Manual Da Sexualidade De Venette



Géssica Hellmann

Este artigo aborda algumas crenças sexuais do século XVIII publicadas no manual de sexualidadedo médico francês Nicolas Venette. Utilizo como fonte principal "Venus Minsiecke Gasthuis: Crenças sexuais na Holanda do século XVIII" de Herman Ronndenburg, "'Venus minsieke gasthuis' Over seksuele attitudes in de achttiende eeuwse Republiek" também de Herman Ronndenburg, e bibliografias secundárias a "História da Farmácia: Paracelso x Galeno", "A repressão sexual nos limites da loucura: uma introdução à história da Inquisição (parte II)" por Géssica Hellmann, "Sexo e Pecado - dos conceitos judaico-cristãos à moralidade sexual na Viena do século XIX".

Vários manuais foram publicados entre os séculos XV e XIX a fim de regrar a vida sexual entre quatro paredes. Os autores desses manuais não se restringiam à classe médica; muitos religiosos, filósofos e pensadores também contribuíram, através dos séculos, para escrever "catecismos" sobre o que se pode ou não fazer, o que é moralmente condenável ou não, escritos que eram baseados em crenças e no que era considerado óbvio em sua época.

"As idéias médicas de Venette, como as da maioria dos médicos de seu tempo, baseavam-se em grande parte nas obras de Hipócrates e Galeno. O seu tratado é dominado pela patologia de humores de Hipócrates: a ciência dos quatro fluidos corporais sangue, muco, bile branca e bile negra. Com base nesses quatro fluidos, distinguiam-se quatro temperamentos: o sangüíneo, o fleumático, o colérico e o melancólico". (Roodenburg, 2006).

A classe médica naquela época aderia a ciência dos pneumatas, ou seja, os três espíritos de Galeno.

"Por ter sido considerada ilegal a dissecação do corpo humano, Galeno utilizava porcos e macacos-de-Gibraltar em suas demonstrações de anatomia e fisiologia. Suas teorias reuniam um misto de idéias filosóficas e a doutrina dos três espíritos (pneuma) ou forças-mães: animal, vital e natural (localizados, respectivamente no cérebro, no coração e no fígado).O fígado, grande gerador de sangue; o cérebro, sede do pensamento e da alma; o coração, órgão do calor e o pulmão o do resfriamento". (História, 2006).

"Venette e seus contemporâneos estavam convencidos de que o esperma era extraído do corpo todo e particularmente do cérebro. Pois é a partir do cérebro que os espíritos animais fluem para os órgãos sexuais e, por causa disso, sexo em demasia podia prejudicar o cérebro". (Roodenburg, 2006).

O autor afirma que uma outra teoria de Galeno era também aceita nos séculos XVII e XVIII: acreditava-se que tanto os homens como as mulheres tinham emissão seminal durante o orgasmo. Até o século XVI, os médicos aceitavam a teoria de Aristóteles de que a única contribuição da mulher para a concepção se dava pelo sangue menstrual. Se o esperma entrasse no útero, ocorreria um processo de fermentação e esse processo produziria um embrião cerca de 40 dias depois. Ao contrario de Aristóteles, Galeno atribuía às mulheres um papel ativo na procriação: era vital um orgasmo, uma emissão seminal.

Para Venette, mesmo acreditando que as mulheres davam sua contribuição seminal na procriação, elas continuavam seres inferiores, tanto física como mentalmente.

Venette afirmava que o útero sentia fome de esperma masculino e que, por esse motivo, o útero se inclinava em direção ao pênis durante o coito, a fim de sugar o esperma e, dessa forma, satisfazer sua inpudicícia. Venette afirmava: 'noch de hel, noch het vyer, noch de aerde zijn soo verslindende niet' als dit orgaan"1, ["Nem o inferno, nem o fogo,nem a terra devoram com tanta verocidade como este órgão"]. (Roodenburg, 2006).

Venette também associava a histeria com o útero: "Se o útero não recebesse esperma masculino e o esperma feminino se acumulasse, então o útero apodreceria e levaria as mulheres à loucura". Segundo Venette, as freiras de Loudun sofreram dessa aflição.

