O Espelho (conto)



O Espelho (conto)

 

Ele sempre esteve lá, a observar atentamente cada gesto, cada movimento, cada palavra e sentimento que se passava no interior do casarão. Quando veio ver a casa, ele foi a primeira coisa que ela reparou. Marilene ficou horas encantada por ele...

 

Compraram a fazenda e o casarão, de porteiras fechadas, ou seja, com todo o seu conteúdo. Tudo por ali era muito antigo e muito bonito, tendo pertencido ao barão.

 

Na sua primeira noite no novo lar, o encantamento do espelho se fez sentir por toda parte. Um raio de luz, entrando pela janela descerrada era refletido em toda a casa pelo cristal. Hermes dormia, e ela, sentada na cama, não tirava os olhos do espelho... Admirava a beleza do cristal chanfrado, trabalhado em leques nos quatro cantos do espelho e, mais do que tudo, as instigantes figuras que compunham a fauna presente na moldura de mogno dourado, toda cheia de entalhes.

 

Ela estava enfeitiçada pelo espelho, pelo charme discreto das ninfas e faunos que corriam nus a volta dele, a finura do trabalho em prata do par de candelabros presos nas laterais da moldura.

 

Não pensava em nada, só olhava e se deleitava ao olhar. O encanto era tão intenso, que ela nem estranhou ao ver aparecer, envolta em névoa, uma bela sinhazinha, como que refletida no espelho.

 

- Vem... Vem comigo...

 

A aparição assim repetia enquanto estendia as mãos, que se projetaram para fora do espelho.

 

- Tu não vens? Terei eu de ir onde estás...

 

A figura, ainda envolta em névoa, rodou sua saia ampla, armada por crinolina, e se colocou a caminho do local onde estava Marilene.

 

Eis que a Lua começou a se esconder atrás das nuvens e, à medida que ela ia sumindo, a imagem da linda moça ia gradualmente sendo substituída pela imagem podre de um cadáver! Seu lindo vestido de brocado, cheio de buquezinhos de flores coloridas, tornava-se trapos fétidos, onde aros enferrujados do que já havia sido uma crinolina se balançavam tristemente... O lindo rosto tornou-se uma caveira medonha, semi-recoberta de carne decomposta e coroada de cabelos louros e encacheados, em desalinho...

 

A horrenda aparição soltou então um grito de dor e pulou para dentro do espelho. A Lua desapareceu por completo e Marilene deitou-se, dormindo tranqüila todo o resto da noite.

 

No dia seguinte, contou a Hermes seu estranho sonho, e como ficara imóvel, e sem pensar em absolutamente nada todo o tempo.

 

- Mari... Estive pensando. E se nós mudássemos o espelho de lugar?

 

- Mudar?! Mas por quê? Além do mais, ele é tão grande que ambos ficaríamos com a coluna arrebentada!

 

- É que ele está bem na frente da porta que comunica este quarto com o quarto ao lado.

 

- Bobagem! Quem quer um quarto cheio de portas? Este era um vício do século XIX! Esta porta não faz falta nenhuma.

 

- Mas e se tivéssemos um bebê, e ele chorasse durante a noite? Esta porta seria útil!

 

- Pensaremos nisto se tivermos um bebê, quando tivermos um bebê... Mas, já que está tão curioso, vá ao outro quarto e abra a porta que está atrás do espelho!

 

Pouco depois.

 

- Mari! Venha cá... Corra!

 

- O que foi Hermes?

 

- Saint Gobain, 1693... Este espelho tem 300 anos! E não é só isso: os espelhos Saint Gobain foram os primeiros a ser produzidos em série na Europa! Eram chamados espelhos mágicos... Como será que veio parar aqui?

 

- Hermes! Nem parece que já visitamos tantos Museus... Lembra do Solar do Barão? Os barões do café iam com freqüência à Europa, e enchiam as casas com tudo de melhor que encontravam...

 

- Vamos vender o espelho!

 

- Você está louco? Nunquinha!

 

Naquela noite de Lua cheia as cantigas das antigas mucamas enchiam a senzala deserta; havia a reminiscência de velhos batuques no terreiro e perfumes europeus das damas no salão de baile...

