O Sobretudo Vermelho



Da mesa em que me instalei no fundo desse café, nada posso ouvir da conversa travada entre aquele homem de terno escuro, bigode espesso e rosto por demasia redondo, com aquela mulher loira, de modos finos, vestida com um lindo sobretudo vermelho. Vez ou outra, ela empina o nariz e movimenta os braços à moda italiana e eu imagino ouvi-la gritar: "—Canalha! Basta! Foste longe demais!" Ele acende uma cigarrilha, arruma a gravata, olha ao redor e responde: "—Calma, meu bem! Estás nervosa. Com um pouco mais de paciência tudo se arranja!" Na rua as pessoas vão apressadas aos seus afazeres e não se dão conta das circunstâncias dos encontros no interior das cafeterias da cidade. As mães puxam suas crianças pela mão e vão a passos largos deixá-las na porta de escola. Nem bem as entregam e rumam às fábricas, bancos ou lojas comerciais, que empregam a maior parte da mão-de-obra do interior. Umas poucas aproveitam a folga para pequenos reparos nos seus cabeleireiros que as recebem com mimos e um largo sorriso e se dispõem a ouvir as muitas reclamações dos maridos sovinas ou pouco solidários em relação aos trabalhos de casa. Aliás, semelhantes aos padres, esses profissionais deveriam receber uma comenda por serviços prestados à comunidade pelas horas de confessionário e alívio na expiação das culpas que as esposas ainda carregam.

A mulher e o homem se olham demoradamente. Ela sacode a cabeça demonstrando determinação. Acho que suportou tudo que pôde, esperou tudo o que foi possível esperar. Fez concessões demais e agora estaria disposta a dar um basta a tudo o que a oprime. Ele, talvez bem mais adentrado nos anos, tinha ainda outras cartas para fazer a roleta rodar, tinha mais fichas a apostar. Estava mais seguro e provavelmente disposto a continuar no jogo por mais tempo. As mães estão sempre certas quando esperneiam a desvantagem das suas pobres filhas apaixonadas por homens de mais idade e muito acima das suas poucas primaveras. Normalmente, é jogo de cartas marcadas: flores, palavras de amor, bons restaurantes, bombons, levar e buscar na porta da escola, perfumes e cinema... E lá vai a juventude a caminhar de braços dados com a meia idade! Deve ter sido essa capacidade de atacar por todos os flancos que colocou esse cavaleiro em vantagem em relação à jovem que agora o quer despachar. Encarando-a com firmeza ele acende outra cigarrilha e liberta jatos de fumaça que se dispersam em anéis que correm para o teto até encontrar a fresta da janela.

Enquanto os jogadores preparam ataques e defesas, as vidraças entregam à minha retina um grupo de homens que se formou na calçada em frente. O mais ágil e falante lidera os demais, que se juntam em círculo para avançar sobre as folhas que quase se rasgam pela ação de tantos dedos nervosos. Dado o interesse demonstrado, provavelmente, a revista trate de temas relevantes para o gênero masculino. Imagino matérias sobre saúde, o aquecimento global, a ação predadora dos invasores das florestas, os cálculos da previdência etc. Também as suas mulheres passam por aquelas mesmas calçadas em busca de linhas e lã com que enfeitam a família. Também elas se juntam em momentos de descontração e compartilham o fim dos bons costumes e a decadência da moral, as carnes expostas nas missas de domingo nos bancos sagrados da igreja, os erros de português do novo pároco na homilia, a cara de santo do agiota que socorre esbanjadores e cidadãos de vida dupla apertados entre as despesas oficiais e aquelas outras contraídas por pura vontade e gozo. Enfim, um verdadeiro passar a limpo a vida de todos os moradores da cidade.

Enquanto isso, fico aqui, recolhida na minha ignorância auditiva, tendo meus olhos por farol a iluminar o meu conhecimento. Mais uma baforada e os olhos do homem se movimentam acompanhando o sobretudo vermelho que se levanta. Parece que está por vir a cartada final. Ela dirá basta e ele, acuado pela surpresa da ação não esperada, tendo que medir seus atos em público, sentir-se-á obrigado a agir com calma e cautela. Ela tem a chance de, finalmente, encerrar o jogo. Seus olhos brilham enquanto respira calmamente, talvez de posse do sentimento de paz que a liberdade encerra.

A cena final, infelizmente, não terá o público que um "gran finale" merece! Estou eu, nesse canto escuro, o caixa, dois ou três garçons que equilibram bandejas no salão e entregam seus pedidos no balcão, por trás do qual se escondem rostos e mãos que ninguém vê. Estou especialmente feliz e sinto o coração disparar. Vieram-me agora mesmo lembranças de épocas distantes que eu julgava apagadas para sempre da minha memória. Retornou desse tempo a Carmem e seu marido maravilhoso para quem ela arrumava, lavava, passava, cozinhava e economizava até um mísero realzinho. Veio a Graça na sua exuberância de mulher culta, bonita e traída desde a gravidez da sua primeira filha. Veio a Sâmara, quase apedrejada pelos vizinhos que a acusaram de adultério na interminável ausência do marido viajante. E veio a Luísa, infeliz e só, enganada na virgindade de moça velha pelo marido da Conceição. Veio também, assim meio sem querer, a Anna Leocádia, a mãe da minha mãe, viúva, chefe de família e mulher destemida o suficiente para encarar o batente na Rede Ferroviária. Enfim, aquele sobretudo altivo e loiro resgatará mulheres e moças frágeis, para colocá-las na categoria de rainhas e donas do seu próprio destino.

Uma última baforada, um último gole de café, conta na mesa, bolsa elegantemente colocada no ombro direito, o sobretudo sinaliza que se vai retirar, vitorioso, do campo de batalha. Ambos em pé, olhos nos olhos! Vou ver o xeque-mate com todas as minhas armas.

—Bem, senhor Laurindo, foi um grande prazer tratar com o senhor! A casa ficou um primor, o pessoal da sua firma trabalha com empenho. Carlos o recomendará aos nossos amigos, com toda certeza.

—Eu é que agradeço. Na verdade, foi para mim uma grande honra trabalhar para pessoas como a senhora e seu esposo. Que o casal viva feliz por muitos e muitos anos na linda casa que ajudamos a construir. Leve ao Senhor Carlos as minhas recomendações e diga-lhe que o parabenizo pela excelente gerente que ele tem em casa.

Enfim, o sobretudo vermelho se vai e deixa em mim a certeza de que captar circunstâncias dos encontros no interior das cafeterias da cidade é tarefa por demais complexa, não se podendo confiar na ação dos olhos somente, pois que, pela natureza, enganam a mente e assanham antigos fantasmas adormecidos nas caixas da memória.


Autor: Nara Junqueira


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