A Geopolítica da Espionagem
Após a Queda do Muro de Berlim e o fim do bloco socialista o Exército Vermelho se retirou dos países da Europa Oriental e ali foi adotada a economia de mercado. Entretanto, a nova Rússia ainda considerava a região como de sua exclusiva influência. Por isso, com o objetivo de eliminar qualquer ameaça de re-ocupação, e, conseqüentemente, imposição de um novo modelo esquerdista - já que, embora também tenha abolido o regime marxista, a Rússia adotou um capitalismo tímido e vacilante, com um parlamento composto por maioria ora de centro, ora socialista – desde 1999 muitos países do Leste Europeu vêm ingressando na OTAN, razão pela qual uma invasão por eles sofrida seria considerada uma agressão a todos os respectivos membros, inclusive os EUA. Como entre os EUA e a Rússia ainda existia e existe o “equilíbrio do terror” na esfera nuclear, esta última se encontra impedida de, naquela região, novamente impor sua ordem política. Então, o foco da espionagem russa foi desviado para territórios que, geopoliticamente, sempre estiveram sob a hegemonia de Moscou, e que, simultaneamente, não estão blindados com o escudo atômico da OTAN.
Assim, as primeiras ofensivas militares e de inteligência da Rússia após a extinção da URSS ocorreram em meados e no final dos anos 90, e tiveram o objetivo de impedir a secessão da República da Chechênia. Neste caso, a forte repressão se deu porque sob o solo da região passam gasodutos e oleodutos que, desde o Mar Cáspio, transportam os respectivos recursos naturais – gás e petróleo – até o centro da Federação Russa, de onde são vendidos a grande parte da Europa. Portanto, a perda da soberania sobre a área resultaria num irreparável abalo comercial. Apoiando as operações do Exército atuava o Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (FSB), que lida com insurgentes domésticos.
A comunidade internacional, naquela ocasião, condenou duramente as ações russas e os EUA, de início, se declararam favoráveis à independência da região. Compreende-se a posição americana: a repentina constituição de novos Estados, cujas existências tivessem sido incentivadas pelos americanos, faria com que seus governos ficassem alinhados aos interesses dos EUA, especialmente no que se refere às negociações para a aquisição das fontes energéticas ali localizadas. Ao mesmo tempo, haveria o completo enfraquecimento da Rússia, que perderia território e, em conseqüência, parte dos recursos que exporta ao resto da Europa. Tamanhas ameaças fizeram com que os russos acionassem mais energicamente sua agência de espionagem especializada em ameaças externas, o Serviço de Inteligência Estrangeiro (SVR). Naquela ocasião, com certeza o SVR enviou ao Ocidente, em especial aos EUA, um número de agentes superior ao habitualmente utilizado.
Ocorre que essa tendência se inverteu desde o 11 de Setembro: a destruição das Torres Gêmeas por terroristas islâmicos fez com que o inicial apoio dos EUA à independência chechena fosse diluído, vez que grande parte da população de dita República é muçulmana, incluindo muitos dos rebeldes separatistas, que, de forma radical, haviam praticado atentados suicidas contra as tropas russas. Isso, somado ao fato de que a catástrofe em Nova York seria e foi um ótimo pretexto para os EUA invadirem o Iraque sob as falsas alegações de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa e vínculos com a Al-Qaeda, e, assim, se apoderarem das reservas energéticas do país, bem maiores que as da Chechênia, fez com que o Exército Russo tivesse carta branca para esmagar a rebelião de forma ainda mais contundente. Afinal, os EUA queriam o esfacelamento do fundamentalismo religioso islâmico, a que preço fosse e onde quer que se encontrasse, e a estratégica aliança com a Rússia na Guerra ao Terror seria fundamental para negociar o bloqueio de suas exportações bélicas e de fontes energéticas a países que abastecem grupos fundamentalistas. A ajuda não deve ter tardado, e provavelmente houve estreita cooperação entre a CIA e o FSB para a eliminação das lideranças chechenas. Nada disso, porém, evitou que os EUA e a Rússia continuassem, respectivamente, por meio da CIA e do SVR, a disputar a hegemonia sobre as repúblicas caucasianas politicamente independentes e não muçulmanas, como a Geórgia, já que seus territórios também permitem acesso a reservas de gás e petróleo.
Historicamente dominada pela Rússia, a independência formal da Geórgia se deu logo após o colapso da URSS. Desde então, o país vem tentando se aproximar do Ocidente. Como, desde a queda de seu poderio na Europa Oriental, a Rússia não está mais disposta a perder áreas de influência, o meio mais eficaz de mantê-las é o apoio a movimentos separatistas pró-Moscou: foi isso o que aconteceu em 2008, quando a Geórgia atacou forças separatistas da região da Ossétia do Sul. Como o país não é membro da OTAN, e, portanto, não possui vínculo jurídico que obrigue o Ocidente a defendê-lo, os russos reagiram antes de eventual entrada na aliança militar ocidental, invadindo o território georgiano para defender os separatistas e ajudar a proclamar sua independência, não reconhecida exteriormente. Da mesma forma que o FSB age interna e implacavelmente na Chechênia, evitando a cisão do território russo, o SVR atua no Ocidente e nas repúblicas vizinhas a ele simpáticas - especialmente a Geórgia - estimulando violentos movimentos de fragmentação territorial com o objetivo de enfraquecer os governos nacionais e desgastar suas forças armadas, tornando, assim, bem mais fácil uma vitória militar russa, com o conseqüente ganho de território aliado. Como dizia Maquiavel: “dividir para dominar”.
As detenções, portanto, de agentes dos dois lados joga por terra a teoria de que a espionagem entre americanos e russos era um recurso exclusivo da Guerra Fria: o quadro geopolítico mundial mostra que ela é muito mais ampla do que se imagina, e os que foram pegos – principalmente os russos do SVR – eram poucos, muitas vezes jovens demais e com atuações amadoras num universo de muitos outros mais bem preparados e em franca atividade. As explícitas demonstrações de amizade entre nações muitas vezes escondem um perverso jogo de interesses confirmatório do realismo político gaullista: “Estados não têm amigos, apenas interesses”, e a utilização dos respectivos serviços de inteligência, em parceria ou em conflitante antagonismo (sempre dependendo da conveniência política do momento), é a maior de todas as provas. Não por acaso também são chamados “serviços secretos”.
Leôncio de Aguiar Vasconcellos Filho
Autor: Leôncio de Aguiar Vasconcellos Filho
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