Venette refere-se ao episódio ocorrido no convento de Loudun na segunda década do século XVII: "Logo após Joana dos Anjos assumir a direção do convento, apareceu em Loudun um padre chamado Urbano Grandier que se tornou o pároco da região, acabando por atrair sobre si o interesse das senhoras. Tornou-se famoso por sua arte de consolar viúvas e confortar moças solteiras com métodos não inteiramente de acordo com a ortodoxia do sacerdócio. Seduziu a filha do procurador régio e, mais tarde, conheceu Madeleine de Brou, filha do conselheiro do rei, que compôs em honra de Grandier um espirituoso tratado contra o celibato dos padres. Tais escândalos chegaram ao ouvido de Joana dos Anjos, que começou a ter "sonhos pecaminosos". Sua perturbação psíquica agravou-se a um ponto em que começou a ter ataques histéricos noturnos no convento. Pediu ajuda às freiras para que a flagelassem. Pouco depois, várias outras feiras começaram a sofrer alucinações parecidas com as de Joana". (Seligmann, 1948, apud Hellmann 2006a)

Del Priore (2006) afirma também que "Nicolas Venette repetia os antigos afirmando que as mulheres eram mais responsáveis pela esterilidade do que os homens (apud Darmon, 1981, p. 27)".

O fato mais escandaloso publicado em seu livro para a época referia-se a ênfase que o autor dava ao prazer sexual. Segundo Roodenburg (2006), Venette afirmava que os abraços mútuos (referindo-se ao coito) eram os laços de amor do casamento. Ele indica as zonas erógenas, chamando o clitóris de "het vyer of het woeden der liefde"2 ("o fogo ou a paixão do amor"). A natureza ali situara o "trono de sua lascívia e impudicícia", "tal como fizera no topo da haste do homem".

Segundo o autor, outra questão freqüentemente levantada por Venette era quem seria mais vigoroso o homem ou a mulher? Qual dos dois teria mais prazer na cama? Quais posições poderiam ocupar na hora do coito? Venette chegou também a apresentar sugestões de como uma noiva deflorada poderia se passar por virgem na noite de núpcias. Segundo ele, ela deveria introduzir na boca do útero duas ou três bolinhas de sangue de carneiro congelado.

Outra questão era sobre a melhor idade para o casamento, segundo ele, para os homens após os 25 anos, e para as mulheres após os 20. Antes desta idade correriam o risco de que a semente do homem fosse "muito pobre em espíritos animais", e de que a mulher fosse internamente muito estreita. Era quase certo que uma união dessas poderia gerar apenas meninas ou crianças muito pequenas e raquíticas.

Venette também fornece indicações sobre o melhor horário do dia para o coito, segundo ele, a melhor hora do dia é de quatro a cinco horas depois da refeição do meio-dia ou de quatro a cinco horas depois da refeição noturna. Sugere no máximo cinco coitos na mesma noite, pois se o homem tentar a sexta vez, sua semente pode sair aguada. Segundo ele "os homens se exaurem exatamente quando as mulheres tornam-se ardentes". Atribui este fato à divisão do trabalho na cama: o homem faz todo o trabalho enquanto a mulher só recebe. Desta forma a mulher não tem desculpa para recusar o marido, o que não seria mais do que sua obrigação. (Roodenburg, 2006)

Quanto às posições era recomendado o homem por cima e a mulher por baixo. Sexo por trás, somente era admissível quando a mulher estava grávida ou era muito gorda.

Venette combatia alguns temores relacionados à sexualidade, como a existência de íncubos e súcubos, dizia que eram somente frutos da imaginação humana. Seriam os pesadelos dos homens e mulheres com pensamentos impuros. (Roodenburg, 2006)

O autor afirma ainda que outra crença comum entre a elite da época consistia na pretensa imaginação materna. As pessoas acreditavam que as anormalidade do feto, como nascer com manchas avermelhadas, marcas de nascença e outras deformidades, eram provocadas pela imaginação da mãe grávida. Era possível, por exemplo, que um desejo súbito por uma fruta, se insatisfeito, provocaria o nascimento de uma criança com uma mancha no tamanho e formato da fruta. Ou se a mulher grávida se assustasse com a visão de um homem ou mulher deformados, a criança poderia nascer com esta deformidade. Venette não era muito claro em sua opinião sobre esta crença, mas ele chega a mencionar as conseqüências da imaginação materna, não no contexto gravidez, mas durante o próprio coito.

Venette menciona que em seu tempo eram raros os casos de hermafroditas, afirma que no passado eram considerados maus presságios e monstros, e que, em seu tempo, eram considerados assuntos raros. Ele distingue cinco tipos de hermafroditas, sendo que um deles diz respeito às mulheres que possuem um clitóris excepcionalmente grande, chamadas de tríbades pelos gregos e ribaudes pelos franceses, que poderiam dar prazer a outras mulheres.

