Publicidade de Interior
288 - PUBLICIDADE DE INTERIOR
O gordinho levantou os olhos para o relógio do campanário.
Nove da noite. Hora de levantar o acampamento pensou.
Entrou na velha Kombi adaptada e começou a desligar os equipamentos.
Honório - este era o nome dele - era um dos poucossobreviventes do tsunami da informática.
Antigamente, centenas deles andavam pelo Brasil adentro,armados com toscos equipamentos de som. Tinham microfones e também discos para qualquer ocasião:
Eram artistas da sobrevivência; equilibristas, dançando numa corda bamba rumo a um futuro incerto.
A informática acabou com todos eles ou quase todos.
Hoje todo o mundo tem informações, diversão, educação, disponíveis a qualquer hora, em casa.
Honório viajava de uma cidade a outra, seguindo uma rota que o conduzia de volta a São Paulo, ao cabo de dois ou três meses.
Era, a seu modo, um Bandeirante.
Percorria uma "entrada" parecida com as deles; só que de Kombi e sem ter que abrir picadas no mato.
Chegando a qualquer cidade, ia logo visitar o Pároco.
- Bênção, Monsenhor iniciava ele estou de passagem por esta bela Cidade e soube que a fama de seus sermões espalha-se pela região. Como tenho um carro de som, peço que me autorize a transmitir ao povo um sermão apenas um, o melhor que tiver ....
O Padre ficava logo interessado e envaidecido
- Onde? indagava
- Aqui mesmo, na Praça da Matriz, é claro!
- Bom! E quando?
- Depende de vossa Senhoria. Amanhã ou depois, se posso sugerir. Mas é a Senhoria Vossa que decide e manda . Eu só cumpro!
- E como é feita a transmissão?
- Gravamos com a sua voz, corrigindo todos os erros na hora, antes de transmitir.
- E quanto dura?
- Entre cinco e sete minutos; Vossa senhoria sabe que o povo não quer perder tempo atrás de sermões. Mas se for curto e bem feito, garanto que todos o escutarão.
- E quanto custa?
- Nada, Eminência, nadinha. Porque vou transmitir logo depois umas mensagens comerciais, e elas pagam a despesa.
Normalmente, mesmo desconfiando, o pároco aceitava a oferta, já pensando no sermão que escolheria.
O segundo passo, era com o prefeito.
- Ilustre bacharel! começava ele estou de passagem por aqui e gostaria de explicar ao seu povo tudo o que a Prefeitura, sob o seu alto comando, vem realizando em beneficio da comunidade. Pode ser um discurso, com a sua voz, ou um comunicado, que vamos redigir junto e que lerei de uma forma profissional..
- E quanto custa?
- Nada, excelência nadinha! Os anúncios comerciais que vou fazer depois, pagam a despesa. Só preciso de um cabo elétrico desde o poste mais próximo e pronto.
Em geral, o Prefeito concordava e já começava a remoer o que diria no discurso. .
O terceiro passo era o Delegado.
- Bom dia, Doutor! atacava ele de pronto gostaria de receber sua autorização para transmitir umas mensagens, por alto falante, na praça da matriz. Já falei com o Pároco e com o Prefeito, mas sem a permissão da Polícia, nada posso fazer: "A Força está com o Senhor, Doutor!"
- O que eu ganho com isso? era a pergunta mais ouvida nessa hora.
- Doutor, é para o bem do povo; o bem espiritual e físico. Se quiser, colocamos no ar uma informação sobre os relevantes serviços que a Delegacia presta à população, sob a orientação da sua ilustre pessoa, Acho justo, até...
Claro que o Delegado autorizava com entusiasmo.
Não era por orgulho, nem por falta de humildade. Tratava-se apenas de uma saudável vaidade.
A vaidade é sempre mostrada como um vício,um grande pecado capital, associada a outros, que são muito piores:a vaidade não tem nada a ver com ódio, orgulho, gula,ira,inveja, luxuria... erro crasso, lamentável. .
