste caso, não é ilegal. É o caso da legítima defesa, por exemplo. Se uma pessoa está em situação de injusta agressão, atual ou iminente, e, em face disso, utilizando-se de meios moderados e necessários, retira a vida alheia, ou seja, a do agressor, o fato (homicídio) não é ilícito, embora típico. Por assim dizer, em respeito ao princípio da proporcionalidade, se pode-se, para salvar uma vida, tirar outra, com mais razão, atingir um bem jurídico que, embora importante, não tenha tanta relevância quanto a vida humana (maior dos bens jurídicos) não parece uma violação. Nesse rumo, começa-se a vislumbrar o equívoco terminológico da doutrina de gerenciamento de crise, que exprime como prioridade preservar vidas e, secundariamente, aplicar a lei. Ora, se na própria doutrina de gerenciamento de crises observa-se que, compondo parte do teatro de operações, existe um grupo tático e um sniper, que há qualquer momento podem entrar em ação e que tais elementos policiais trazem consigo grande perspectiva do uso de força letal contra o causador da crise, não se vê plausível que, por exemplo, entregar um cigarro para um menor (fato este que aparentemente não é lícito e sequer moralmente aceitável) possa ser considerado ilegal. E a ação policial extrema (uso de força letal), em situações em que seu emprego é necessário, não é ilegal, já que encontra no ordenamento jurídico penal respaldo da excludente de ilicitude denominada estrito cumprimento do dever legal.

No sentido ascendente do degrau da proporcionalidade, será que, em situações de extremo radicalismo, não seria justificável permitir que o agente causador da crise fugisse, se esse fosse o único meio seguro de salvar a vida da vítima?

Do ponto de vista estratégico da atuação de órgãos policiais, isso seria inaceitável, pois, em primeiro lugar, geraria um precedente motivador para outros causadores de crise. Em segundo lugar, não há como prever o que, a partir de sua fuga, poderá ocorrer. Como a própria doutrina preconiza acertadamente, transferir a crise de um lugar para outro poderia acarretar agravamento da situação, risco a outras pessoas até então não envolvidas, dentre outros argumentos perfeitamente delineados. Não significa, no entanto, que a permissão para a fuga seja ilegal, volte-se a afirmar, se a única forma de salvar a vida da vítima for essa.

A análise das assertivas expostas inevitavelmente acaba demonstrando que o equívoco terminológico paira sobre a interpretação jurídica que se dá à situação. A aplicação da lei sempre tem como escopo principal a de salvar vidas, já que a vida é o maior dos bens jurídicos. E todo o bem jurídico que seja atingido como meio para se salvar uma vida, se feito dentro de um critério de proporcionalidade, não ensejará interpretação no sentido de que a lei foi violada. Pelo contrário, atingir bens jurídicos para salvar a vida, desde que necessária tal ação, sempre será mais do que justificável, mas obrigatório para órgãos policiais. Deste modo, não há dúvida quanto ao engano doutrinário. O objetivo policial principal numa crise, ao contrário do que se vê arrostado nas exposições doutrinárias, será sempre o de aplicar a lei. Salvar vidas sempre representará a aplicação da lei, ainda que, para tanto, seja necessário atingir outros bens jurídicos protegidos. De conseguinte, não é plausível o argumento de que não se possa, em meio a uma negociação, atendendo exigência de um adolescente causador de crise, fornecer-lhe um maço de cigarros, se do atendimento da exigência do cigarro depende a vida da vítima que está sendo ameaçada. Ainda no que está afeto à exigência do adolescente, é claro que seria inviável e inaceitável, inclusive do ponto de vista jurídico, atender a exigência de entregar-lhe um cigarro de maconha, não porque a maconha é entorpecente proibido, mas porque, entorpecendo-se o causador da crise, a potencialidade do risco às vidas ameaçadas aumentaria, o que faz com que o atendimento de tal exigência seja absurdo em face de sua desproporcionalidade. Não faz sentido que, para se diminuir o risco momentâneo da vida da vítima, o gerente da crise abra concessão que pode servir de meio para se aumentar, em momento seguinte, tal risco. Mas a compreensão da exposição aludida bem possivelmente será melhor compreendida se analisada de forma mais punctiforme, por meio das denominadas excludentes de ilicitude.

