Fibrilação Atrial Assintomática



A fibrilação atrial é uma taquiarritmia supraventricular que se caracteriza pela ausência da contração atrial e pela frequência cardíaca elevada. Além disso, devido à irregularidade da atividade elétrica atrial, a resposta ventricular também se torna muito irregular. Tanto a frequência cardíaca rápida quanto a irreguaridade dos cilcos cardíacos, podem ser as principais causas de sintomas nos pacientes acometidos. Há entretanto, um percentual de cerca de 22 a 25% dos pacientes que evoluem sem qualquer sintoma. O principal problema decorrente desta condição é o retardo no diagnóstico da arritmiae a prevenção de suas complicações, tais como o trombolembolismo sistêmcio e a insuficiência cardíaca. Neste artigo serão discutidos aspectos clínicos relevantes da fibrilação atrial assintomática.

O sintomas na fibrilação atrial surgem em decorrência da frequência cardíaca elevada, da irregularidade da resposta ventricular e, também pela ausência da contração atrial. Este último efeito diminui o débito cardíaco em 20 a 30%, sendo responsável pelas queixas de fadiga e intolerância aos esforços físicos. O aumento da frequência cardíaca ao esforço parece ser uma forma de compensação da falta de contração atrial. Comparando-se grupos de indivíduos sem cardiopatias, a diminuição da tolerância ao esforço é maior naqueles com fibrilação atrial em relação àqueles em ritmo sinusal, sugerindo que a diminuição da capacidade física está relacionada ao déficit hemodinâmico provocado pela arritmia.

A irregularidade da resposta ventricular caracteriza-se pela alternância entre ciclos longos e curtos. O tempo de diástole encurtado diminui o esvaziamento atrial, causando aumento da pressão capilar pulmonar que se acompanha de queixas como a dispnéia e a ortopnéia. A variação do esvaziamento ventricular produz palpitações quando, após pausas longas e grande enchimento ventricular, aumenta o volume de sangue ejetado, sendo percebido como sensação de socos no peito e no pescoço. A frequência ventricular elevada pode desencadear sintomas em pacientes com estenose valvar mitral, principalmente quando a arritmia é de instalação aguda. A diminuição do esvaziamento atrial piora a hipertensão pulmonar, podendo, não raramente, acompanhar-se de edema agudo de pulmão.

Um dos objetivos da terapêutica farmacológica da fibrilação atrial é a redução dos sintomas visando melhorar a qualidade de vida. Aliás, vários estudos têm demonstrado que a redução da frequência ventricularbem como da regularização dos batimentos cardíacos, após a indução de bloqueio atrioventricular e implante de marcapasso definitivo, não só reduz os sintomas como também melhora muito o desempenho ao esforço físico e a qualidade de vida. Até mesmo em crises agudas, a redução da frequência ventricular com fármacos diminui significativamente os sintomas, aumenta a sensação de bem estar e traz mais segurança ao paciente.

A maneira pela qual se comprova a eficácia do tratamento farmacológico em pacientes com fibrilação atrial é a redução das recorrências. Tal redução é avaliada de maneira mais simples pela abolição dos sintomas, ou então, por meio da documentação eletrocardiográfica com monitorizações de longa duração, da permanência do ritmo sinusal. Vários estudos, entretanto, têm demonstrado que episódios intermitentes de fibrilação atrial podem ocorrer sem qualquer manifestação clínica, sem nenhuma sintomatologia associada. Num estudo prospectivo envolvendo 22 pacientes com história de fibrilação atrial paroxística, Page e cols. demonstraram com a utilização da monitorização transtelefônica, que os episódios de fibrilação atrial assintomáticos são 12 vezes mais freqüentes do que aqueles que se acompanham de sintomas (Page RL et al. Circulation 1994; 89:224). Roche e cols. utilizaram um sistema de monitorização automático para avaliar os episódios de fibrilação atrial em pacientes com história de palpitações, cuja documentação eletrocardiográfica não foi possível pelo Holter de 24 horas (Roche F et al. PACE 2002; 25:1587). Estes autores observaram que os episódios assintomáticos de fibrilação atrial são muito mais freqüentes do que aqueles que cursam com sintomas, além de apresentarem uma duração significativamente mais longa (10 horas e 4 horas respectivamente). Estudos clínicos realizados com pacientes portadores de marcapasso definitivo do tipo dupla câmara, que permite a realização de avaliações periódicas do ritmo cardíaco, demonstram que a presença de taquiarritmias supraventriculares assintomáticas ocorre em 29% dos pacientes em até 28 dias após o implante do gerador (Defaye P, et al. PACE 1998; 21(part II):250). No registro canadence de fibrilação atrial, a incidência da forma assintomática foi de 21% (14 de 674 pacientes). Na literatura, há relatos de que cerca de 27% dos pacientes com fibrilação atrial idiopática são assintomáticos durante as crises (Kerr C, et ao. Eur HeartJ 1996; 17(Suppl C):48).