Ela é apenas um defeito secundário.
Faz parte da nossa natureza; é uma segunda pele; perdida a vaidade, sentimo-nos nus.
É graças à vaidade, que a humanidade tem hoje grandes monumentos, que atestam sua história: as pirâmides,palácios,castelos, museus, parques e jardins enormes....
Mas esteé outro assunto, que fica para outra vez. .
Honório, conseguidas as três aprovações por escrito, ia de loja em loja, arrecadando um dinheirinho aqui, outro acolá, para os anúncios.
- Os três poderes, Igreja, Estado e Polícia dizia ele -estão patrocinando
palestras educativas para a população. Posso incluir no programa uma
mensagem de sua loja, se quiser.Seu concorrente, na rua de baixo, já
concordou ....
Claro que todos os comerciantes com um pouco de bom senso, aceitavam.
Honório juntava os papeizinhos e preparava o programa.
Das seis às nove da noite, tocava músicas e as entremeava com propaganda e naturalmente, com o sermão do Padre e as declarações do Prefeito e do Delegado.
Anunciava ferramentas, sementes, produtos da lavoura, e no meio, dava conselhos e receitas, como se estivesse conversando com as pessoas.
As musiquinhas alegres davam um tom de festa.
As pessoas paravam,escutavam, alegravam-se, ensaiavam até uns passos de dança.
A vida de Honório transcorria assim tranquilamente, com a novidade de uma cidade por semana, o que eliminava qualquer monotonia.
Mas naquele dia, em especial, o destino tinha decidido mudar o rumo dos acontecimentos.
Havia na Cidade uma moça, de nome Ofélia; bonita, simpática, prestativa, dona de um sorriso único.
Era único, não porque não se repetisse; mas porque era inimitável: só Ofélia sabia sorrir assim. Era cativante, fascinante, irresistível.
A rapaziada andava louca pela Ofélia, mas ela passava sem dar a menor atenção.
Não por orgulho; mas porque era uma moça sériae não queria envolvimentos.
O fato é que entre outros pretendentes, havia um, mais decidido e com mais iniciativa.
Chamava-se Albino e já tinha recebido alguns "contras" bem desanimadores.
Mas não aceitava a derrota. Estava decidido: Ofélia era a sua garotae havia de ser a sua esposa e a mãe de seus filhos.
Albino simplesmente contratou o gordinho e juntos fizeram um anúncio direto, falado com inspiração e sentimento pelo próprio Albino e impossível de ignorar.
- Ofélia! dizia eu estou louco por você! Por favor, me dê uma chance, deixe-me mostrar-lhe como a amo, como a quero; prometo-lhe que vou ficar com você pela vida inteira e deixa-la feliz!
E assim continuava, pedindo emprestadasas estrelas e a lua, para enfeitar as suas docespalavras.
Os dois ainda corrigiram algumas expressões e afinal, na segunda noite, depois do sermão etcétera etcétera, soltaram a bomba.
O nome da garota ricocheteou da praça às ruas próximas, delas voltou e pareceu ficar refletindo-se, repetindo-se, a transmitir toda a paixão que continha, através de um eco poderoso.
A cidade inteira o escutou, e o apelo provocou reações diversas e inesperadas.
Ofélia foi colhida de surpresa, ficou nervosa, agitada, à beira da histeria.
Assim ficaram também as amigas, mas um pouco por inveja.
Assim, infelizmente, ficou o pai, que era ninguém menos que o próprio prefeito.
O homem apareceu esbaforido na delegacia:
- Delegado, eu exijo uma providência imediata: casse o maluco, leve-o preso, dê-lhe uma surra, atire nele, expulse-o já da cidade, proíba-o de voltar; mas faça alguma coisa, já,pelo amor de Deus! A minha menina está sendo atacada por um tarado!
O delegado foi curto e grosso.
- Eu dei a autorização policial. E ele está com o alvará da Prefeitura. Enquanto o alvará não vencer e ele se comportar direito, não vou mexer uma palha. Se o rapaz ultrapassar os limites, eu mesmo ponho-o no xadrez.