 

A luz da Lua, cheia de poesia, vida e ouro, penetrava pela mesma fresta da janela, desta vez por entre os reposteiros de veludo, semi-cerrados. Foi então que o espelho se anuviou... Um doce perfume de alfazema tomou conta do quarto, acordando Hermes que dormia.

 

- Tu que tens o nome do deus das passagens, venha comigo! Disse a sinhazinha lhe estendendo a mão enluvada.

Enquanto ela projetava sua mão para fora do espelho, todo o quarto foi tomado por um nevoeiro azulado, que cheirava a essências francesas. O cheiro antigo fez com que Hermes se lembrasse de sua avó e esta lembrança lhe deu segurança. O quarto foi todo iluminado em azul e ouro.

 

Hermes penetra no espelho, caminhando fascinado pela deslumbrante aparição.

 

Do outro lado do espelho, está no mesmo quarto, 130 anos atrás: um paraíso de veludos e cetins. A mesma cama, muito grande, toda entalhada, cheia de anjos... os lençóis de cetim e, sobre eles, um peignoir rebordado com plumas de avestruz, repousa ao lado de um leque negro.

 

Ele quer falar e não pode... Já não é mais dono da sua vontade. Só existe ela, e mais nada! Tudo gira ao seu redor... Ele desabotoa seu vestido... Eles se deitam...

 

- Bom dia amor! Dormiu bem?

 

- Dormi sim, Mari! E você?

 

Durante uma semana o estranho ritual se repetiu... A sinhazinha, a qual até agora ainda não tinha nome, apareceu em cada uma das noites com o mesmo vestido de brocado, o mesmo arranjo de flores de tecido, filó e plumas nos cabelos, as mesmas jóias... E, em cada uma das aparições, acabou sendo despida. Ninguém comentou nada, ou achou nada anormal. Não havia diálogos entre os amantes, a não ser o diálogo entre dois corpos.

 

Na oitava noite, do outro lado do espelho, Hermes viu o céu tornar-se escuro, desaparecendo a lua por completo... A suave fragrância deu lugar ao odor fétido da morte, as cortinas tornaram-se trapos mofentos, a cama encheu-se de ratos, baratas e vermes asquerosos... A sinhazinha tornou-se um amontoado de carne decomposta e ossos!

 

Ele solta um grito de horror... Libertou-se do encanto.

 

- Hermes, andei lendo sobre esta casa. Havia uns jornais velhos, guardados aqui e ali.

 

- O que descobriu?

 

- Li nas colunas de fofocas sobre a viagem do barão e da baronesa e a compra deste Saint-Gobain! Gastaram muito, mas houve dividendos, patrimônio social...

 

- Estranho... Havia tão poucos jornais na época...

 

- Não é um jornal brasileiro não... É de Paris! Fala das excentricidades da aristocracia dos trópicos, quando em visita à Europa... Veja só Le Baron ... Perdão... O barão de ... por exemplo, visitou todos os antiquários de nossa capital, não se contentando até encontrar, por acaso em um velho hotel, um espelho Saint-Gobain.  Como se declarasse fascinado pelo espelho, o barão não hesitou em pagar por ele dez mil francos, quantia deveras altíssima, mesmo para um Saint-Gobain. E o artigo continua, relatando as demais excentricidades, como perfumes, roupas e demais...

 

- E o que é esta figura?

 

- É a propaganda de uma crinolina: uma armação para saias. Tem este nome porque as primeiras eram feitas prendendo crinas de cavalos trançadas numa anágua. Depois, a Peugeot as industrializou.

 

- Parece uma gaiola!

 

- Pois é...

 

- Já vi estes aros em algum lugar... Talvez algum filme.

 

- Com certeza! Foram usadas por tanto tempo que são adereços obrigatórios em filmes de época...Lembra de E o vento levou?

 

- Claro! Vivien Leigh!

 

À noite,  pela primeira vez, Hermes confabulou com sua estranha amante:

 

- Sinto como se sempre a conhecesse... Há algo especial entre nós. Quem é você?

 

- Não fui acostumada a ser tratada por você, parece fala de gente sem instrução... Mas, o teu tempo é diferente do meu e, certamente de onde tu vens não é ofensivo. Sobre tuas outras perguntas, tu podes ler em meus olhos, em meu sorriso e em teu coração!

