Admite-se Recurso Especial sob o Fundamento de Violação a Princípio Constitucional?



As competências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, delineadas a partir da vigência da Constituição de 1988 são bem definidas e impõem a apreciação de matéria constitucional ao primeiro, e, ao segundo, o julgamento de questões federais, de índole infraconstitucional.

Em matéria de recursos excepcionais, ou seja, extraordinários e especiais, portanto, essa é a divisão temática determinada pelo constituinte de 1988 e que se traduz expressamente nos artigos 102, III, "a" e 105, III, "a", ambos da Constituição da República.

Procurou-se dar ao Supremo Tribunal Federal, assim, verdadeiro status de Corte Constitucional, verdadeiro guardião de nossa Constituição.

Em nome desse status, e em boa hora, a EC número 45/2004 inovou, apresentando uma série de institutos limitadores da atividade jurisdicional do STF, como as "súmulas" (enunciados) vinculantes, o fenômeno dos recursos repetitivos, da repercussão geral, que se alinharam ao já existente prequestionamento para torná-lo, verdadeiramente, um Tribunal Constitucional, apto a apreciar somente as matérias relevantes de modo a garantir a supremacia da Constituição, uniformização de sua interpretação e a criação de precedentes jurisprudenciais vinculantes.

Esse movimento de nossa Corte Suprema de resgatar para si, de forma abrangente, discussões acerca da interpretação e validade das normas em face da constituição, relegando as questões de caráter legal, matéria de lei federal, ao Superior Tribunal de Justiça - como, aliás, determina a carta magna -, não parece permitir alguma exceção, principalmente quando o assunto é violação a princípio constitucional.

De início, vale dizer que, segundo a moderna doutrina constitucional (neoconstitucionalismo), não há qualquer tipo de hierarquia normativa entre princípio e regra, sendo ambas espécies do gênero norma. Nesse sentido, quando a alínea "a", do inciso III, do artigo 102 da Constituição da República autoriza a via do recurso extraordinário para a impugnação de decisão que contrariou dispositivo da Lei Maior, deve-se entender que, o dispositivo, como norma, deve abranger tanto as regras (estampadas nos artigos da lei) como os princípios (mandamentos de otimização) .

Insta revelar, assim, que, em regra, a violação a princípio constitucional deve ser sanada pela via do recurso extraordinário. É o que está expresso na Lei Maior.

Tanto o STJ como o STF parecem não discordar quanto ao tema. Em nome daquele restritivismo acima apontado, porém, o Supremo tem adotado em alguns julgados o entendimento de que a ofensa reflexa ou oblíqua ao texto constitucional afasta a sua competência para o julgamento do recurso excepcional interposto, o que permitiria entender que o meio adequado seria, então, o recurso especial.

Com razão, o Mestre Leonardo Martins discorda desse entendimento :

"Vale-se, para tanto, do problemático fundamento segundo o qual toda vez que para a aferição da inconstitucionalidade do ato normativo hierarquicamente inferior tiver-se que enfrentar o seu fundamento imediato de validade, qual seja, o ato normativo emanado do legislativo, a ofensa seria meramente reflexa ou indireta não podendo ser afastada em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou recurso extraordinário. É difícil conceber em quais situações a aferição da inconstitucionalidade de tais atos normativos dispensaria a análise das Leis nas quais encontram seu fundamento de validade. Se não se tratar de mera ilegalidade, que deverá ser afastada definitivamente pelo STJ em sede de recurso especial, mas de inconstitucionalidade, que de certa forma será sempre indireta se pensarmos na estrutura do ordenamento, essa jurisprudência do STF passa ao largo do disposto no artigo 102, I, "a" e no artigo 102, III, "a" da CF.".

Em verdade, ofensa reflexa ou indireta também é ofensa. Não há meia violação, pois, ou se ofende ou não se ofende, e se esta ocorreu, seja contra dispositivo, seja contra princípio, o remédio processual adequado é o recurso extraordinário.

