Crise De Entendimento: Divagações Sobre A Vida



Do mito de Narciso: “em mim eu vejo o outro/ e outro/ e outro” é uma construção poética do fenômeno de identificação imaginária descrito inicialmente por Freud que usou bastante a mitologia, principalmente a grega, para mostrar a sua Teoria do Inconsciente. Mas não pretendo aqui, neste texto, discorrer sobre o conceito psicanalítico de narcisismo como função essencial na formação do Eu. Não me aventuraria a penetrar em campo tão excepcional e profundo.
O que ocorre é que por vezes me vejo tendo crise de ataques de entendimento. A verdade é que o fracasso nos predispõe à reflexão. Mas isso só é bom até certo ponto. Reflexão, como tudo na vida, só faz bem com moderação. Em face disso, me vejo divagando sobre a vida, no meu dia-a-dia: diante do carrinho de supermercado, no elevador e em momentos inusitados que não valeria a pena descrever. E assim, começo a me auto-flagelar: por quê? Por quê? O que eu poderia ter feito de diferente? Foi minha culpa? Onde foi que eu errei? Será que sorri demais? Será que pareci meio louca? Eu deveria ter sido mais fleumática? Quero entender. Preciso entender. Uma necessidade doentia de entender ferve dentro de mim com a intensidade da vontade de voar,dospássaros.

A metáfora não é despropositada. Para quem é, como eu, ávida por compreender o universo,que pensar sobre é como uma droga perversa, viciante.
De repente, é como se não pudéssemos mais viver sem a nossa dose diária de entendimento. Precisamos entender e analisar tudo, pesar tudo, rever o dia todo antes de fechar os olhos pra dormir. A grande tentação a evitar é a auto-análise excessiva; é que ela paralisa, adormece, endurece e mata.
A tentação é grande. Diz um Hamelet dentro de nós: é preciso compreender para evitar cometer os mesmos erros, é preciso compreender para guiar a ação futura. Sem olhar pra trás, não podemos andar pra frente! pela frente.E é aí que retomo Narciso para tentar compreender esse outro que me vê e se projeta nas minhas humildes, porém não inverossímeis colocações sobre o mundo, sobre a vida, sobre a vida das mulheres, dos homens, dos seres expostos ou escondidos que habitam nesse mundo. O mundo cruel das aparências, das “alfinetadas” intencionais, das críticas vazias, da incapacidade de dizer por si aquilo que no outro é alvo de encantamento ou indignação. E de poesia, ficam as frases impregnadas de emoção e lirismo, enquanto o outro que habita (na) e à margem, se mantém lá, impassível, dedo em riste, apontando meus medos, minhas falhas, meus exageros, minhas intransigências.
Isto posto, a tal crise de entendimento pode ser um auspício de compreensão do quanto somos ainda menores daquilo que ousamos pensar ser. E, se para o leitor o texto representa um convite para sua auto-análise, que lhe seja inspirador o poema abaixo:

Poema no chão

"(...)Muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos
abscessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão

mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema

pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima

lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema

palavra suor é melhor do que palavra cravo
que é melhor do que palavra catarro
que é melhor do que palavra bílis
que é melhor do que palavra ferida
que é melhor do que palavra nódulo
que nem chega perto da palavra tumores internos
palavra lágrima é melhor
palavra é melhor
é melhor poema

receita para arrancar poemas presos:

você pode arrancar poemas com pinças
buchas vegetais. óleos medicinais
com as pontas dos dedos. com as unhas
com banhos de imersão
com o pente. com uma agulha
com pomada basilicão
alicate de cutículas
massagens e hidratação

mas não use bisturi nunca
em caso de poemas difíceis use a dança.
a dança é uma forma de amolecer os poemas
endurecidos do corpo.
uma forma de soltá-los
das dobras dos dedos dos pés. das vértebras
dos punhos. das axilas. do quadril

são os poema cóccix. os poema virilha
os poema olho. os poema peito
os poema sexo. os poema cílio

ultimamente ando gostando de pensamento chão
pensamento chão é poema que nasce do pé
é poema de pé no chão
poema de pé no chão é poema de gente normal
gente simples (...)"

Poema do livro Pensamento do Chão, poemas em prosa e verso de Viviane Mose.

Autor: claudia flores


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