O Torresmo E O Cristal



Dionísia nunca foi de mandar recado, resolvia suas pendengas assim de chofre, na lata do candango que atravessasse o sinal. Dizem que, embora até inteligente e engraçadinha, não arranjava marido porque esse seu jeito meio de homem afugentava os machos do lugar, que viam nela a possibilidade da total desmoralização. Nunquinha encostou o corpo no de outra criatura, e fingia não se importar quando a mãe lhe atirava às ventas o seu destino de mulher seca. Para ela, com os olhos nos maridos das primas, das irmãs, das tias, das amigas e até da própria mãe, antes só que mal acompanhada! Casar por casar, não senhor! Se um dia Deus lhe arranjasse um marido haveria de ser gente de sangue forte, cabra trabalhador, bom fazedor de filhos e companheiro para as horas tristes e alegres. Assim não fosse, seguiria a sina das tias do lugar, a cuidar dos filhos alheios, dos maridos alheios, das casas alheias, dos problemas alheios. Mas o futuro prepara lá as suas lambanças! E justo no mês de maio, quando todas as noivas resolvem subir os sessenta degraus da igrejinha que as separam do paraíso, era também o tempo da festa da padroeira, época própria a visitas e visitantes. As ruas estavam enfeitadas com bandeirolas coloridas e o povo, vindo de todos os lados e lugares, enchia a praça central para ver os fogos que explodiam e pintavam cores na noite. A criançada corria sem parar, o pipoqueiro faturava pelos próximos trinta dias, as mães tagarelavam a um canto e os homens, distraídos com goles de cana, sondavam as casas alheias que passavam perfumadas, atiçando as vontades de pecar:

— Sorte mesmo tem o prefeito, que além do gabinete e do poder sobre a vida dessa gente toda, ao fim do dia, tem em casa a carne fresca e agitada da dona Teresa! - diziam e pensavam os machos de quase todas as idades, que já nem faziam cerimônia na frente das suas mulheres, a quem restava um balançar de ombros ou lágrimas de raiva ou dor, quase sempre escondidas nos travesseiros do dia-a-dia.

De repente, assim sem que se saiba exatamente como, apresentou-se ao grupo um sujeito vistoso, alto, aparentando aí os seus trinta e poucos anos. Vindo não se sabe de onde, tratou logo de examinar em detalhes todas as moças que a vista alcançava. Com os homens travou conversa sobre bois, fazendas, dinheiros, herança e... vontade, ou necessidade, de casar.

— Homem, as moças daqui não são grandes banquetes, não. Melhor você procurar noutra freguesia! - segredou-lhe um dos homens reunidos na praça.

— Mas tenho tempo e dinheiro para escolher bem escolhido. Meu pai exige que eu me case e eu pretendo surpreendê-lo antes da viagem que fará ao exterior. Agora, a escolhida tem que ter predicados à altura do nome da minha família, além de estar intacta, que eu não estou para surpresas, não. Deve saber cozinhar e dirigir os empregados da casa, conhecer o caminho que leve seu maridinho ao céu... e mais algumas coisinhas que uma mulher que se preze precisa saber fazer!

— Melhor dar meia volta, pois a gente daqui é muito simples e não está para esse salamaleque todo. Dá uma espiada só, que vai ver logo a simplicidade dessas meninas. Quer sofisticação? Errou de porta! Nossa gente é torresmo. Nestas paradas, cristal mesmo só a mulher do prefeito, do juiz e as filhas do Cel Fabriciano, todas casadinhas da silva, para o seu governo.

— E aquela lá sentada no banco? Não me parece má coisa, tem até uma certa graça!

Os homens perceberam que o viajante observava Dionísia e desabaram numa interminável risada. Ficaram sem entender que diabos poderia haver naquela mulher que pudesse despertar a atenção desse homem. Resolveram, então, investir na brincadeira. Armaram um jeito de aproximar os dois e deram o empurrãozinho que faltava. Dionísia gostou do jeito sóbrio do rapaz, bem diferente dos brutamontes da cidade. Analisou-o dos pés aos cabelos. Viu-o, é verdade, sem os sonhados olhos azuis e os lisos cabelos loiros dos seus livros de amor. Também não vinha ele montado num cavalo branco! Tinha o nariz adunco, barba cerrada, nem bonito e nem feio, mas, à primeira vista, um homem educado, manso, equilibrado. Dionísia imaginou que os céus estavam em ação! Num piscar de olhos estava de frente para o pai dos seus pobres filhinhos que ainda não puderam nascer, ouviu música e o bater de asas dos anjos que vieram prevenir uma velhice abandonada em algum asilo distante. O visitante, agora sabido Dr. Israel Columbano, nada viu além de um vestido muito simples, cabelos arrumadinhos, perfume discreto e barato, mas achou-a exótica. E considerou extraordinário estar diante de uma mulher intocada. Viu-a distante dos casacos de pele a que estava acostumado, das viagens a Paris, das rodas de amigos sofisticados, dos cristais e talheres de prata de sua casa. Mas para tudo havia dinheiro e o tempo, fiel amigo, a lapidar a pedra bruta. Casaram-se e pronto!

Os filhos não nasceram. Paris continuou distante, as pratas jamais saíram do armário. Dionísia jamais percorreu o caminho que levasse o marido ao céu, nem dominou técnicas próprias da mulher. E o Dr. Israel Columbano passou a beber goles e mais goles e a falar mais alto que os conterrâneos de sua mulher. Os amigos já não o visitavam, sua família optou por reunir-se em ocasiões especiais somente. E durante muitos anos, naquela casa, havia apenas um homem só e cansado daquela mulher meio homem, sem papas na língua, simples ao extremo e sem disposição para aprender coisa alguma. E durante muito tempo havia também uma mulher solitária e cansada daquele homem cheio de frescuras, em certa medida grosseiro, nem tão sóbrio, nada bonito e nadinha manso. E depois de mais um tempo, somente um homem que passava as horas nos braços de mulheres vulgares da rua, e uma mulher a desejar a sina das velhas tias do seu lugar, para cuidar dos filhos alheios, das casas alheias, dos problemas alheios e dormir, quem sabe, nos braços dos maridos alheios. Erraram na escolha!


Autor: Nara Junqueira


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