REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO, UNIVERSIDADE PRÁ QUEM?
Três alternativas têm se colocado do que se refere à Reforma do Estado Brasileiro e a privatização do ensino superior: a da privatização, a da estatização e da autogestão. Há uma quarta via: a desestatização sem privatização.
Cardozo, Jeorge Luiz*.
A discussão sobre a Reforma do Estado Brasileiro no que se refere ao ensino superior realizada atualmente no Brasil tem passado por dois equívocos igualmente problemáticos. O primeiro, a "direita neoliberal esquizofrênica", da por estabelecido que a participação do Estado na economia, particularmente no ensino superior, é coisa do passado, superada pelas tendências mais recentes do capitalismo em sua fase de reestruturação; o segundo, "a esquerda estática" considera que a participação do Estado faz-se ainda necessário, especialmente naqueles setores considerados estratégicos, nos quais a adoção de uma lógica estreitamente privada não seria de modo nenhum aconselhável. No primeiro, fica claro o preconceito de que tudo o que for estatal passou a ser intriscamente ruim; no segundo, assume-se que o estatal é a forma de propriedade mais confiável e talvez mais eficiente nas atividades mais decisivas (estratégicas) para o desenvolvimento social.
Uma boa maneira de recolocar os termos desta discussão é começar pela identificação de dois fenômenos característicos do capitalismo contemporâneo: O primeiro referente ao fato de que o processo de desaparecimento de investimentos em instituições públicas, o clássico processo de lucratividade e mercantilização por parte do capital previsto por Marx, tende a ser compensado pelo aparecimento de novos ramos de universidades, o que implica a proliferação de grande número de novas instituições de ensino superior, pelo menos nas fases iniciais de desenvolvimento destes mesmos ramos de atividade. O segundo, provavelmente muito mais importante, relaciona-se ao fato que a dinâmica da privatização do ensino superior tem implicado um crescente declínio na qualidade de tais cursos. Assim, cada vez mais, a dinâmica de expansão das IES consiste no desenvolvimento de cursos técnicos atrativos para as corporações monopolistas.
O resultado de ambos os fenômenos, isto é, a crescente qualificação do trabalho ao lado da expansão das IES é uma regulação cada vez mais complexa das trocas, construindo um cenário em que a substituição da lei da qualidade pela lei da quantidade vai se tornando virtualmente realidade. Neste sentido, a crescente mercantilização da educação organizada em grandes, médias e pequenas IES simplesmente se verificou. Mais do que isso, em virtude da mercantilização, em grandes, médias e pequenas IES, um sistema amplamente estatizado tende a ser basicamente ineficiente, seja porque as diversas funções especializadas por tais empresas acabam sendo embutidas em todo conhecimento, provocando "lacunas" de ociosidade, seja porque tais funções especializadas (por exemplo, aquelas ligadas ao progresso técnico) acabam simplesmente coibindo o senso crítico, provocando, entre outras conseqüências, crescente conhecimento tecnológico em detrimento de conhecimento crítico cidadão. Não é por outra razão (pelo menos no campo do conhecimento) que a tentativa de construir o socialismo a partir de uma ampla estatização da educação redundou em fracasso (exceto em Cuba), como mostra a trajetória do Leste Europeu.
De qualquer modo, sabemos desde que a Reforma do Estado Brasileiro no que refere-se a educação superior tem que ser necessariamente privadas, para preservar a eficiência do sistema capitalista, cabendo ao Estado uma atuação indicativa e indutora. O grande problema a ser resolvido pelos adeptos da educação superior pública é o saber o que fazer com o processo privatizante, vale dizer, as grandes corporações monopolistas por trás deste processo.
Chegamos ao cerne mesmo da questão. O sistema capitalista é dinâmico a partir deste núcleo central de grandes instituições que, no entanto, só existe porque flutua num oceano de pequenas e médias IES, numa relação de complementaridade e dependência. São as grandes corporações que controlam o sistema de ensino superior privado; por isso ele é cada vez mais injusto, mas também e isto é inegável cada vez mais dinâmico. Infere-se daí que a preservação do núcleo de expansão das IES construído ao longo da década de 90 é condição necessária para qualquer projeto de sociedade futura.