 

- Eu te amo! É tudo o que posso ler em todos os nossos sentidos...

 

- Sim, tu me amas... Tu amas Ana Augusta de Queiroz Aranha, a filha do barão e da baronesa. Por enquanto há algo mais que queiras ou precises saber, além de quem sou eu, e do fato de que me amas e és retribuído?

 

Ele então sorriu para ela, e pronunciou devagar, com prazer o seu nome, Ana Augusta...

 

Após este breve diálogo, ela se levantou do tamborete de toucador, onde estivera sentada arrumando o cabelo enquanto conversavam, pegou-o por ambas as mãos e disse:

 

- Vamos ao salão. Todos nos aguardam.

 

Ouvia-se ao fundo a valsa Vozes da Primavera, tocada por uma pequena orquestra e, totalmente inebriado por Ana Augusta, deslumbrante em seu modelo de brocado, Hermes não se lembrou de se virar para o espelho. Se o tivesse feito, teria visto, como se fora nele refletido, Marilene que ainda dormia. Ele era agora um ser sem memória.

 

O baile transcorreu animado. Hermes e Ana Augusta valsaram a noite toda, até que, em sendo requisitado para ir ao piano, para poder tocar, a memória lhe voltou... Um frêmito percorreu todo o seu corpo e ele só pensou em fugir!

 

Correu desesperado para o quarto, e tentou atravessar o espelho para voltar. Não conseguiu...Contemplou Marilene dormindo do outro lado...

 

Pegou uma grande caixa de jóias e iria arremessá-la ao espelho... Quando ergueu a caixa e ia jogá-la foi contido por Ana Augusta;

 

- Não! Tu  morrerias!

 

- O que está dizendo?

 

- Tu ficarias preso aqui para sempre! Como nós! E isto vos mataria.

 

- Como? Explique-me... Explique-me tudo!

 

- Bem... Tu já sabes que este é um Saint-Gobain... Um espelho mágico, como eram chamados. Eles não tinham este nome à toa...

 

- Eu sei. Os espelhos mágicos eram lapidados com extrema maestria e, pela primeira vez, as pessoas podiam observar a própria imagem com nitidez, por isso os chamaram mágicos.

 

- Vai para além deste fato. Tu já reparaste nas lapidações centrais?

 

- Não, apenas nas que existem nos cantos: quatro leques. Mas sei que estes espelhos tinham lavradas ao centro finas figuras, que são refletidas se aproximamos um papel durante o dia. Geralmente flores, vasos...

 

Ela então soltou uma sonora gargalhada;

 

- Vaso de flores! É vaso de flores que o deus das passagens pensa que este espelho reflete? Tu sabes por que a imagem lapidada com tanto cuidado, para ser imperceptível, é refletida com tanta facilidade?

 

- Uma liga especial, a qual os modernos espelheiros perderam a receita, e que era usada ao invés do estanho...

 

-Vossa Mercê até sabe mais do que eu supunha... Mas... Vamos lá. Pegues meu peignoir, que é de seda pura, e o estendas na frente do espelho, que este refletirá as suas figuras. O que vossa mercê enxerga?

 

- Estranhos sinais... Arcos e pontas... Um heptágono. Símbolos de magia!

 

- Sim. Meu desditoso pai jamais soube avaliar a extensão da sua compra... O que foi que ele acabou trazendo para casa.

 

- Ana Augusta... Estou cada vez mais curioso e você não está me elucidando em nada.

 

- Existe a Marilene. Tu a amas? Digas-me antes de eu prosseguir.

 

- É difícil avaliar estando aqui... Olhando para você...

 

- É que aqui não estás em um outro lugar. É um outro tempo! Ela ainda nem nasceu!

 

- Então é real?

 

- Real como?

 

- Estamos mesmo no século dezenove?

 

- Você ainda tem dúvidas? Olhe pela janela: é 20 de maio de 1864... Meu aniversário!

 

Hermes se aproximou da janela e viu um grupo de negros, fortes e belos, jogando capoeira ao redor da fogueira; não muito longe, várias negras, vestidas como baianas giravam ao som dos atabaques.

 

- Eles estão comemorando o meu aniversário!

 

- Como? Quero dizer...

 

- É difícil de entender... Muito difícil!