Riscos da Fibrilação Atrial Assintomática

Uma grande preocupação com o surgimento de fibrilação atrial que cursa sem qualquer sintoma é o risco de embolia cerebral em pacientes de alto risco. Quadros agudos de acidente vascular cerebral podem ser a primeira manifestação da fibrilação assintomática. Um estudo de Framingham demonstrou que entre os pacientes com diagnóstico de acidente vascular cerebral secundária à fibrilação atrial, o diagnóstico desta arritmia foi feito pela primeira vez em 24% dos pacientes acometidos. É possivel, na verdade, que em muitos daqueles casos a arritmia não fosse assintomática mas, de algum modo, a mesma não tinha importância suficiente para induzir o paciente a procurar um médico para se tratar. Estes fatos indicam que em muitas ocasiões a detecção da arritmia é feita em condições desfavoráveis, quando uma lesão cerebral já tenha se instalado.

Outro aspecto relevante relacionado à ausência de sintomas é o desenvolvimento do remodelamento atrial. Por serem assintomáticos, muitos indivíduos com fibrilação atrial não recebem tratamento. Episódios intermitentes de durações variáveis podem provocar modificações da matriz histológica e eletrofisiológica dos átrios, facilitando o surgimento de condições apropriadas à manutenção da forma crônica da arritmia. Essas alterações são essenciais para permitir a sua perpetuação.O correspondente clínico deste fenômeno é a condição na qual crises de fibrilação atrial, quando freqüentes, tendem a ser cada vez mais prolongados, o que por sua vez são um um fator importante para determinar a sua cronificação. Esses achados foram confirmados em outros estudos experimentais e também em estudos clínicos de pacientes submetidos à estimulação atrial rápida em laboratório de eletrofisiologia.

O conceito do remodelamento se reveste da maior importância, principalmente no que se refere a prevenção da forma crônica da fibrilação atrial. O tratamento preventivo de recorrências pode ser de grande impacto clínico, particularmente em pacientes idosos, condição na qual a arritmia tem maior incidência. Se a presença de sintomas for a única forma de se comprovar a presença da arritmia ou até mesmo a eficácia terapêutica, é possível que um grande número de pacientes poderá estar sendo tratado incorretamente. Por esta razão, avaliações clínicas freqüentes são necessárias para se comprovar os benefícios da terapêutica farmacológica.

Episódios freqüentes, mesmo assintomáticos de fibrilação atrial podem provocar alterações do metabolismo muscular dos ventrículos e desencadear quadros de taquicardiomiopatia, ou seja, disfunção ventricular secundária à taquicardia. Na dependência da duração dos episódios e do tempo de evolução dos mesmos, a intervenção precoce reduzindo a frequência das crises pode tornar o quadro miopático reversível, inclusive com restabelecimento da função ventricular normal.

Fibrilação Atrial Assintomática e a Ação dos Fármacos Antiarrítmicos

Estudos clínicos envolvendo utilização de fármacos para o tratamento da fibrilação atrial, demonstram que os próprios medicamentos quando não previnem as recorrências, reduzem a sintomatologia. Esse fato se deve à redução da frequência ventricular ou também à regularização dos batimentos ventriculares. A digoxina, embora não seja um fármaco antiarrítmico eficaz no tratamento da fibrilação atrial (principalmenteno que diz respeito à prevenção de recorrências), diminui ou abole os sintomas mesmo quando a arritmia ainda persiste, provavelmente pelo controle da frequência cardíaca. O mesmo fato pode ser observado em pacientes que fazem uso de beta-bloqueadores. Wolk e colaboradores, utilizando o Holter de 24 horas em pacientes portadores de fibrilação atrial paroxística e tratados com propranolol e propafenona, observaram que a fibrilação atrial assintomática esteve ainda presente em 22% dos pacientes que receberam propranolol e em 27% dos pacientes que receberam propafenona (Wolk R et al. It J Cardiol 1996; 54:207). Vale salientar que o propranolol, exceto nos casos de fibrilação atrial de origem simpática que ocorre em indivíduos com coração normal, não é um antiarrítmico eficaz na prevenção de recorrências dadas as suas propriedades eletrofarmacológicas entretanto, pode reduzir os sintomas devido a redução da frequência cardíaca. Já a propafenona parece ser um agente antiarrítmico eficaz, provocando a estabilização do circuito arritmogênico atrial e deste modo reduzindo as recorrências da arritmia. Entretando, nos pacientes que fazem uso deste medicamento, as recorrências podem ser assintomáticas devido à redução da frequência ventricular por causa de suas propriedades beta-bloqueadora discreta e antagonista de cálcio sobre a junção atrioventricular. A amiodarona, um dos fármacos mais empregados no tratamento da fibrilação atrial, tem efeitos benéficos na redução de recorrências mas, quando estas ocorrem tendem a se manifestar com frequência ventricular melhor controlada. A redução da frequência cardíaca permite melhor esvaziamento atrial, com redução da pressão pulmonar e maior débito sistólico por batimento.