2.1.2 Das Excludentes de Ilicitude

De acordo com o conceito analítico de crime, este é uma ação ou omissão típica, antijurídica e culpável. Sob pena de parecer assaz prolixa a exposição, deixar-se-á de analisar de forma aprofundada cada qual destes elementos. Assim, guardando o afinamento necessário em relação ao tema proposto, a análise de cada um dos elementos do conceito analítico de crime será feito de forma superficial, apenas na medida do necessário, sem desapego às verdades por cada qual dos elementos encerrada. A ressalva, contudo, far-se-á em relação ao elemento antijuricidade, em conexão com o qual está o tema proposto. Relativamente à culpabilidade, esta sequer será mencionada em decorrência de não estar, por sua composição e conceito, na linha de exposição e não guardar qualquer relação com o tema principal.

Genericamente expondo algo a respeito do fato (ação ou omissão) típico, este traz como requisitos a conduta, o resultado, a relação de causalidade e a tipicidade. O dolo e a culpa, por suas vezes, estão situados como elementos da conduta, que tem por conceito a "ação ou omissão humana, consciente e dirigida a determinada finalidade"[2]. A tipicidade, outro elemento componente do fato típico, é a descrição legal do fato incriminado. Não serão analisados aqui os elementos resultado e nexo de causalidade. Desta forma, para que um agente possa ingressar na prática criminosa, é fundamental que ele pratique uma conduta (ação ou omissão) dolosa ou culposa e que esta conduta seja perfeitamente descrita no direito objetivo como crime (nullum crimen nulla poena sine lege)[3]. Mas, como foi exposto, o agente, in casu, ingressa numa prática que, a rigor, é descrita como crime, o que não significa necessariamente ter ele incorrido em crime. Isso ocorre porque, às vezes, um agente ingressa na realização de um fato típico, consumando-o, sem, no entanto, incorrer em crime, por exclusão da ilicitude (antijuridicidade). Assim, depois de se analisar se a conduta adotada por alguém é típica, deve-se passar para a segunda fase, que é verificar se existe algum motivo que justifique ter ele praticado o fato típico. Ingressa-se, neste ponto, no segundo elemento do conceito analítico de crime, que é a antijuridicidade. Este termo, antijuridicidade, está estritamente vinculado à existência, ou não, como já se expôs, de causas justificadoras. Estas causas justificadoras são quatro: legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, estado de necessidade e exercício regular de direito. Para ser mais simplista, sem confrontar com a realidade jurídica, para se analisar se um fato típico foi ou não antijurídico, basta verificar se a prática humana foi realizada com uma dessas causas justificadoras. Destarte, se a pessoa matou alguém (fato típico – descrito no art. 121, CP), esta conduta não será antijurídica, conquanto típica, se quando a pessoa matou, o fez em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito. E, neste rumo, se é típico, porém não antijurídico, então, não estando reunidos os elementos do conceito analítico do crime, não há crime.