 

- Tente, ao menos tente me explicar, o que aconteceu naquela noite, quando você se transformou em...

 

- Por favor! É doloroso...

 

- Não te amo menos por causa do que houve...

 

- Bem, para se ir daqui onde estamos, até 1993 é um longo caminho no tempo. Entendas: é necessária a luz da lua aqui e lá... Mais do que isto: é necessário que a pessoa realmente queira viajar! Entendes agora porque tu não conseguiste passar à pouco?

 

- Sim! A minha curiosidade, a vontade de lhe perguntar, de querer saber era maior do que a vontade de voltar. Mas...

 

- Bem, aquela noite... Sabias que Marilene também viu-me naquela triste condição?

 

- E por que de nada nos lembrávamos logo a seguir?

 

- Porque mais de cem anos é tempo suficiente para fazer-te esquecer... Quando tu puderes compreender porque se esqueciam, aí tu mesmo serás capaz de concluíres o que ocorreu.

 

- Explique-me, por favor...

 

- Como dizer-te? A passagem não é imediata e nem instantânea, na realidade é como um longo corredor. Por isso o espelho está em frente a uma porta: o longo espaço de tempo requer um espaço físico igualmente grande... para trás e para a frente... Se a Lua se esconde por algum motivo e ainda se está neste corredor , nem aqui e nem lá, então se fica reduzido à forma que se teria na época subseqüente, contando à partir de 1864. O referencial, para cada um, é o local e o tempo de partida. Se tu fores pego na metade do caminho, estarás no limbo, na não existência. Entendes? Tu não haverias nascido ainda...

 

- É tão complicado!

 

- Deveras... Mas é essencialmente simples: conheces os elevadores? Vi alguns em Paris, mecanismos hidráulicos, semelhantes a gaiolas... Levavam as pessoas de um andar a outro, sem a necessidade das escadas.

 

- Elevador! São comuns em minha época.

 

- Então irás entender perfeitamente: o espelho é como aquela gaiola, que leva as pessoas de um andar a outro, mas precisa de um espaço, dentro do prédio, para estar encaixado. No nosso caso, são os dois quartos contíguos. Precisa também do mecanismo hidráulico...

 

- Na minha época são elétricos...

 

- Não sei o que é isso, mas deve também haver algum mecanismo que o impulsione, para baixo ou para cima...

 

- Sim, há. São motores.

 

- No nosso caso, este mecanismo é a luz da Lua, no ângulo certo. Ela põe o processo em movimento, ao revelar as inscrições que ele carrega, incógnitas sob o cristal. Imagines agora que, por algum motivo, a gaiola pare entre dois andares...

 

- Acho que estou começando a entender...

 

- O passageiro ficaria como efetivamente estava quando o elevador parou... A dama que penteasse os cabelos, calculando estar com os mesmos afeitados quando chegasse ao seu destino, os teria ainda desalinhados...No meio do trajeto não se está nem no local de partida e nem no local de chegada.

 

- Agora entendo mais algumas coisas também... Não nos lembramos porque de fato você não chegou a estar lá. Apenas a caminho!

 

- Sim! Entendas: a fronteira do contato visual é muito mais tênue daquela que prende nossos corpos físicos. Tu certamente já terás ouvido falar de videntes e de adivinhos...

 

- Médiuns... São chamados assim em minha época.

 

- Interessante... Vem do latim, sinônimo de meio, mas também de mediador. É o sentido exato que eu procurava. Eles entram em contato com outras dimensões, mas não chegam nem mesmo a tocá-las...  Minha baba, por exemplo, entra em contato com os seus orixás, e muitas coisas nos revela através deles.

 

- Ela é adepta do candomblé?

 

- Penso que seja católica, devota de Nossa Senhora do Carmo, a quem ela cultua com a denominação de Oxum. Apenas que ela conservou os conhecimentos trazidos da África pelos seus ancestrais. Ela sabia, com antecedência, tudo o que nos aconteceria...

 

- O eterno embate entre a ciência e a fé...

 

- A ciência da época em que este espelho foi feito pouco se diferenciava da magia ou da religião, estava tudo muito imbricado... Na realidade, até há bem pouco tempo, a teologia abarcava as ciências naturais, como deves saber. Estes cientistas, talvez alquimistas, meio bruxos, meio magos, conceberam então este espelho, uma espécie de máquina do tempo.