Mas por enquanto, não vejo motivo para isso.
O Prefeito retrucou com veemência e a briga entre os dois, iniciada a palavras, resvalou em palavrões e empurrões; faltou pouco para que as duas "autoridades" metessem a mão uma na cara da outra.
Nesta hora justamente, chegou o pároco.
Separou os dois, com palavras sábias e calmas.
Fez com que sentassem no escritório da delegacia e finalmente conseguiu que os ânimos se acalmassem.
Mas o Pároco também não era isento de envolvimentos e não poderia julgar direito.
O Albino era o seu sobrinho querido.
Enquanto isso. o Albino percebia que tinha aberto, sem querer,a temporada de caça.
Todos estavam tomando partido e haveria em breve algum confronto.
Partidários da moça juntavam-se e os ânimos acirravam-se.
Eu não sei porque as pessoas fazem tanta questão de pôr o nariz nos assuntos dos outros.
Seria tão bom, se cada umlesse sua própria cartilha e fizesse suas lições!...
Temos todos tantas obrigações que, se quisermos cumpri-las direito, não nos sobra tempo para mais nada.
Mas as pessoas são assim: preferem deixar queimar o feijão em casa, enquanto espiam o que ferve na panela do vizinho....
Logo, em poucas horas -entre sete e onze da noite o rastilho estavapegando fogo.
Albino apareceu ofegante na porta da Kombi; a coisa estava feia. os outros pretendentes,, os pais da Ofélia, alguns amigos dela, queriam justiça.
Clamavam contra a falta de vergonha de se declarar publicamente, de expor sentimentos na rua; era uma coisa inadmissível.
O gordinho não teve dúvidas. nem desligou o cabode energia que prendia o carro ao poste .
Empurrou o Albino para dentro da Kombi e saiu cantando pneus.
Impunha-se uma retirada estratégica; enfrentar os exaltados seria um ato temerário, inútil e perigoso.
O carro atravessou a praça, deu uma guinada a esquerda, arrastando a longa ponta do cabo, e seguiu rumo à saída da cidade.
Estava quase alcançando a alça da estrada, quando surgiu à sua frente Ofélia; assustada, despenteada, vestindo uma longa camisola branca. Faltou pouco para ser atropelada. O gordinho abriu a porta antes de a Kombi parar e ela pulou para dentro. Ninguém disse uma única palavra.
Os três estavam com a adrenalina a mil; os três sentiam-se igualmente ameaçados e tinham que sair de lá depressa, sem olhar para trás.
São Paulo ficava a duzentos quilômetros; tinham que voar antes que os outros se organizassem,saindo em seuencalço.
Na Capital seria mais fácil achar um esconderijo.
Aos poucos, o gordinho ia percebendo a gravidade da situação em que tinha caído: o rapaz tinha dezesseis anos; a moca, quinze.
- O que estou fazendo aqui, com estes dois? perguntava-se repetidamente o Gordinho rapto e sequestro seriam apenas o começo de uma longa lista de crimes.
Mas, do jeito que as coisas estavam,o motor da Kombi seria a única salvação.
Mais tarde pensaria melhor, procuraria ajuda de conhecidos.
Concentrou-se na direção, não dispensando mais um único pensamento à sua situação.
Chegando em casa, explicou rapidamente o caso à esposa; ela arrumou umas roupas para a moça , preparou alguns sanduíches e sugeriu um bom esconderijo. Cem metros adiante, na casa de uma irmã solteira.
Albino porém tinha que enfrentar o diabo e pega-lo pelos chifres: tinha que voltar à cidadezinha deles e mostrar que não estava escondendo a garota.
Assim fizeram. Por pura sorte, ninguémtinha visto Ofélia tomar a Kombi.
Ela desaparecera,
[R1]Foi para todos uma noite difícil.
A foto de menina passava de mão em mão e no fim havia quase mil pessoas à sua procura.