Sabe-se que, na época, os médicos consideravam a sodomia muito pior que o tribadismo, principalmente na Holanda do século XVIII. Os praticantes de sodomia eram punidos com muito mais rigor. Uma das explicações que podem ser atribuídas a este fato é que as tríbades não praticavam sexo anal e os sodomitas sim. Desta forma percebe-se que a tolerância de Venette se dá somente aos heterossexuais, a homossexualidade masculina é ignorada e a feminina é encarada como um lamentável desvio da natureza.

O fundamento dessa opinião vinha do fato de que ainda se seguia o princípio de que as mulheres seriam seres inferiores por serem mais "próximas à natureza" e por serem impulsivas como os animais. Essa idéia foi seguida também em outros livros, como o publicado no século XIX por Weininger:

"Segundo Jusek (1995), Weininger afirmava que a mulher não era nenhum mistério. Em suas pesquisas ele "descobrira" que ela era não somente polígama, como também irracional, caótica, ilógica e nada entendia de moralidade. Afirmava que, para tornar-se humana, a mulher deveria reprimir totalmente sua sexualidade. Como um corolário racista/sexista, afirmava que os judeus seriam uma raça inferior porque possuiriam características femininas. (Helmann, 2006b)

Para Roodenburg, (2006) ficou claro que, no manual sexual de Venette, o fato que nossos ancestrais do século XVIII, e talvez do século XIX, sustentavam noções sobre o corpo inteiramente distintas daquelas que possuímos hoje. Seria interessante averiguar em que medida esses conceitos, considerados óbvios na época, estava ligado às inúmeras discussões teológicas e morais sobre as mulheres.

Faço a pergunta agora: por que os manuais eram tão vendáveis, os "resultados de pesquisas" interessavam tanto a elite de suas épocas? Por que ainda hoje são tão populares livros do estilo "saiba tudo sobre sexo" ou "como agradar seu companheiro na cama"? A sexualidade continua sendo um mistério? Por que a própria palavra sexualidade já gera tanto furor? Porque tantos firewalls corporativos bloqueiam sites que têm a palavra sexualidade, enquanto na televisão, em horários que nossos filhos estão assistindo TV, pode-se ouvir tantas expressões como "popozuda", "cachorra", acompanhada de imagens de mulheres representadas apenas como objeto de desejo sexual masturbatório? Ao que parece o discurso evoluiu muito. Já as mentalidades...

Notas:

1 - Citação em Holandes de Roodenburg, Herman. 'Venus minsieke gasthuis' Over seksuele attitudes in de achttiende eeuwse Republiek. Disponível em: <http://www.dbnl.org/tekst/rood006venu01_01/rood006venu01_01_0001.htm>. Acessado em:06/12/2006.

2 - Citação em Holandes de Roodenburg, Herman. 'Venus minsieke gasthuis' Over seksuele attitudes in de achttiende eeuwse Republiek. Disponível em: <http://www.dbnl.org/tekst/rood006venu01_01/rood006venu01_01_0001.htm>. Acessado em:06/12/2006.

Bibliografia

DEL PRIORE, Mary. Men and women: imagery about sterility in Portuguese America. Hist. cienc. saude-Manguinhos., Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, 2001. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000200005&lng=en&nrm=iso>. Access on: 06 Dec 2006. doi: 10.1590/S0104-59702001000200005.

HELLMANN, Géssica.A repressão sexual nos limites da loucura: uma introdução à história da Inquisição (parte II). Disponível: <http://www.gehspace.com/sexualidade26a30.htm#29>. Acessado em: 07/12/2006 a.

________________.
Sexo e Pecado - dos conceitos judaico-cristãos à moralidade sexual na Viena do século XIX. Disponível em: <http://www.gehspace.com/sexualidade6a10.htm#6>. Acessado em: 07/12/2006 b.

HISTÓRIA DA FARMÁCIA: PARACELSO X GALENO. Disponível em: <http://www.lapemm.ufba.br/historia.htm>. Acessado em: 06/12/2006.

ROODENBURG, Herman. Venus Minsiecke Gasthuis: Crenças sexuais na Holanda do século XVIII. In Bremmer, Jam (org). De Safo a Sade: Momentos na história da sexualidade. Campinas, SP: Papirus, 1995.

_____________________. 'Venus minsieke gasthuis' Over seksuele attitudes in de achttiende eeuwse Republiek. Disponível em: <http://www.dbnl.org/tekst/rood006venu01_01/rood006venu01_01_0001.htm>. Acessado em:06/12/2006.

Publicado originalmente na  Revista Sexualidade

Autor: Géssica Hellmann


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