 

- Fantástico! Há ainda duas perguntas. Por que você disse que eu morreria se quebrasse o espelho? Por que é sempre o mesmo dia, o dia do seu aniversário?

 

- Pode ser até que eu assim tenha dito. Na realidade o que eu quis dizer é que se tu ficares aqui contra tua vontade, se não desejares do fundo do teu coração ficar... Sabes o que é banzo?

 

- A doença dos escravos, morriam de nostalgia, de desespero, por não mais poderem voltar à África.

 

- Sim. Então tu me entendes. Em outra ocasião vos contarei sobre meu aniversário. A Lua está para se esconder. Penses em Marilene e vás!

 

- Lembrarei de tudo o que conversamos, estando lá?

 

- Apenas uma fugaz lembrança fugidia... Um sonho bonito. Assim te parecerás.

 

- Mas, não! Eu não quero esquecer. Quero vê-la novamente!

 

- Não temas... Posso ver-te do outro lado do espelho e irei chamar-te. Agora vás... Disse ela beijando-lhe a fronte.

 

Aquele dia transcorreu singularmente bem. Hermes e Marilene estiveram na casa de um casal amigo, Pedro e Cláudia, mataram as saudades. Na volta ao lar, porém, Marilene manifestou um estranho desejo:

 

- Amor... Você se lembra quando você falou de mudar o espelho de lugar?

 

- Besteira minha! Esquece!

 

- Pode ser, mas... Estive pensando... Quero este espelho fora do nosso quarto! Não si por que, mas me sinto invadida, observada...

 

- Você está sendo irracional... Por quê? Ainda outro dia você fez a apologia do espelho fica!

 

- Há algo com este espelho...

 

- Claro que há... É um espelho muito raro e muito caro!

 

- Amor...

 

- Não senhora! Nem com amor nem sem amor... Agora sou eu quem falo: o espelho fica!

 

Durante a noite:

 

- Ana... Ainda há algo que não me respondeu...

 

- E quem é que sabe todas as coisas?

 

- Por favor...

 

- Em meio a tantas dúvidas, tu não tens nem mesmo uma pequenina certeza?

 

- Sim! Eu tenho! Eu te amo e quero do fundo do meu coração, ficar aqui com você. Você é a liberdade, a tarde amena, o passeio ao luar... Você é o ar puro, o frescor do campo... Você é a verdadeira libertação, não as falsas, que nos prendem e nos esmagam! Queria poder me casar com você... Ter filhos com você vê-los crescer e ver netos... Envelhecer com você até ficar um velho bem caduquinho, igual a um maracujá de gaveta. Deus é testemunha do quanto estou sendo sincero.

 

Neste mesmo instante, em meio à névoa e ao cheiro de incenso, aparece a figura de um padre no centro do espelho:

 

- Adjutorium nostrum in Nomini Domini, qui fecit caelum et terram... Libertas est Ana Augusta de Queiroz Aranha!

 

Neste mesmo instante, sem que a imagem do sacerdote tivesse desaparecido do espelho, este explodiu em mil cacos e a sua moldura desapareceu, feita cinzas. Um suave cheiro de incenso tomou conta de toda a casa. Pela primeira vez, Hermes pôde escutar os batuques e os cantos que estavam acontecendo lá fora, no terreiro...

 

- O que houve Ana? Você está ainda mais bonita! Mais corada!

 

- É que agora, finalmente, eu sou livre! Agora estou viva de novo, viva! Agora, meu amor, finalmente tu podes saber de tudo, de tudo...

 

- Conte-me então.

 

- Tu não estranhaste que o espelho fosse feito exatamente em 1693? Trezentos anos exatos antes da época da qual tu vieste?

 

- Achei que fosse coincidência.

 

- Não existem coincidências! Aquele padre que tu viste agora a pouco era meu irmão mais velho, Jorge Luís. Foi ele quem decifrou os símbolos cabalísticos do espelho e compreendeu a terrível mensagem que o cristal encerrava. Isto lhe custou a vida. Sua alma ficou presa no corredor do tempo, como guardião do espelho, desde então. Tu o libertaste. E libertaste-me também!