Das excludentes de antijuridicidade, as que parecem interessar aos casos de administração de crise são a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal. A primeira, definida no código penal brasileiro, consubstancia-se em repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, usando-se moderadamente dos meios necessários. A agressão, neste sentido, somente pode ser praticada por ser humano. Não é necessário que a agressão esteja em andamento, mas pode ser iminente. O termo iminente significa o que está por acontecer e não o que provavelmente vai acontecer. Ninguém tem a capacidade da premonição, contudo, para saber o que vai acontecer. Por tal razão, o termo deve ser avaliado de acordo com as circunstâncias que integram o acontecimento. Desta forma, por mais que um criminoso, estando armado, afirme que vai efetuar disparo contra alguém, somente se poderá saber se o disparo ía realmente ser disparado se o autor vier a efetuá-lo. Mas aí pode ser tarde. Isso porque, embora tenha o portador da arma dito que atiraria, poderia ele estar blefando. Nessa esteira, se a conjuntura das circunstâncias indicarem que o disparo será feito, terá a vítima o direito de se defender. Não é, inclusive, exigível por parte de quem se defende que este não enfrente a injusta agressão atual ou iminente. O ordenamento jurídico não impõe que o indivíduo se acovarde diante de situações de agressão, podendo mesmo enfrentá-la, desde que não haja excesso, sem que esteja incorrendo em crime. Outro elemento componente da conceituação de legítima defesa é o fato de que o direito a ser defendido contra a injusta agressão pode ser pertencente ao agredido ou a terceiros. Assim, ainda que determinada pessoa não seja parte no acontecimento, presenciando, porém, o fato, poderá interceder, repelindo a injusta agressão atual ou iminente que esteja vitimando outra pessoa. E, finalmente, consagra o ordenamento jurídico a proporcionalidade, ao exigir que os meios empregados sejam os necessários. Meios necessários são aqueles imprescindíveis para a defesa. Não podem ser confundidos com meios suficientes, que têm caráter mais abrangente. Ao passo que necessário está associado ao imprescindível, o suficiente pode passar disso. Exemplo: o uso da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagazaki foi suficiente para concorrer para a rendição japonesa. A pergunta que se faz é se seria necessário matar tantos civis para atingir os objetivos da guerra. Nítida revelação de desproporcionalidade entre os objetivos e os meios empregados. Uma outra exposição interessante acerca da necessidade da utilização dos meios e de sua utilização moderada está no equivocado pensamento de que é exigível o equilíbrio de armas. Às vezes sim, mas nem sempre. Assim, se determinado indivíduo tiver uma arma de fogo nas mãos e, abruptamente, numa distância de dois metros (radicalizando o exemplo), que torne impossível que a vítima aja de outra forma, outra pessoa saca de uma faca para matá-la, não haveria, naturalmente, possibilidade de que a portadora da arma de fogo buscasse outro meio de conter a facada, motivo pelo qual, embora aparentemente desproporcionais as armas, a ação será proporcional em face das circunstâncias. Isso ocorre também com o caso de tiro nas costas, que muitas pessoas reputam com execução. Nem sempre o será, desde que seja a única forma de o defensor com eficiência salvar a vida de alguém. Note-se, com efeito, que a legítima defesa é um dos poucos casos de autotutela existentes no ordenamento jurídico. Não restando tempo suficiente para que o agredido possa avocar a tutela jurisdicional para substituir-se às partes, acaba por si próprio tomando a decisão de fazê-lo. O estudo da legítima defesa, contudo, denota-se bastante complexo, motivo pelo qual poder-se-ía aqui buscar bastante aprofundamento, não sendo, no entanto, prudente que se o faça, já que a noção supra-exposta apresenta-se bastante para a compreensão do que se pretende.

O estrito cumprimento do dever legal, diferentemente da legítima defesa, não encontra definição objetiva em lei. Não é, porém, por acaso que não o fez o legislador. A razão da não definição do instituto é clara. Seria uma superfetação incoerente que a norma penal dissesse que não há crime quando o agente faz o que a lei manda. Ora, se o instituto chama-se estrito cumprimento do dever legal, isso é um sinal de que a lei manda que a conduta seja adotada, por dever de ofício. É claro que se ordenamento jurídico que, conforme já foi dito, é uno, determina que um agente público faça algo, não pode a lei penal prever punição para quem faz o que foi imposto por lei, ainda que a legislação pertinente esteja fora do âmbito penal. "Quem cumpre regularmente um dever não pode, ao mesmo tempo, praticar ilícito penal, uma vez que a lei não contém contradições. Falta no caso a antijuridicidade da conduta e, segundo os doutrinadores, o dispositivo seria até dispensável. A excludente, todavia, é prevista expressamente para que se evite qualquer dúvida quanto à sua aplicação, definindo-se na lei os termos exatos de sua caracterização"[4]. De qualquer forma, a lei, pela simples previsão de que quem age no estrito cumprimento do dever legal conta com uma excludente de ilicitude, foi redundante[5]. A tal respeito, o policial que entra em domicílio contra a vontade expressa daquele que tem a titularidade de morador, ante a existência de uma ordem judicial para tal, não pode ter praticado crime, já que o adentramento no domicílio se deu porque existe mandamento processual e constitucional que o determina. Do mesmo modo, o policial que incorre no tipo de abuso de autoridade por deixar presa uma pessoa, privando seu direito de locomoção, por ter esta pessoa praticado crime e estar em flagrante delito. A lei processual estabelece que, nos casos de flagrante delito, deve a pessoa ser conduzida à autoridade e, em determinados casos, ficar presa. Se a lei assim impõe, evidente que o policial que privou a liberdade do criminoso não praticou fato antijurídico, embora típico. É nesse rumo que se deve dirigir para que se possa entender as prioridades de um gerenciamento de crise.