Ao amanhecer, vindo de carona, Albino chegava à Cidade, com cara de santo, mas como coração aos pinotes.
Tudo estava calmo. Os mais afoitos tinham-se cansado da novidade e estavam na cama.
Albino foi direto para a delegacia e pediu para ser trancafiado.
Teve que esperar a chegada do Delegado, que concordou com ele.
Estaria mais seguro assim.
À tarde , houve uma reunião de todos os interessados.
O Prefeito estava satisfeito com a "prisão" do Albino - sua reputação de homem durão, de pai responsável, estava salva.
Mas estava preocupadíssimo com o sumiço da Ofélia.
O delegado tinha mandadoao Serviço de Pessoas desaparecidasum aviso, pedindo uma busca impossível pela cidade; além de tudo, a foto anexada não fazia justiça à beleza da moça.
Mas todos sabiam que só haveria investigação a partir de 48 horas do desaparecimento.
As circunstâncias faziam imaginar que a moça, assustada pela reação explosiva do pai,estaria escondida na casa de alguma amiga.
Logo reapareceria, com certeza.
A parte pior, sem dúvida era a do Albino.
Preso, cansado, desesperado, não sabia o que fazer, a quem recorrer.
Não tinha idéia do que aconteceria com ele e não sabia onde pôr a cara, quando o levaram para a acareação.
Por sorte, o Pároco sorriu-lhe levemente quando entrou na sala.
O Prefeito tomou a dianteira e começou a brigar com o menino, com a voz alterada e os gestos ameaçadores.
O Pároco objetou; não havia como montar um processo formal.
Afinal, tratava-se de duas crianças...
- Duas crianças? reagiu o Prefeito - Nada disso; Dois seres irresponsáveis, que puseram uma cidade em polvorosa. Afinal o que pensam que o amor pode fazer? Subverter o mundo?
- É isso mesmo! gritou de volta o Pároco. -Subverter o mundo!.
A coisa esquentou de uma vez.
- Só quem ama profundamente pode subverter o mundo e só Deus sabe quanto precisamos dessa subversão !
Duas senhoras presentes aprovaram.
- O que este menino fez? Declarou seu amor. Publicamente. Sem receios. Venceu sua timidez, juntou seus magros recursos, passou por cima de todos os obstáculos; e está disposto a levar às últimas consequências este seu sentimento. Ninguém deve se opor. Ninguém tem o direito de atrapalhar este amor ....
- O senhor está completamente confuso, senhor Pároco: está justificando atos de insubmissão e de desrespeito...
- A quem?
- À ordem constituída, à moral, à Santa Igreja à....
- Pare de falar asneiras, Prefeito. Pense um pouco no mal que fez à sua filha na noite passada, ameaçando-a e maltratando-a ...
Foram duas horas de gritara e discussão. Mas no fim fez-se a luz. E Albino venceu sua importante guerrinha particular.
Até os jornais da Capital se interessaram pelo caso.
A opinião pública começou a se movimentar e a simpatia por Albino e Ofélia aumentou.
Quinze dias depois, em seu novo uniforme de mensageiro dos Correios, ele estava entregando cartas e contas; e às 16:30, pontualmente, estava na Rodoviária, esperando pela "sua" Ofélia, a futura mãe dos seus filhos.
O gordinho guardou-se de aparecer na cidade, pro um bom tempo.
Apareceu uma noite dirigindo um carro emprestado, só para entregar um presentinho de casamento: era um pequeno gravador de fita, que ao ser ligado começou a cacarejar:
- Ofélia! Eu estou louco por você! Por favor, me dê uma chance, deixe-me mostrar-lhe como a amo, como a quero; prometo-lhe que vou ficar com você pela vida inteira e deixa-la feliz!
O Gordinho fez um sinal para a moça e segredou-lhe:
- Guarde bem esta fita. Ele nunca vai poder dizer que foi você que o fisgou... Foi ele mesmo que se jogou na frigideira! ...
[R1]
Autor: Romano Dazzi
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