Segunda Vida




- Não cara, não tá entendendo? Meus créditos acabaram eu comprei a TV de LCD e fim. Agora a Tati vem para cá para assistirmos àquele filme novo e não tenho grana nem para a cerveja.
- Você pode procurar o Tom e pegar um adiantamento das entregas dos jornais da semana.
- Tô devendo já duas semanas para ele. Você não tem nada?
- Não.Vou comprar uma moto nova e empenhei tudo nisso.Por que não procura aquele pessoal lá da Rave de sábado?
- São barra pesada, demais. Mas, de repente, acho que é o que vai rolar. Sabe onde encontro algum deles?
- Sei, mas não vou contigo. Lá é muito esquisito. No final da rua do metrô, você vai ver um galpão abandonado, eles estão sempre por lá. Quando voltar me chama para contar. Valeu Dado?
- Valeu Beto, te chamo tá ligado? Fui.
Andar naquele lugar era mesmo muito ruim. Estava escuro e uns caras muito esquisitos estavam me seguindo desde a estação. Quando entrei no galpão dois caras chegaram junto. Falei o nome do cara da Rave de sábado e um fez sinal para o outro e me deixaram ali. Ao meu redor, vários caras estavam fumando baseado. Não conseguia ver quem era e nem me importava muito, era melhor. Chegou um cara mais velho e falou comigo muito baixo.
- Tá afim de que?
- Preciso de uns créditos, tenho trabalho e como pagar. É um adiantamento por uns dias.
- Tem boas roupas, de marca. Quer comprar o quê? É para droga?
- Não. Conheci o Caio na Rave e ele falou que quando precisasse podia vir.
- Ele tá ocupado.Te dou 100. Você vai num lugar para mim hoje e entrega um pacote, tá feito?
- Me dá hoje os 100?
- Dou, na volta da entrega. Não te conheço, ainda.
- Ok. Manda o endereço e a entrega.
Pouco depois ele foi ao endereço que era na zona sul da cidade, encontrou a casa. Tocou e falou ao interfone que tinha uma entrega para Eduardo. Perguntaram de quem era e ele disse que era do Caio. Houve um silêncio e pouco depois uma mulher loura e mais velha apareceu na porta. Olhou para ele e depois para a rua, para verificar se estava sozinho. Pegou o pacote e fechou a porta na sua cara. Ele disse obrigado e voltou ao galpão. Lá lhe entregaram os 100. Pronto. Fora mole demais. Sua noite com a Tati no dia seguinte estava arranjada. Foi para casa e dormiu. Na manhã seguinte foi ao mercado comprou coisas legais e retornou logo. Quando ligou a TV, passava o noticiário. Um promotor da justiça havia sido morto na noite anterior. Encontraram os corpos dele e de uma prostituta. Provavelmente por overdose de droga, pois havia um pacote cheio de pó no quarto da vítima. Dado olhou para a TV, mas não havia foto das pessoas mortas. Sacudiu os ombros e preferiu ligar uma música enquanto esperava sua amada chegar.

A viagem com os pais para a serra havia sido bem legal, ele pensava enquanto o pai estacionava na garagem. Seus amigos da faculdade também estavam lá. Passearam, curtiram a noite em uma pizzaria e tomaram muito banho de piscina no domingo. Agora, estava de volta ao seu quarto. Só que ainda precisava terminar um trabalho para o dia seguinte. Sentou-se em frente à tela do computador e foi direto para onde estava a pasta com os arquivos da faculdade. Passava da meia-noite quando terminou.