2.1.3 O Estrito Cumprimento do Dever Legal: aplicar a lei, é claro

Depois de breves explanações quanto às duas excludentes de ilicitude ou de antijuridicidade que interessam para o tema, passa-se a compará-las especificamente com o caso de administrações de crise e com as prioridades estabelecidas pela doutrina que atine ao problema.

Iniciada uma crise, tomadas as medidas técnicas imanentes a cada situação, em certo momento há que iniciar-se a negociação. Esta, por sua vez, assim como todas as demais medidas, dentre outros importantes, mas intermediários, visa principalmente resguardar as vidas daqueles que estão sob o jugo do causador da crise e, inclusive, a deste último. Ao se tecer sobre este escopo da administração da crise, é inevitável que se perceba, desde logo, uma coincidência quanto aos objetos da negociação, por exemplo, e os do ordenamento legal. Assim como o negociador busca a todo tempo, incansavelmente, todos os meios possíveis para que a vida das pessoas seja preservada, assim também ocorre com a lei. Se, a despeito de toda a negociação intentada, visualizar-se a necessidade crucial de intervenção do grupo tático, e isso for feito, sendo necessária e imprescindível a utilização de força letal, e não havendo excesso durante a ação, a ação está legitimada e não estará contrariando a lei. Em sentido inverso, há que se estabelecer que uma ação que culmine com este resultado, além de não contrariar a lei, cumpre, entenda-se, obedece a determinação legal. Assim, matar, que não é o objetivo de uma administração de crise, caso seja necessário, deve ser feito. Note-se que, diferentemente da legítima defesa, que proporciona um direito subjetivo que tem o indivíduo, na maioria das vezes o particular, de se defender, no caso da crise supracitada, em que houve o uso de força letal, tendo esta sido necessária, a ação policial de preservar a vida, inclusive por meio da utilização de força letal, é muito mais do que um direito, mas um dever do Estado. A vítima, neste rumo, tem o direito de que o Estado cumpra este dever. A lei não faculta à polícia agir ou não, mas obriga-a a agir neste caso. E é nesse sentido que vai incidir o estrito cumprimento do dever legal que, como o próprio nome diz, deve ser estrito, e não extensivo. Não pode a autoridade, em casos assim, passar do limite a seu alvedrio, mas deve utilizar-se sempre dos meios moderados para fazer cumprir estritamente a lei. No caso em comento, a vida, maior dos bens jurídicos, é que está sob risco, sendo obrigatória a intervenção policial. No exemplo em apreço, utilizou-se o negociador e os homens do grupo tático. Tal exposição, não obstante, não se aplica somente ao negociador e tampouco só ao grupo tático, mas a todo o conjunto do teatro de operações, desde o comandante até o policial mais moderno ou de menor grau hierárquico, se pertencente a outro órgão policial que não a polícia militar, que esteja compondo a equipe.

Se é imposição legal que em determinados casos a polícia se utilize de força letal para salvar a vida de reféns, com mais razão deve a polícia, observados determinados parâmetros, incorrer em outros tipos penais ou contravencionais, não por ser direito do órgão, mas porque a lei prioriza a vida como principal bem jurídico tutelado, determinando imperativamente que isso seja feito. Assim, se a lei manda, não havendo outro meio para salvar uma vida de refém, que se retire a vida do agressor – e a vida, diga-se de passagem, é o bem jurídico mais valioso num sistema humanitário –, seria inaceitável falar da inadmissibilidade, por exemplo, do dano, da lesão corporal, da violação de domicílio e, inclusive, de se dar a fuga para assegurar a preservação da vida. Em todos os casos mencionados, expostos de forma exemplificativa (não taxativa), vê-se o perfeito delineamento da proporcionalidade entre o bem jurídico que foi protegido (a vida) o bem jurídico que foi lesado.