Alguns estudos que compararam a eficácia da quinidina e do sotalol na prevenção de recorrências de fibrilação atrial, demonstram que ambos apresentam resultados semelhantes no que se refere à frequência de crises, entretanto, os pacientes que têm recorrência com o sotalol são menos sintomáticos do que aqueles que utilizam quinidina devido à menor frequência ventricular nos primeiros. O sotalol provoca retardo da condução pelo nódulo atrioventricular e deste modo reduz de maneira intensa a frequência cardíaca. Já a quinidina, devido às suas propriedades parasimpaticolíticas, facilita a condução nodal favorecendo a aceleração da frequência cardíaca (Jull-Moller et al. Circulation 1990; 82: 1932).

Um outro estudo, que avaliou a eficácia do azimilide no tratamento de pacientes com fibrilação atrial, utilizou a transmissão transtelefônica do eletrocardiograma a cada duas semanas para avaliar o estado do ritmo cardíaco.O objetivo básico do estudo era avaliar o tempo para aparecer a primeira recorrência após iniciado o tratamento. O estudo foi do tipo duplo-cego controlado por placebo. A presença de fibrilação atrial assintomática foi detectada em 17% dos pacientes de ambos os grupos em seis meses de evolução, sendo que houve uma tendência de menor incidência no grupo que recebeu azimilide (13%) em relação aos pacientes que receberam o placebo (18%). Comprovou-se também que o azimilide reduziu em 40% a incidência de fibrilação atrial assintomática (Page RL. et al.Circulation 2003; 107:1141).

Fibrilação Atrial Após Ablação de Veias Pulmonares

Ainda parece não haver consenso quanto a melhor forma de se avaliar o sucesso do tratamento ablativo da fibrilação atrial e , em muitos estudos, a ausência de sintomas é um dos fatores que mais se leva em consideração. Além deste critério clínico, a realização de Holter de 24 horas e de monitorização transtelefônica são outras técnicas freqüentemente empregadas. Baseado nestes aspectos um estudo demonstrou que os resultados da ablação de veias pulmonares variava de acordo com a técnica de investigação utilizada. Num período seis meses de evolução os autores demonstraram o sucesso do procedimento era de 70%. quando o critério de avaliação era a presença de sintomas, Entretanto, quando se utilizava a monitorização eletrocardiográfica pelo Holter com duração de uma semana, tal sucesso caía para 50% e para 45% quando se empregava a monitorização transtelefônica. Os autores observaram ainda que a presença de fibrilação atrial assintomática saltou de 11% antes da ablação para 53% após a mesma (Piorkowski C et al. J Cardiovasc Electrophysil 2005; 16:1286). Em outro estudo o surgimento de fibrilação atrial assintomática detectada ao Holter de uma semanafoi de 37% num período de seguimento de seis meses, e este fato foi observado numa população que era altamente sintomática antes do procedimento (Hindrics G et al. Circulation 2005; 112:307). Estas observações indicam que a fibrilação atrial assintomática é um fator da mais alta importância devido aos riscos que acarreta, pois não raramente os anticoagulantes são suspensos, expondo os pacientes ao risco de tromboembolismo sistêmico.

Conclusões

A fibrilação atrial manifesta-se freqüëntemente na clínica, de forma assintomática. Estudos com monitorização eletrocardiográfica de 24 horas, transtelefônica ou até mesmo informações obtidas de marcapassos com função de telemetria ou de desfibriladores atriais indicam que essa forma de apresentação é mais comum do que se imaginava. As consequências podem estar relacionadas aos efeitos da arritmia sobre o remodelamento elétrico e histológico dos átrios, aos danos a função ventricular e principalmente ao maior risco de tromboembolismo periférico. Além disso, a falta de sintomas retarda o diagnóstico da arritmia e por conta disso, a conduta terapêutica.

Não se pode afirmar ainda que o tratamento desta população reduz o risco de complicações futuras ou pode trazer qualquer impacto sobre a qualidade de vida. Os riscos relacionados com a fibrilação atrial assintomática devem ser similares ao dos pacientes com a forma sintomática. Embora a fibrilação atrial assintomática mereça consideração quanto à anticoagulação e o controle da frequência ventricular, os efeitos do tratamento antiarrítmico sobre essa condição clínica ainda não foi estabelecido. O mesmo pode ser considerado quanto a decisão de se reverter ou não arritmia ao ritmo sinusal, devendo a conduta ser estabelecida caso a caso. Se o Holter de 24 horas ou outra forma de monitorização cardíaca deve ser empregado em pacientes de alto risco para fibrilação atrial, tal como ocorre em valvulopatas mitrais, em pacientes hipertensos ou naqueles com miocardiopatia dilatada, para se detectar episódios assintomáticos da arritmia, ainda não foi estabelecido mas parece ser uma forma interessante de diagnosticar precocemente um distúrbio de ritmo cuja incidência é elevada e que apresenta grande morbidade quando se instala.


Autor: Dalmo Antonio Ribeiro Moreira


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