Num país periférico como o Brasil tudo isso fica muito evidente. De fato, a viabilidade do crescimento de investimentos em universidades (leia-se: a constituição de operação do indispensável núcleo de grandes universidades) dependeu, desde sempre, do Estado. Esta a origem, mais que conhecida, do nosso setor estatal de ensino que, bem ou mal, garantiu por quase meio século o ensino superior. Quando na década de 90, o Estado parou de investir, as universidades estatais estagnaram. Não há simplesmente como operar universidades públicas sem investimentos. Em torno desta questão, qual seja no que fazer com as IES, é possível vislumbrar quatro alternativas:
A primeira é a do chamado projeto Neoliberal. Consiste simplesmente em transferência para o capital privado a propriedade e o controle das IES, inclusive das estatais. Duas objeções podem ser levantadas contra esta privatização: sua insuficiência, do ponto de vista da qualidade, e sua perversidade, do ponto de vista social. De fato, a mais elementar observação dos investimentos centrais (cursos técnicos superiores), mostra que o capital privado é insuficiente para a tarefa de bancar a expansão, no curto prazo de uma verdadeira educação crítica cidadã. A participação do Estado no investimento estratégico das IES continua sendo mais que uma necessidade para as IES públicas sobreviver> A privatização pura e simples das IES, nos moldes neoliberais, significa, no nosso caso, condenar o país à estagnação eterna no que concerne a uma educação técnica e mercadológica. Mas a esta flagrante insuficiência de investimentos públicos nas IES, se junta a evidencia de uma perversidade maior. È que, constituída como propriedade privada, este núcleo torna-se foco gerador de desigualdade social em escala ampliada e fonte de um poder político que desequilibra o jogo democrático em qualquer sociedade. O poder das grandes IES privadas, a extraodinária concentração de riqueza que elas propiciam: eis o oposto exato de educação que queremos.
Outra alternativa, que em geral aparece como contrapartida automática à privatização neoliberal, é a manutenção deste núcleo sob a égide do Estado. Tem sido comum ouvir (e mesmo dentro das IES públicas) o argumento de que na educação só o Estado pode tocar, pois, educação não pode ser lucrativa, pois precisa cumprir uma função social. Cria-se desta forma uma confusão entre o estatal e o social. Estes não são conceitos equivalentes e nunca o foram. Não se tornam equivalentes dependendo de quem ocupa o aparelho de Estado: a história do socialismo real mostra isso melhor do que qualquer argumento teórico. O que queremos dizer é que os nossos estadistas no afã de combater o neoliberalismo privatizante (se é que o fazem) incorrem em erro tão antigo quanto trágico: o de atribuir ao Estado a condição de alter ego da sociedade, e supor que a propriedade estatal (desde que "bem conduzida", "saneada" ou o que seja) é sinônimo de propriedade social (pública).
É duro dizê-lo, mas a ineficiência histórica das IES pública contribui largamente para o fenômeno definido pela expressão "privatização do Estado". Pois é escudado atrás do suposto "papel social" das IES estatais que o grande capital privado tem engordado e beneficiado financiamento subsidiado por parte do Estado. IES estatal é pública, logo, sua finalidade precípua não é lucro.
Uma outra posição que, por sua história progressa na teoria das IES, merece ser mencionada,é a que preconiza a autogestão nas IES públicas, quanto a isto não é preciso ir muito longe para constatar que, conquanto a autogestão tenha um caráter muito mais democrático do que a propriedade privada ou sua alternativa estatal, seria de todo inconveniente aplicá-la ao núcleo básico da economia. Organizado como oligopólio e/ou monopólio, este núcleo, submetido à autogestão, produziria terríveis distorções sociais. Evidentemente, a autogestão só é aceitável em regime de concorrência. Não sendo assim, ela se transforma numa espécie de "privatização corporativa", incompatível com o projeto social.