Os casos enfrentados pelo STF, como bem reproduziu o Professor Leonardo Martins, revelam a problemática dos atos normativos inferiores, cujo fundamento de validade são os atos emanados do legislativo, não havendo qualquer referência à violação reflexa de princípio constitucional.

Ainda assim, a discutível jurisprudência criada não tem o condão de afastar o julgamento de recurso extraordinário pelo STF, cujos julgados admitem a sua competência para apreciar a matéria relativa à violação de princípio constitucional.

Nesse sentido:
" Na instância de origem foi ofertada à parte agravante a devida prestação jurisdicional, por meio de decisão fundamentada, que, todavia, mostrou-se contrária a seus interesses, não merecendo acolhida a tese de violação aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal. É inadmissível recurso extraordinário no qual, a pretexto de ofensa a princípios constitucionais, pretende-se a análise de legislação infraconstitucional. Hipótese de contrariedade indireta ou reflexa à Constituição Federal. (AI nº 749415/PA, Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. Relatora Ministra Ellen Gracie. Acórdão publicado no Diário da Justiça de 18/12/09.).

"É inadmissível recurso extraordinário que, a pretexto de ofensa a princípios constitucionais, objetive a análise de legislação infraconstitucional. 2. O Superior Tribunal de Justiça limitou-se a tratar de matéria processual relativa ao cabimento da reclamação, nos termos do art. 105, I, f (parte final), da Constituição Federal, cuja discussão não enseja cabimento de recurso extraordinário. 3. A alegada violação aos postulados da prestação jurisdicional e do devido processo legal configura, quando muito, ofensa meramente reflexa. 4. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. 5. Agravo regimental improvido.". (RE nº 445384/MG, Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. Relatora Ministra Ellen Gracie. Acórdão publicado no Diário da Justiça de 18/12/09.).

Como se extrai dos excertos acima, o STF afastou a possibilidade de julgamento de recurso extraordinário que a pretexto de ofensa a princípios constitucionais, objetive a análise de legislação infraconstitucional. Ou seja, reconheceu a sua competência para apreciar violação de princípio constitucional pela via do recurso extraordinário, afastando-a, somente, nos casos em que, verdadeiramente, não houve qualquer violação a princípio estampado na Carta Magna.

Mesmo que se vislumbrasse a impossibilidade de julgamento da matéria ? violação de princípio constitucional, ainda que reflexamente ? pela via do recurso extraordinário, melhor solução do que violar competência expressa na Constituição, conferindo ao STJ o julgamento da matéria, seria o remédio previsto no artigo 1º., parágrafo único, I, da Lei 9882/99, qual seja, a arguição incidental de descumprimento de preceito fundamental.

Na lição do Professor Cássio Juvenal Faria , preceitos fundamentais seriam aquelas "normas qualificadas que veiculam princípios e servem de vetores de interpretação das demais normas constitucionais...". Não haveria óbice, assim, à veiculação de impugnação de ofensa a princípio constitucional, mesmo que se entendesse essa ofensa apenas reflexa, por meio da arguição incidental de descumprimento de preceito fundamental.

Vale frisar, assim, que a interposição de recurso especial de decisão que desrespeita princípio constitucional, mesmo que se entenda essa ofensa oblíqua, não encontra amparo constitucional ou na legislação infraconstitucional, ou seja, viola expressamente competência firmada pela Constituição da República, poderia criar sério conflito de competência entre as maiores cortes do país, além de subtrair do STF a possibilidade de atuar como verdadeiro Tribunal Constitucional em defesa da constituição, de sua supremacia, da criação de precedentes jurisprudenciais vinculantes e de sua aplicação ao caso concreto.


Bibliografia:

(1) Novelino, Marcelo. Direito Constitucional para Concursos, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.71-77;

(2) Leituras Complementares de Constitucional. A Retórica do Processo Constitucional Objetivo no Brasil. Martins, Leonardo. Ed. Podvm, Salvador, 2007, p. 20-21;

(3) Lenza, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 13ª. Edição, Saraiva, São Paulo, 2009; p. 251-252;



Autor: Luiz Felipe Fleury Corrêa


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