A Tortura No Interrogatório Extrajudicial: Até Quando?



A Tortura no Interrogatório Extrajudicial: Até Quando?

Warley Belo
Advogado criminalista
Mestre em Ciências Penais / UFMG
Professor de Direito Penal da Faculdade Promove

“A acusação é apenas um infortúnio, enquanto não verificada pela prova. Daí esse prolóquio sublime, com que a magistratura orna seus brasões, desde que a Justiça Criminal deixou de ser a arte de perder inocentes: Res Sacra Reus. O acusado é uma entidade sagrada”
(Rui Barbosa, Obras Completas, vol, XIX, t. III, p. 113).

O interrogatório surge, historicamente, como meio de prova obrigatória e essencial. Chamada de probatio probatissima, la Regina delle prove, era regida pelo princípio reo tenetur se accusare, caracterizado pela possibilidade de utilização da tortura. O interesse do interrogante era extrair do acusado uma prova tranqüilizadora: a confissão.
Juridicamente, o acusado era um objeto do processo. Arrancado do lar sem explicações, se transformava em esquife de suas aspirações. Saía da masmorra para ser conduzido à presença de um juiz que lhe fazia perguntas vagas sobre fatos que nem sempre conhecia . Era levado a responder ao que sabia e ao que ignorava. Ainda quando dissesse a verdade, não se livrava da acusação de estar mentindo ou haver caído em contradição.
Respondendo firme, era audacioso e petulante; tremendo, delinqüente confesso. À determinada hora só tinha uma preocupação: dizer o que o juiz quisesse ouvir e livrar-se da tortura. Saía da audiência e voltava ao calabouço escuro e sufocante. Retornava para fazer acareação com pessoas que, às vezes, nunca tinha visto e nem se sabia dos depoimentos. Aliás, nem sabia o teor da acusação. Acabava por confessar, não por ser realmente culpado, mas para se ver livre do tormento, ainda que lhe redundasse em pena de morte.
O processo era uma monstruosidade: costumes ferozes, leis desumanas, juízes desalmados, implacáveis, truculentos, fruto de uma mentalidade pervertida. E foram tantos os erros judiciários... O inocente uma vez condenado o era perpetuamente porque a vaidade dos juízes não permitia o reconhecimento do engano. O acusado, inocente ou culpado, era número desvalido ao qual se recusava a condição humana.
Séculos de estudos e experiências foram incapazes de melhorar a situação do suspeito. São nesses entrelaces que se vê a genialidade de Foucault : “O interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada, que obedece a um procedimento bem definido, com momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos chumbos, número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo os diferentes hábitos, cuidadosamente codificado.”
Hoje, os interrogatórios feitos nas delegacias, raras exceções, são a imagem certa do embrutecimento da alma humana, do aviltamento taciturno da busca da verdade real por meios civilizados.
O Judiciário tem sido, de certa forma, omisso na apuração desses casos de tortura para confissão extrajudicial. O Judiciário, muitas vezes, não leva a sério essa denúncia, como se fosse uma coisa secundária, a não demandar apuração. A hipotética obtenção de confissão mediante prática de tortura não pode ser discutida em sede de habeas corpus, que não comporta dilação probatória, sendo considerada, também, matéria estranha ao âmbito do Recurso Especial, a teor da Súmula 07/STJ.
Observe-se: o suspeito é torturado de forma a não deixar vestígios (socos no estômago, sufocamento com saco plástico, “telefone”, ameaças, choque, pauladas na sola dos pés etc.). Se há, todavia, vestígios, o advogado faz requerimento ao Juiz para expedição de guia para apuração das lesões; o médico do IML, que no interior e em algumas Capitais, trabalha senão próximo, dentro do prédio da polícia, faz o exame e o resultado é quase sempre fantástico. E o suspeito ainda sofrerá as agruras pela impertinência da reclamação.
Confessado extrajudicialmente mediante tortura, confessado fica.
O pior é que se confessa extrajudicialmente e retrata judicialmente é condenado por aquela confissão, todavia sem direito a atenuante prevista no art. 65, inc. III, letra "d", do Código Penal...
Nada ruim em um país em que temos decisões da seguinte jaez: “O silêncio do réu, quando interrogado na fase policial, direito constitucional que lhe foi assegurado, é comprometedor, pois o inocente brada desde logo sua inocência e apresenta eventual álibi ou justificativa de seu ato” .
Conseqüência disso são os erros judiciários. Para não alongarmos, cita-se o caso do dono da Escola Infantil em São Paulo acusado de abuso sexual de menino de seis anos. Confesso na polícia, teve seu nome achincalhado na mídia nacional, sua casa e estabelecimento apedrejados, a família despojada de honra, para, ao final, ser considerado inocente...
Também o alarmante Caso dos Irmãos Naves (Sebastião e Joaquim), que passa pelo maior erro judiciário do País. Acusados, em 1937, "confessaram" a autoria do crime de latrocínio. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou-os à pena de 15 anos e 6 meses de reclusão. Eis senão quando reaparece (em 1952), são e salvo, Benedito Pereira Caetano, a pseudovítima .
Entretanto, desde o final de junho de 2005, o artigo 304, CPP, passou a vigorar com nova redação, concessa venia, ainda longe dos ditames luzidios de que gostaria a Carta e a civilização jurídica brasileira. A lei 11.113/05 é incapaz de, em pleno século XXI, extirpar concretamente a confissão extrajudicial como rainha das provas, “peça valiosa na formação do convencimento judicial” .
Não é lei suficiente. Confissões de inocentes continuarão sendo arrancadas “junto com as fibras musculares” .
Ideal mesmo seria extirpar o interrogatório de nossa legislação. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, diante do texto constitucional, confirmou a validade do rito processual criminal adotado pelo Código eleitoral no qual não está previsto o interrogatório do réu. Mais recentemente , aquela Corte reiterou que o réu tem o direito subjetivo de permanecer em silêncio não podendo ser constrangido a responder a quaisquer perguntas que lhes forem formuladas por qualquer autoridade ou agente do Estado.
Urge, ainda, uma verdadeira revolução no interrogatório extrajudicial que consistiria na ciência clara do direito ao silêncio, de que qualquer manifestação que prestar poderá ser usada contra sua pessoa, de que tem direito a um advogado, antes de ser interrogado e durante o interrogatório, que haja a possibilidade da suspensão do interrogatório até a chegada do advogado e oportunidade de comunicar-se com esse, reservadamente, que seja concedido idêntico direito a quem não tenha recursos financeiros e, finalmente, registro estreme de dúvidas de eventual renúncia a esses direitos .
A tortura, como meio de confissão, deve ceder ao brocardo latino “Res Sacra Reus”, sendo preferível, segundo a famosa sentença de Berryer, absolver muitos culpados, a condenar um único inocente.

Autor: Warley Belo


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