Das assertivas mencionadas, não há que se recear em dizer que o objetivo de uma administração de crise sempre será o de aplicar a lei. A aparente violação de uma norma infraconstitucional ou, às vezes, até da supra legal, não significa necessariamente que a atitude foi ilegal. Zaffaroni, neste rumo, ao conceituar de acordo com seu entendimento o crime, afirma que a tipicidade deve ser conglobante (o ordenamento jurídico deve ser visto como uma unidade), de maneira que quando a lei, de qualquer que seja a esfera (civil, administrativa, tributária, ambiental etc.) determina que se faça algo em determinada circunstância especial, não pode o autor do fato ser punido porque o fez, ainda que exista outra normade caráter genérico proibitiva versando sobre o mesmo fato.Por isso mesmo, se a norma impõe que o estrito cumprimento do dever legal deve ser obedecido, refuta-se ineludivelmente argumentos de que, porque incorreu um agente num tipo legal, teria ele praticado crime ou, como preferir, teria ele violado a lei.

3 CONCLUSÃO

Bem verdade que as exposições acerca do gerenciamento de crises aqui traçadas não alteram de maneira alguma a atual prática policial em relação ao complexo problema. Nem pretendeu. Conforme inicialmente se expôs, não se trata de questionar as práticas que se vem adotando já há algum tempo, que têm se apresentado como melhor forma de minimizar riscos em situações tão preocupantes. O raciocínio radica na técnica exegética jurídica por meio da qual deve ser interpretada a questão. Alguns podem dizer que trata-se apenas de uma análise jurídica que não influencia em nada nas questões de natureza pragmática. Tal pensamento, contudo, deságua em lamentável engano, na medida em que não há como dissociar-se a vida humana, em momento algum, de conseqüências jurídicas. Tudo o que se faz ou é um direito, ou uma obrigação, ou gera, de uma forma ou de outra, conseqüências que podem ser expostas, ulteriormente, à intervenção jurisdicional, seja ela penal ou não.

Como o ordenamento jurídico está intrinsecamente jungido a cada uma das pessoas, em cada segundo de suas vidas, o tema gerenciamento de crises não deve ser colocado num pólo e o ordenamento jurídico em outro. Estão juntos e caminham, mais intensamente do que em outras relações, lado a lado. Tudo o que ocorre no curso de um gerenciamento tem conseqüências jurídicas. Daí ser impossível dissociar um do outro. De conseguinte, ainda, esta caminhada paralela deve nortear o órgão policial a que procure compreender o sistema jurídico, galgando sempre, e a cada vez mais, o aperfeiçoamento técnico.

Por tais razões, a adaptação da doutrina de gerenciamento de crises aos conceitos fundamentais da ordem jurídica pátria demonstra aumento no grau de profissionalismo e reputa a polícia como órgão que busca o estabelecimento de doutrinas pela ciência, que decorre da pesquisa, seja ela jurídica ou não. Dizer, na frente de um juiz de direito – e um policial está susceptível disso todo o tempo, mormente no caso de gerenciamento de crise – que prioritariamente deveria salvar vidas e secundariamente aplicar a lei, não ofuscará a capacidade interpretativa do magistrado. É claro que ele entenderia exatamente o que quis dizer o policial. Mas, por outro lado, vislumbraria ele, é certo, a ausência de conhecimento jurídico que, ao menos no caso de gerenciamento de crises, o policial deveria obrigatoriamente ter. E, se essa doutrina é utilizada em boa parte do país, por que não poderia a PMPR, como não raramente o faz, sair na frente?

a letal, e desde que ntico, e isso for feito, culminando na morte dos causadores da crise e desde que seja imprescindomparasdo seu direito de locomoç

REFERÊNCIAS

DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Editora Atlas S. A., 1.991.

JESUS, Damásio. E. de. Direito Penal. 8. ed. V. 1. São Paulo: Editora Saraiva, 1.983.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: Editora Atlas S. A., 1.991.




Autor: Nelson Villa Junior


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