- E aí cara, deu quantas com a Tati?
- Foi bom demais! Transamos a noite toda, nem assisti ao filme. Bebemos todas e fumamos muito, também, tá ligado?
- Não quer marcar aqui em casa, hoje? Vem com a Tati que arranjo uma outra e transamos com as duas.
- Não, cara, deixa a Tati. Ela é legal, mas não tô querendo dividir, por enquanto...
- Tá maluco, meu irmão? Tá gostando dela? Fala aí, Dado!
- Não é nada disso. Sabe que não sou de me ligar em ninguém. Mas, deixa eu cansar primeiro, depois até te dou ela, tá ligado?
- Cool. A TV tá um saco hoje, só fala na morte do casal. O cara era promotor. Descobriram que alguém entregou o pacote de spark, lá. O circuito de TV gravou, mas tava escuro e o cara de boné, não conseguem reconhecer.
- Qual é o endereço, Beto?
- Na zona sul, uma casa muito legal, por quê?
- Fiz um trabalho no mesmo dia, para aquele cara da Rave, ganhei 100 créditos. Entreguei um pacote, não sei o que tinha dentro, mas pelo lugar que era só podia ser spark. Era um casão.
- Acha que é você quem estão procurando?
- Sei lá, cara, mas pode ser. Será que tinha alguma coisa mais do que spark?
- Pode ser, vai ver que era encomenda, iam matar o cara e sabiam que ele gostava da coisa e aproveitaram. Você chegou na hora certa. Não era nem um dos caras deles...
- Podem me achar? Beto, é melhor eu tentar descobrir?
- Tá doido, Dado? Fica na sua. Se foi tu, e ainda der mole aparecendo no galpão, vão te achar. Tu tem é que sumir por uns dias. Pinta o cabelo.
- Pintar de que cor?
- Sei lá, de roxo.
- Tá zoando! Vou parar de usar boné, é isso! E jogar a roupa e o boné tudo que usei no lixo.
- Melhor queimar. Não dá mole. Pior é se os caras te procurarem para outro serviço.
- Não sabem onde eu moro.
- Podem descobrir. Esses caras são o que de pior existe! Vai ver até o cara da Rave já te ofereceu ajuda porque já tava ligado na sua. Precisava de um de fora e maluco. Tu compra as paradas com quem?
- Ah! Pára Beto, não quero pensar mais nisso, tá ligado? Fui. A gente se fala outra hora.
Desligou ele. Ficou olhando para a tela do computador com a imagem da sala. Depois clicou no filme que fez da noite passada com a Tati. Gravara tudo sem ela perceber. Ela era demais, ficou lá horas pensando nela e assistindo a tudo.
Quando saiu no dia seguinte, levou o saco de lixo com as roupas que havia usado no dia que foi ao galpão. Desceu até a garagem e jogou o saco dentro da lixeira. Depois saiu e foi encontrar a Tati, eles iam ao cinema. Voltou tarde e não reparou em um homem parado na entrada do prédio, antes da guarita. Assim que passou por ele, reconheceu a voz.
- E aí garoto, tá precisando de mais dinheiro?
- Por que tá aqui?
- Preciso fazer uma entrega hoje e lembrei de você. Topa por 200?
- Não tô precisando de grana. Obrigado.
- Qual é cara, vai recusar? Te ajudei outro dia, hoje quem tá precisando sou eu.
- Ajudou! Eu entreguei o pacote e o cara morreu. Como vai me ajudar quando me acharem? Vai me matar?
- Que isso, meu irmão! Era só spark. A piranha que tava com ele é quem deve ter colocado coisa muito pesada no lance. Se liga, isso é muito ruim para os negócios!
- Sei não. Aonde é a entrega?
- Agora, começamos a nos entender, tenho uma para hoje e outra para amanhã, se topar as duas leva 500.
- Topo. Mas não volta aqui. Eu vou ao galpão, tá ligado?
- Claro, chefia. Você manda. Vem comigo então até o carro, tô com a peça aqui.
Eles olham em volta antes de se afastar. Dado fez as duas entregas e levou a Tati para jantar em um belo restaurante. Na semana seguinte, outras duas e deu entrada em uma moto com os créditos. A Tati tinha uma amiga e levou junto um dia na casa dele. Ela era muito bonita. Dado resolveu apresentá-la para o Beto. E no final daquele mês, os quatro estavam vivendo todos juntos na casa de Dado. Este fazia cada vez mais entregas e nunca mais assistira a TV. Mas, Beto toda hora lembrava a ele que várias mortes estavam acontecendo, por overdose, nem assim Dado se ligou e parou. No final de dois meses, havia comprado tudo que sempre sonhara, morava com a mulher que queria e o melhor amigo e não se importava se alguém estava morrendo por sua causa. Era apenas negócio.

Finalmente o quinto período da faculdade tinha terminado fora cansativa a reta final. Mas ele conseguira. Suas notas estavam excelentes. E seus pais muito contentes. Ele era inteligente, bom para as pessoas e estudioso. Não tinham nenhuma reclamação dele. Estava namorando uma amiga da faculdade há alguns meses, e ela era de ótima família e extremamente simpática. Resolveram presenteá-lo com uma viagem no verão e ele havia escolhido uma praia famosa perto da cidade, iria levar a namorada e uns amigos. O Natal fora passado em família e no Ano Novo foram todos a uma festa na casa da família da namorada dele. A vida fluía normalmente. A única coisa que incomodava um pouco os pais era a paixão que o filho tinha pelo computador. Ás vezes, ele ficava horas na internet e nos jogos. Mas, essa mania por computador nunca havia atrapalhado seus estudos e nem sua vida, por isso, achavam que fazia parte da idade, iria passar: era apenas uma fase. O que eles não sabiam, não poderiam adivinhar, ou sequer imaginar, era a existência de uma segunda vida de seu filho, Dado. Sua outra vida, num mundo sujo, onde a morte do próximo só significava uns créditos a mais. O underground da realidade virtual estava tomando seu tempo, perigosamente. Mas, o importante mesmo para seus pais, era que em breve ele se formaria. Em médico.


Autor: Marcia Nolasco Da Cunha


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