 

- Mas ainda falta saber tanto...

- Vamos com calma... Como tu sabes já, estivemos em Paris em 1855. Eu era menina ainda. Compramos este espelho e duas crinolinas...

 

- Peignoirs, perfumes...

 

- Sim! Muitas futilidades tolas. Meu irmão mais velho estava em Roma, estudando para ser padre. No dia de meu aniversário, nove anos depois, já vivendo no Brasil, ele teve a nefasta idéia de decifrar os símbolos cabalísticos, por mais que a nossa baba (a mucama que nos criou) o advertisse para não mexer com isso... Os tais símbolos eram um conjuro, um feitiço, feito em 1693 junto com o espelho. Uma vez recitado o conjuro, este só poderia ser quebrado quando o espelho tivesse completado 300 anos. O espelho matou meu irmão, por querer mostrar sua erudição de latinista, e aprisionou a alma de todos nós nesta casa.

 

- Impressionante!

 

- Entediante isto sim... Ninguém entendeu porque, de um momento para outro, a casa ficou vazia... Não encontraram corpos, não havia acontecido nenhum crime... Os primos de minha mãe herdaram a fazenda, a vida para eles seguiu o seu curso normal e nós, para todo o sempre, todas as noites, comemorando os meus dezenove anos!

 

- Os segredos do espelho...

 

- Sim, tudo o que te contei e, principalmente, o fator vontade... Na realidade, foi muito mais a tua vontade do que a minha que comandou o espelho! Tu e tua esposa vieram para esta fazenda sonhando com o passado, o romantismo e o frescor de uma outra época. Tu me procuraste, me projetaste... É como, se de fato, tu já me conheceste: eu sempre estive em teus mais inconfessos sonhos, em tuas fantasias.

 

- Você sabe tanto... Mas e seu irmão?

 

- Inicialmente terei de educá-lo a falar melhor... Mas, penses tolinho! Já deverias ter matado a charada... O tempo é como uma estrada, com seus desvios e encruzilhadas, as suas bifurcações... Mexendo em uma única peça, entrando-se no entroncamento errado, muda-se o todo! Chega-se a lugar diverso. Jogas xadrez?

 

- Sim... Mas não vejo como isso vem ao caso...

 

- Imagines por um só instante que eu e tu jogamos xadrez e o jogo está por um fio... Os dois reis estão no tabuleiro e eu tenho uma torre.

 

- Teoricamente você ganha.

 

- Não! O jogo vai se prolongando, prolongando, até a hora fatal. Há anos que tudo está por um fio, como na partida de xadrez. E se aparecer uma nova peça, para qualquer um dos jogadores?

 

- A partida pode ser vencida!

 

- Foi o que ocorreu. Acabou o jogo entre o real e o reflexo, o passado e o presente. Este lado do espelho encerrou a partida! Você foi a peça que fez a diferença! Só poderia mesmo se chamar Hermes!

- E quanto ao seu irmão?

 

- Mudou-se algo no futuro... Alguém veio do outro lado do espelho, logo, só Deus sabe o que acontecerá, para manter o equilíbrio. Se bem que, minha intuição feminina... Bem. Vamos para a festa! Desta vez ela irá terminar, iremos todos dormir e amanhã será 21 de maio de 1864!

 

- Querida... (Disse Hermes com olhar cabisbaixo)... Como irei me casar com você se já sou casado?

 

- És mesmo? Quando tu te casaste?

 

Puseram-se ambos a gargalhar e foram de mãos dadas para o salão de baile.

 

Marilene acorda, de um sono mais que profundo. Estivera agitada toda a noite, como em meio a pesadelos. Olha ao redor, está só no quarto imenso, envolto em penumbra... Observa aquela porta boba, que liga seu quarto com o contíguo... Algum dia esta porta precisa ser fechada!

 

Neste momento, eis que entra Jorge Luís, com um largo e apaixonado sorriso. Tem uma bandeja, com café da manhã completo nas mãos, à qual não falta nem mesmo um buquê de flores.

 

- Bom dia meu amor! Dormiu bem querida?

 

- O melhor dos maridos! E pensar que sua mãe fala que você queria ser padre! Imagine só...

 

 

 


Autor: Luiz Carlos Cappellano


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