Carvoaria



Como começar uma estória? Pergunta que me fiz a vida inteirinha! Daí, percebi que não poderia ficar apenas nas indagações vagas. Deveria laborar, tecer os fios da minha aventura. Aventuras que tomaram forma, dai decidi dividi-las com vocês. Espero do fundo do meu coração que gostem, que leiam, que apresentem críticas, que apontem meus erros, para que eu possa melhorar, pois não me canso de escrever. Às vezes choro, dou boas gargalhadas, divago, crio mentiras verdadeiras e falsas verdades. Brigo, faço amizades, entristeço, alegro, canto, encanto, desencanto, porém não perco essa vontade impar que me faz ser feliz, escrevo.
E foi numa dessas noites inspiradoras, aquelas em que todos os canais de televisão transmitiam simultaneamente a propaganda eleitoral gratuita; que me veio na recordação as teclas do micro, a veia invencioneira de menino falastrão saltavam dentro do meu ser. Foi assim que tudo começou. Entre tantos candidatos de vários partidos políticos, preferi a candidatura que mais me aprazia, calouro das artes literárias. Atrevido que eu me fiz, melhor, me fizeram. A culpa é mesmo da professorinha, que sempre se faz presente nas minhas estórias.
No banco da universidade passeamos pelas obras de vários imortais, que inveja eu sentia. E assim um forte propósito em mim nasceu. Que pretensão! Desculpem! Mas o que vale é a intenção. Ela mesma, a professorinha, mandou que ousássemos sempre. Assumo a culpa, aposto que a mestra e hoje doutora não esperava tamanho atrevimento. Uma coisa é ousar e a outra é ser atrevido. Confesso, não estou arrependido. É por essas e outras que me vingo. Sim, é claro, desnudado de vaidade e forrado de coragem divido com vocês o nascedouro de uma estória. Desvirginando o branco do papel espero que os milhões ou bilhões de espermatozóides tomem forma de letras, que fecunde e torne texto, o rebento ganhe vida. Amém! Nasça saudável uma História.
Nos idos tempos de uma infância feita a galope, o som do estalar de um chicote quebrava o silêncio da preguiçosa brisa. Todo o mundo pertencia aos sonhos de um só personagem. Naquele chão que se firmava, ele era um Deus, ele se sentia um Deus. O chicote assobiava cortando o ar, girava em torno de seu Deus, num arremate final, num golpe de sorte e rápido como a morte inesperada, o estalo do chicote dava fim ao silêncio da pacata e morna tarde de verão.
O menino sonhava acordado. Era querer demais e poder de menos. Mas sonhar é bom, melhor ainda é não sonhar pequeno. O menino dessa história aprendeu a sonhar muito cedo, sonhos juvenis, sonhos de aprendiz, sonhos que sonhados, dormindo ou acordado, lhe fazia feliz. Foi apenas um sonho querer ser ousado, atrevido, talvez!? Não, não creio que o rebento, homem de talento, dono dessa história, nada tivesse na memória para nos contar. E mais um estalo daquele chicote norteando a sorte da preguiçosa brisa que soprava do norte, quebrado o silêncio, passo a aventurar no mato bravo da tagarelice invencioneira dos indos e vindos da imaginação.
Divino era carvoeiro, tinha a função de queimador. Carvão vegetal. A lida era dura. A vida desprovida de fartura, mesmo assim vivia feliz com seus cinco filhos. A mulher, Dona Justina, morena, cintura fina, osso duro de roer. Deixava Divino no mato, vazava para a cidade, vivia de cozer e coser. Divino, negro sadio, fala franca, gentil, educado ao seu modo, não podia ver um engravatado que o chamava “seu doutor”, foram tantas as viagens de Justina que Divino desconfiou. Ficou um dia inteiro assuntando ali calado, mas quem conhecia Divino sabia do recortado, negro de brio, era honrado, não queria ver manchado o nome que tanto honrou. Mas, Justina, negra esperta, debaixo de outras cobertas quantos homens namorou.
Um dia a casa caiu, Divino então descobriu o que a Justina fazia. Foi um drama no povoado, deu polícia, o delegado, trouxe uns homens fardados dirigindo um camburão. Resquício da ditadura, Divino na noite escura procurou outro rincão. Os filhos ali jogados, os cinco, um para cada lado, chorando a morte da mãe. Rápido foi o estalar do chicote anunciando a inesperada morte da cabocla que costurava e cozinhava. Bom, é certo que ela sempre arrumava um jeito de namorar escondido, namorico proibido debaixo do cobertor. Divino, o carvoeiro, sem destino ou paradeiro, também é certo que nunca mais nessas paragens voltou.
Os filhos somam se cinco: José, Maria, João, Joana e Julinho; este o mais pequenino, o que mais Justina gostou. José teve sorte na vida e trabalha na cidade; Maria, casou moça de verdade com um homem trabalhador; João vive as voltas com a justiça; Joana se entregou a prostituição; Julinho, é caboclo bom, mas sente muitas saudades do carinho que a mãe lhe fazia.
Todos cinco tem medo de fumaça, seja ela de qualquer cor: branca ou negra, clara ou escura. Todos eles são vítimas potenciais da semi-vida vivida em uma carvoaria. Julinho, o mais moço, herdou a esperteza da mãe e a firmeza do pai, mescla de amor e traição. É dele o chicote, que estala na tarde morna de verão, ou de qualquer outra estação do ano; tudo para espantar a má sorte, livrar-se das lembranças e afugentar a solidão. O vazio de uma família desfeita como o fogo do forno queimando e transformando a madeira em carvão. Tudo negro como a negra sorte. O carvão na usina transforma-se em um frio e duro metal. Paralelo triste e verdadeiro do que restou de Julinho e sua família.
Autor: Silvio de Oliveira


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