Há que se buscar uma quarta via, que supere a dicotomia "Mercado + Estado" ou "Propriedade Privada + Propriedade Estatal". Esta via consiste em estabelecer o controle social direto sobre o núcleo dinâmico das IES. Desestatizando-as sem torná-las privadas. A par disso, a via escolhida deve contemplar a solução do problema que se popularizou com o nome de "dívida social", qual seja a situação quase falimentar dos fundos direcionados as IES públicas. Com isto estaria assegurado o controle público (mas não estatal) sobre este núcleo. Isto é fundamental, do ponto de vista macroeconômico, para manter o poder de alavancagem, que as IES públicas precisam para ser crítica cidadã. É absolutamente temerário jogar a propriedade e a gestão destas IES para o "livre jogo das forças do mercado". Isto, além de perder a qualidade e enfraquecê-las enquanto entidade social. Já que passaria a operar descoordenadamente, inviabiliza também qualquer possibilidade de pagamento da chamada "divida social da educação". Esta, como é óbvia, só pode ser paga (dado seu grau e sua urgência) com o ensino estatal de qualidade, que pelo momento está sendo criminosamente doada a iniciativa privada, no bojo do processo de Reforma do Estado Brasileiro engendrado por FHC e pelo caminhar, continuado por LULA.
Enfim, acreditamos que enfrentar a maré neoliberal privatizante exige mais do que apego a velhos chavões ideológicos sobre o papel do Estado, que hoje não encontram qualquer ressonância social (e daí a aparente popularidade da privatização). É preciso ousar mais. A idéia de uma nova forma de IES, que não é estatal, mas também não se enquadra na clássica visão de propriedade privada; a idéia de que propriedade social (pública) pode ser assegurada fora do território estatal e de que toda sociedade pode controlar diretamente o coração do sistema, mantendo a sua lógica no que nos interessa (a cidadania e a qualidade), mas intervindo no campo social (desconcentrando radicalmente o conhecimento); idéia, enfim, de que a socialização das IES é possível e viável este é o eixo de que esperamos.
O presente artigo foi motivado da discussão acadêmica sobre a Reforma do Estado Brasileiro, engendrada no governo Fernando Henrique e continuada de maneira tímida e camuflada no governo do presidente LULA, reforma esta, que tem nos levados a refletir sobre o papel social das IES e a criminalidade social trazida no bojo destas reformas, período este, de transição de um estado de bem estar social, para um estado liberalizante que, naquele momento, parecia para os maus informados, como um momento único de conquistas consumistas e de novos tempos.
Portanto, cabe a nova esquerda aglutinadas nos partidos P, SOL, PSTU, PCB e PCO, unificar um projeto de governo centrado não só na critica a este modelo, mas também, com propostas claras e viáveis para discutir de frente com a sociedade brasileira e, acima de tudo, tirar proveito político eleitoral da situação de mercantilização da educação imposta pelo modelo neoliberal imposto às claras por FHC, e continuado camufladamente por LULA e seus aliados.
Como análise final, é preciso saudar as lideranças dos partidos citados acima, em particular ao P.SOL, PSTU, PCB e ao militantes dos mesmos, pela justeza de convocar e realizar este debate de rebalizamento da reforma universitária engendrada no atual momento. A educação teve sempre como sua maior virtude sua relação estreita com o sentimento de mudanças, acolhendo em seu interior a diversidade de caudais libertadores presentes no solo nacional. Se neste momento não compreendêssemos a necessidade de superar nossos limites intelectuais deixaríamos de poder dialogar com as classes populares e a partir delas com toda sociedade em condições de apresentar o ponto de vista revolucionário cidadão no compasso do inicio do novo milênio. Da justeza de nossas conclusões dependerá em grande parte do destino das Universidades públicas no Brasil.
E: mail: [email protected] - *Jeorge Luiz Cardozo Professor, Graduado em Filosofia (UCSAL/2000), Especialista em Educação (UNEB/2003), Aluno Especial do Mestrado em Políticas Públicas (UNEB).
Autor: Jeorge Luiz Cardozo
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